Autocuratela: quando a autonomia se torna o maior ato de proteção
A autocuratela permite que a pessoa, enquanto capaz, defina quem será seu curador e como deseja ser assistida
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Por Ana Flávia Sales e Cláudia Viegas
Vivemos uma época em que a longevidade é uma conquista e, ao mesmo tempo, um desafio. As pessoas vivem mais, mas nem sempre com a mesma plenitude de saúde física ou cognitiva. Diante dessa realidade, o Direito brasileiro tem buscado caminhos para preservar a autonomia da vontade, mesmo em situações em que a capacidade de decidir possa ser comprometida. Um desses caminhos é a autocuratela, instituto recentemente consolidado pelo Provimento nº 206/2025 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O que é a autocuratela?
A autocuratela é uma espécie de planejamento da capacidade civil. Trata-se de uma escritura pública em que a pessoa, enquanto plenamente capaz, define quem será seu curador – isto é, quem poderá auxiliá-la na gestão de seus bens e decisões – caso, no futuro, venha a necessitar de apoio por motivo de doença, idade ou qualquer outra limitação que reduza seu discernimento.
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Em outras palavras, é o próprio indivíduo que escolhe, de forma livre e preventiva, quem cuidará de seus interesses e de que maneira isso ocorrerá, se um dia não puder fazê-lo sozinho. É um ato de coragem e de lucidez: um planejamento da própria autonomia.
A autocuratela é diferente de uma simples nomeação de procurador ou de um mandato comum. Ela tem natureza personalíssima e produz efeitos apenas se, e quando, houver necessidade de curatela judicial. Não se trata de um contrato entre vivos, mas de uma manifestação antecipada de vontade, lavrada em cartório de notas, que será considerada pelo juiz caso venha a ser instaurado um processo de curatela.
Por que ela é importante?
Historicamente, os processos de interdição eram marcados por decisões generalizadas e, muitas vezes, distantes da realidade e dos desejos da pessoa interditada. A curatela era imposta de forma ampla, sem diferenciação entre quem precisava de apoio pontual e quem efetivamente não possuía discernimento.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) mudou essa lógica ao estabelecer que a curatela deve ser uma medida excepcional, proporcional e temporária, voltada apenas aos atos patrimoniais e negociais, preservando, tanto quanto possível, a autodeterminação.
Nesse contexto, a autocuratela surge como um instrumento de empoderamento jurídico. Ela permite que o indivíduo antecipe sua vontade e evite a imposição de “curatelas padrão”, frequentemente desajustadas à sua história, valores e vínculos afetivos. É a concretização do princípio segundo o qual ninguém conhece melhor a própria vida do que quem a vive.
Além disso, o Provimento 206/2025 do CNJ trouxe avanços práticos. Agora, todo juiz que analisa um pedido de curatela deve consultar a Central Notarial de Serviços Compartilhados (CENSEC) para verificar se existe uma escritura de autocuratela lavrada. Se houver, ela deve ser considerada na decisão. Essa simples providência evita disputas familiares, dá celeridade ao processo e assegura que o magistrado conheça a vontade autêntica da pessoa, manifestada enquanto plenamente capaz.
Sigilo, proteção de dados e segurança jurídica
Outro ponto fundamental é o sigilo. A escritura de autocuratela contém informações sensíveis – de natureza médica, pessoal e patrimonial – e, por isso, só pode ser acessada pelo próprio declarante ou mediante ordem judicial. Essa proteção é coerente com os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e reforça a confiança no sistema notarial, que se torna o guardião dessa vontade.
A formalização pública, em cartório, garante a autenticidade e a segurança jurídica do ato. Ao mesmo tempo, permite sua integração com outros instrumentos de planejamento pessoal, como testamentos, mandatos duradouros e diretivas antecipadas de vontade (DAVs) – documento que expressa escolhas médicas e de tratamento em caso de incapacidade. Juntos, esses instrumentos formam uma verdadeira arquitetura jurídica da autonomia, que protege a pessoa em todas as dimensões da vida: patrimonial, afetiva e existencial.
O papel da advocacia e do notariado
A autocuratela também inaugura um novo campo de atuação para a advocacia. Elaborar esse tipo de instrumento exige sensibilidade, técnica e visão interdisciplinar. O advogado atua como tradutor da vontade do cliente, orientando-o sobre as implicações jurídicas de suas escolhas, avaliando sua rede de apoio e construindo cláusulas que garantam transparência, prestação de contas e prevenção de abusos.
Do outro lado, o notário tem papel essencial na formalização segura e ética do ato, certificando a capacidade e o discernimento do declarante e zelando pela confidencialidade das informações. Trata-se de uma atuação cooperativa entre advocacia, notariado e Poder Judiciário, que representa um avanço institucional em favor da dignidade humana.
Autonomia, dignidade e planejamento
Mais do que um documento, a autocuratela é um ato de liberdade responsável. É o reconhecimento, pelo Direito, de que a autonomia não se extingue com a vulnerabilidade, mas pode – e deve – ser planejada.
Ao escolher quem cuidará de seus interesses, a pessoa garante que suas decisões sejam respeitadas, evita litígios familiares e proporciona tranquilidade àqueles que ama. É um gesto que une razão e afeto, técnica e humanidade.
O Provimento 206/2025 do CNJ consolida esse avanço ao institucionalizar o respeito à autonomia da vontade e ao estabelecer procedimentos que valorizam a vontade individual como elemento estruturante da decisão judicial. A autocuratela, portanto, não retira o papel do juiz; ao contrário, oferece ao Judiciário um mapa da vontade da pessoa, para que as decisões sejam mais justas, proporcionais e humanas.
Conclusão
Em uma sociedade que envelhece e se torna mais consciente de seus direitos, planejar a própria capacidade é um ato de lucidez e de amor-próprio. Assim como fazemos um testamento para organizar o patrimônio, podemos – e devemos – pensar na curatela como um exercício de autodeterminação.
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A autocuratela é, em essência, a síntese entre liberdade, dignidade e proteção. Permite que cada pessoa seja autora de sua própria história, mesmo quando o futuro impuser limitações. Representa o amadurecimento do Direito de Família e Sucessões brasileiro, que caminha, enfim, para um modelo mais humano, inclusivo e respeitoso com a vontade individual.
*Ana Flávia Sales é advogada, mestre e professora de Direito Processual Civil
@advogadaanaflaviasales
*Claudia Viegas é mestre, doutora e Professora de Direito Civil
@claudia\_viegas77
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
