Estragos causados pela chuva na Grande BH  -  (crédito: Jair Amaral/EM/D.A.Press)

Estragos causados pela chuva na Grande BH

crédito: Jair Amaral/EM/D.A.Press

Sou pai de 2 rapazes espetaculares, ambos com personalidade marcante, embora diferentes, muito bacanas, cada um a seu modo. Em comum, além do imenso orgulho que nos dão, a explicação que sempre demos aos dois (e à nós mesmos) para a quase totalidade dos piripaques e mal-estares, desde muito pequenos: “é uma virose; vamos aguardar uns dias para ver se evolui, ou se desaparece”.

Na maior parte das vezes, desaparecia após um dia ou dois, com a confirmação de que, realmente, “foi uma virose”. Nas poucas vezes em que não ia embora, recorríamos ao médico dos rapazes, o amigo e antigo colega de escola, Dr. Nelsinho.

A partir daí, entrava em cena o especialista, treinado para mapear as possibilidades num diagnóstico sempre certeiro, indicando o tratamento mais adequado. A melhor demonstração empírica de ciência e conhecimento andando juntas, de mãos dadas, que posso me lembrar.


O “deve ser uma virose” e seu irmão gêmeo, “foi uma virose”, são, por outro lado, a antítese - tanto - da ciência quanto do conhecimento, ficando mais nos territórios da torcida e da fé dos pais.

E é nesses mesmos territórios, da torcida e da fé, que parecem morar as afirmações recorrentes sobre as inundações recorrentes e repentinas em Belo Horizonte. Gosto especialmente de “é o aquecimento global”, “é a emergência climática”, “esse é o novo normal”, “o mundo está virado” ou “hoje São Pedro estava furioso”.

Sim, naquele dia São Pedro estava furioso, a ponto de descarregar, em minutos, um volume concentrado daqueles que ele descarrega todos os anos, às vezes um pouco mais concentrado, às vezes com um pouco mais de raiva.

Sim, porque para citar apenas aquelas mais fáceis de pesquisar, temos a de 1979, com um acumulado de chuvas que chegou aos 1.239,8 milímetros entre janeiro e fevereiro, com 3500 desabrigados e 300 mortos. Em 1983, foram 722,5 milímetros e 170% a mais que a média em janeiro, com 2.336 desabrigados e 50 mortes.

Tiveram, ainda, a de 1997, que deixou 29 mortos na região metropolitana, a de janeiro de 2003 com mortos e soterramentos no Morro das Pedras, Cafezal e Taquaril, e a de dezembro de 2011, quando choveu 720,0 milímetros, mais do que o dobro da média (320mm). Teve, também, a de 2020, com 55 mortos e mais de 45 mil pessoas desabrigadas.

Foquei inicialmente nas tragédias, mas se pesquisar um pouco mais, é fácil achar registros de alagamentos em 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2021, 2022 e 2023. A sensação é que houveram alguns anos com tragédias impressionantes, mas não houve 1 ano sequer sem alagamentos desde 2001.

Achei uma matéria do jornal O Estado de Minas de 07/01/2012, na qual “o engenheiro sanitarista José Roberto Champs, ex-diretor da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) responsável por um levantamento sobre as enchentes e seus efeitos desastrosos.

“De 1928 até agora, houve mais de 200 inundações”, afirma Champs, destacando que a situação não é culpa simplesmente do período de chuvas, que vai de novembro a março ou dos 1003 cursos d’água que cortam a cidade. “As inundações são fenômenos naturais, mas aqui houve uma ocupação urbana desfavorável à forma como a capital foi concebida. Não temos um sistema de drenagem eficiente”, afirma o engenheiro”.

E continua dizendo que, “falta uma política de gestão integrada, formada por órgãos municipais e estaduais, para fazer a gestão do sistema de drenagem”, adverte o especialista”.

Não sei dizer se, após 2012 e com tantas evidências e ocorrências nos últimos 45 ou 50 anos, se nessa altura do campeonato, Belo Horizonte e a região metropolitana já tem a tal “política de gestão integrada”, e um plano objetivo de ação e correção definitiva, porque se já sabiam da necessidade do “plano” em 2012 e o plano foi feito, vai ser difícil explicar porque os problemas permanecem; se não foi feito, pode ser ainda mais difícil explicar...

De certeza, certeza mesmo, apenas a constatação da inação e do desperdício de tempo e, muito mais grave, de vidas. De novidade, só mesmo as desculpas, como por exemplo “é o aquecimento global”, “é a emergência climática” e “esse é o novo normal” (porque “o mundo está virado” e “hoje São Pedro estava furioso” já são usadas desde o século passado).

A cidade pode criar a quantidade que for de jardins de chuva e áreas de drenagem nos lotes (microdrenagem), mas o problema permanecerá rigorosamente o mesmo. E vai continuar porque os jardins sobre terreno natural tornam-se impermeáveis em poucos minutos, e a chuva corre diretamente para o asfalto mais próximo. Praças arborizadas, parques e matas são uma outra coisa, e realmente ajudam, tanto drenando quanto retardando a água, até que chegue à rede de drenagem.

A questão é básica, e passa pela física e pela dinâmica dos líquidos: quando o volume que entra na rede de drenagem é maior do que a rede consegue escoar, há alagamento. Quando a capacidade da rede de drenagem pública não comporta o volume de água de todos os contribuintes (ou seja, quando a seção da rede é insuficiente), a água não vai embora na velocidade e no volume necessários, e há alagamento.

Simplifiquei tudo, mas poderia dizer que, quando isso acontece, nos momentos mais agudos, parte da rede entra em colapso, e piora tudo ainda mais. Nem precisava comentar, também, que a sujeira e o lixo que se tornaram paisagem nas ruas e avenidas não ajudam em nada o escoamento e a vazão.

Dando nome aos bois (ou aos rios), cada gota de chuva que não for absorvida pelos parques e pelas matas terminará, inexoravelmente, mais cedo ou mais tarde (quanto mais cedo, melhor), no Ribeirão Arrudas no Ribeirão do Onça (e, na sequência, no Rio das Velhas).

E são - exatamente - as vazões do Ribeirão Arrudas do Ribeirão do Onça, mais os trechos finais do encontro dos contribuintes (afluentes) com esses, que as obras de grande porte precisam acontecer, porque é ali que a física se choca com a torcida e a fé.

Qualquer outra abordagem que não sejam obras colossais (colossais) nos trechos finais da rede de drenagem da Capital podem fazer sentido na política, na comunicação e na propaganda, mas não fazem na engenharia, nem na física. E não vão resolver.

O futuro sorri para quem não ignora os fatos porque, como bem disse Ayn Rand, “você pode ignorar a realidade, mas não pode fugir das consequências de ignorar a realidade”.