Por Ana Flávia Sales
Poucas leis brasileiras representam tão claramente um avanço civilizatório quanto a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Ela salvou vidas, deu voz a mulheres silenciadas e estruturou mecanismos eficazes de combate à violência doméstica e familiar. Entretanto, ao longo de mais de 15 (quinze) anos atuando no Direito de Família e no Processo Civil, observando a vida real muito além dos livros, percebo um fenômeno preocupante: o uso indevido da lei como instrumento de disputa conjugal, de guarda de filhos ou de vantagem processual.
Esse tema é sensível. Ele não diminui a importância da lei nem ignora a realidade brutal da violência contra a mulher. Mas justamente por reconhecer a seriedade da violência doméstica é que precisamos falar sobre os casos em que a lei é deturpada e manipulada.
Quando uma ferramenta criada para salvar vidas é utilizada como mecanismo de vingança, chantagem emocional ou estratégia judicial, todos perdem – especialmente as mulheres que realmente precisam de proteção.
Lei Maria da Penha não é instrumento de disputa familiar
Infelizmente, têm chegado ao Judiciário situações em que medidas protetivas são solicitadas mesmo quando não há qualquer forma de violência doméstica – seja violência física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial, conforme define a própria Lei Maria da Penha. Em muitos casos, se tratam apenas de brigas comuns de casal, divergências sobre guarda de filhos, tentativas de impedir visitas paternas, ou até estratégias para pressionar acordos em processos de divórcio.
Esses pedidos, quando feitos sem fundamento, representam má-fé processual. O ordenamento jurídico condena condutas que manipulam o aparelho estatal para gerar prejuízo à outra parte, seja por alterar a verdade dos fatos, seja por provocar incidentes processuais injustificados.
A utilização indevida de medidas protetivas também pode configurar crime, como:
- denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal),
- falsa comunicação de crime (artigo 340 do Código Penal),
- calúnia (artigo 138 do Código Penal).
Além disso, podem gerar responsabilidade civil, com condenação ao pagamento de indenização pelos danos morais e materiais causados.
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Quando a mentira vira violência institucional
A concessão de uma medida protetiva atinge profundamente a vida de quem a recebe – e isso é intencional. Afinal, trata-se de um mecanismo emergencial para impedir agressões, preservar a integridade da mulher e afastar riscos iminentes.
Entretanto, quando o instrumento é invocado sem base real, cria-se uma violência institucional capaz de causar efeitos devastadores:
- pais afastados dos filhos sem motivo legítimo;
- reputações destruídas;
- empregos perdidos;
- vínculos afetivos rompidos;
- processos contaminados por acusações falsas.
Essa inversão fragiliza a credibilidade da própria lei. E esse é o ponto mais grave: o mau uso não prejudica apenas o acusado – prejudica todas as mulheres que dependem da medida para sobreviver.
Consequências para o processo de guarda e para o Direito de Família
É comum que falsas acusações surjam em contextos de separação litigiosa. Alguns pedidos são feitos com o objetivo de:
- obter guarda unilateral sem justificativa concreta;
- afastar o outro genitor da criança;
- dificultar o convívio paterno;
- forçar acordos desproporcionais sobre pensão ou partilha.
O Judiciário, nos últimos anos, tem desenvolvido maior sensibilidade para distinguir conflitos conjugais comuns de situações reais de violência.
Não raramente, após apuração, verifica-se que o fato narrado não corresponde a uma agressão, mas a um desentendimento que deveria ser resolvido na esfera cível, não criminal.
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Essa constatação pode gerar:
- reversão de guarda,
- sanções por litigância de má-fé,
- perda de credibilidade da parte,
- e, em casos extremos, comunicação ao Ministério Público para responsabilização penal.
Proteger a lei é proteger as mulheres
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A Lei Maria da Penha é indispensável. Ela é um divisor de águas na tutela dos direitos humanos das mulheres no Brasil.
Mas nenhuma lei resiste ao uso abusivo.
Quando uma mulher faz uma falsa denúncia, ainda que movida por dor, raiva, mágoa ou insegurança, ela contribui para que discursos machistas tentem deslegitimar a existência da própria lei.
E, pior, abre caminho para que vítimas reais tenham seu relato desacreditado.
A credibilidade da Lei Maria da Penha depende da responsabilidade de todos: do Estado, do Judiciário, da advocacia – e, também, das mulheres que a invocam.
Não existe empoderamento possível quando a proteção vira arma. Proteger não é punir inocentes.
A solução está no equilíbrio e na responsabilidade
Falar sobre o uso indevido da Lei Maria da Penha não significa diminuir sua importância.
Ao contrário: significa protegê-la.
Como advogada, professora e pesquisadora, sempre ensino que o Direito existe para equilibrar relações, não para alimentar guerras. Precisamos fortalecer mecanismos de apuração célere, ampliar o acesso a equipes multidisciplinares, qualificar escutas e humanizar o sistema.
Ao mesmo tempo, precisamos reafirmar um princípio simples: a Lei Maria da Penha nasceu para salvaguardar a dignidade das mulheres que sofrem violência – e não pode ser desvirtuada.
Se houver coragem do sistema de Justiça e maturidade social para distinguir o verdadeiro do falso, preservaremos aquilo que realmente importa: a vida e a segurança das mulheres que dependem da proteção do Estado.
*Ana Flávia Sales é advogada, mestre e professora de Direito Processual Civil
@advogadaanaflaviasales
