Carlos Starling
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SAÚDE EM EVIDÊNCIA

A parreira de Ibiá

As uvas eram o prenúncio do Natal. Presentes, pessoas alegres, festa e abraços. Passadas as festas a parreira ficava pelada

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Entre o céu e a terra, há memórias que persistem como raízes profundas. No quintal da minha infância, onde o tempo era medido pelo amadurecer dos frutos e pelo dançar das nuvens, eu guardava nos olhos a eternidade.

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Quando menino em Ibiá, no Triângulo Mineiro, morava numa casa com alpendre e quintal com laranjeira, pé de figo e caqui. Mas a minha preferida era mesmo a parreira de uva. Nos finais de ano, ela nos brindava com cachos de uva que iam aparecendo do nada, ficavam verdes e quase não conseguiam amadurecer. Eu os beliscava bem antes. Às vezes, passava horas olhando o céu e as nuvens passarem por entre as folhas e os cachos de uva.

As uvas eram o prenúncio do Natal. Presentes, pessoas alegres, festa e abraços. Passadas as festas a parreira ficava pelada. Minha mãe a podava para o ano seguinte florescer novamente. Às vezes, me parecia que a poda tinha sido exagerada e que ela nunca mais me daria sombra e cachos de uva. Mas ela resistia e voltava devagar e sempre.

Hoje, abri a geladeira e me deparei com uvas brancas e roxas compradas ontem num supermercado. Ao degustá-las, sinto o sabor do Natal e o frescor da sombra da minha velha parreira em Ibiá. Minha mãe, meus pais e avós já se foram, assim como a parreira, meu quintal, a laranjeira e o pé de caqui. Tudo mudou. Menos a criança dentro de mim que continua esperando o Natal, os sorrisos, as sombras do parreiral e as sobras do dia seguinte.

O tempo escorre pelos dedos como os bagos de uva que eu, impaciente, colhia antes da hora. Há no mundo uma pressa que não havia em Ibiá, uma urgência que desconhece o ritmo das estações, o ciclo natural do brotar, florescer, frutificar e descansar.

A parreira me ensinava, em silêncio eloquente, que toda espera tem sua recompensa, que todo inverno esconde uma primavera, que toda poda, por mais dolorosa que pareça, é apenas preparação para uma nova etapa da existência.

No Triângulo Mineiro, havia um outro triângulo: eu, a parreira e o céu infinito de Ibiá. Geometria perfeita que o tempo distorceu, mas que permanece intacta na dimensão da lembrança.

Deitado sob seus ramos entrelaçados, eu via o mundo através de um filtro verde, fragmentos de céu recortados por folhas rendilhadas, nuvens que passavam como pensamentos, o sol que brincava de esconde-esconde entre os cachos.

Minha mãe, sacerdotisa daquele templo doméstico, conhecia os rituais secretos do cultivo. Suas mãos, que afagavam minha cabeça com ternura, eram as mesmas que podavam a parreira com firmeza. "É preciso podar para que cresça mais forte", dizia. "A parreira sabe o que fazer, confia nela." E eu, que ainda não conhecia as dores necessárias da vida, duvidava daquela sabedoria cruel.

Hoje, quando abro a geladeira e encontro uvas que não cresceram sob meus olhos, sinto uma estranha mistura de gratidão e melancolia. Gratidão pela abundância dos tempos modernos. Melancolia pela perda da espera, do ciclo, do ritual, da conexão direta com a terra.

As uvas do supermercado são perfeitas, uniformes, sem manchas, sem personalidade. Não guardam em sua polpa o sol específico de um quintal em Ibiá. Mas quando as levo à boca, acontece o milagre: por um instante, sou novamente aquele menino deitado sob a parreira, olhando o céu através das folhas.

O tempo é um ladrão meticuloso. Leva primeiro os objetos pequenos, depois as pessoas, uma a uma, como quem colhe frutos maduros de uma árvore. Meus avós foram os primeiros a partir, depois meu pai, por fim, minha mãe, a podadora de parreiras, a cultivadora de filhos, a guardiã das estações.

A casa com alpendre foi vendida, o quintal virou cimento. Ibiá persiste no mapa, mas a Ibiá da minha infância existe apenas na cartografia imprecisa da minha memória.

Hoje, como médico e cronista, ausculto corações, trato infecções, observo o mundo e registro impressões. Mas há momentos que escapam às palavras, sensações que resistem às mais hábeis metáforas.

A medicina nos ensina que o corpo retém memórias. Talvez por isso, ao provar as uvas do supermercado, elas me transportem no tempo. A crônica me ensinou que o tempo não é linear, que passado e presente se entrelaçam como ramos de parreira.

Às vezes, no meio do dia, fecho os olhos e volto ao quintal de Ibiá. Sinto o cheiro da terra úmida depois da chuva, ouço o zumbido das abelhas em torno dos frutos maduros. É como se houvesse em mim uma geografia secreta, um mapa cujas coordenadas apontam sempre para aquele quintal.

No supermercado, escolho uvas como quem seleciona lembranças. Prefiro as imperfeitas, as que têm personalidade. E quando as provo, acontece o milagre cotidiano: o tempo se dobra sobre si mesmo, e eu sou, simultaneamente, o homem de hoje e o menino de Ibiá.

Natal se aproxima. As ruas se enfeitam, as lojas enchem. Mas dentro de mim, o Natal ainda tem gosto de uva colhida com as próprias mãos, cheiro de terra molhada, som de risos ao redor da mesa simples e o estrondo dos trovões anunciando as tempestades de verão.

E talvez o verdadeiro milagre seja este: que apesar das perdas, das distâncias, das mudanças, algo permanece intacto dentro de nós, como uma muda, que guarda em si toda a possibilidade de uma nova parreira.

O menino de Ibiá que ainda vive em mim saúda o menino ou a menina que vive em você, e, juntos, por um instante, nos abrigamos sob a mesma parreira, olhando o mesmo céu através das mesmas folhas, esperando o mesmo Natal que sempre chega e nos surpreende com sua velha magia. Feliz Natal!

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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