Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

A peste: um infectologista digladiando com um parasita milenar

A pulga me ensinou que, às vezes, o menor dos seres carrega mistérios milenares. E não seria essa, afinal, a mais bela metáfora da vida?

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Há alguns dias, senti algumas picadas na minha perna, que não faziam parte do previsto. Ando de calça comprida e moro no 20º andar. Pernilongo por aqui é raridade. Certo dia, acordei à noite e parti à procura do meliante que me sugava e acordava com um prurido típico das vítimas de vampiros. Estranho, pensei, não ouvi o som de pernilongos. Deve ser esse zumbido crônico que não me larga. Escutar pernilongos já se tornou um privilégio.

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Vasculhei todos os cantos e nada. Conformei-me e, vencido pelo cansaço, apaguei. Na manhã seguinte, assentado no trono e com o ar de paisagem que nos absorve nesse instante sublime, avistei no chão uma formiga. Visita inesperada que contrastava com o chão de mármore branco. Tive clemência daquele ser inusitado. Deve estar perdida, pensei. Mas, de repente, a formiga pulou com uma competência de um atleta olímpico. Foi só no segundo pulo da “formiga” que meus neurônios se conectaram: É pulga, caramba!! Parti para uma luta corporal com a meliante e finalmente a abati com a ponta do dedão.

Como não tive tempo para interrogá-la, comecei a fazer conjecturas sobre a origem daquele ser, que agora fazia todo sentido com as minhas lesões nas pernas e a noite insone. O bicho deve ter vindo dos cachorros do meu próprio prédio. Pouco provável. Eles circulam pelo elevador de serviço e se bobear são até mais limpos do que eu. Os cachorros que circulam no pátio externo do Hospital da Baleia? Pode ser! Ontem, estavam todos deitados debaixo do meu carro. Tive que convencê-los a sair de lá à base de jatos d'água. Eles revidaram com essa arma quase letal: a pulga. Contentei-me com essa possível origem da pestilenta.

As pulgas já causaram a morte de milhares de pessoas nesse planeta. São ectoparasitas e sugadoras profissionais de sangue. Existem mais de 2.500 espécies. As três espécies de pulgas mais importantes, em termos de saúde pública global e relevância veterinária, são a pulga doméstica (Pulex irritans), a pulga do rato oriental (Xenopsylla cheopis) e a pulga do gato (Ctenocephalides felis). A pulga chigoe ou jigger (Tunga penetrans) é o famoso bicho de pé. Sim, ele é uma pulga.

E não foram meros milhares, mas dezenas de milhões de vítimas fatais! Quem diria que um ser tão diminuto, capaz de saltar 200 vezes a altura do próprio corpo, seria o vetor da mais devastadora pandemia da história. A Peste Negra, essa dama macabra do século 14, não precisou de comitê de crise ou coletiva de imprensa para anunciar sua chegada. Simplesmente deixou que suas embaixadoras, as pulgas, fizessem o trabalho.

Ainda hoje a peste faz vítimas em algumas regiões do planeta. No Brasil, o último caso registrado foi em 2005, ironicamente em Pedra Branca, no interior do Ceará.

Enquanto eu contemplava o cadáver do meu algoz esmagado no mármore branco, refleti sobre a ironia daquele momento: um infectologista digladiando em seu íntimo com um parasita milenar.

Curioso como o incômodo desse pequeno ser transcendeu o físico e alcançou o metafórico. "Estar com a pulga atrás da orelha" – essa expressão que todos usamos quando a dúvida nos corrói. Trata-se de uma pulga imaginária. Uma paranoia que só conseguimos esmagar com o dedão do pé do psiquiatra. Somos seres tão complexos que transformamos em linguagem aquilo que nos atormenta.

É curioso como hoje recebemos nossos amigos caninos em nossas camas, oferecemos rações gourmet e até mesmo festas de aniversário com bolos personalizados, enquanto ignoramos solenemente que eles podem ser portadores ambulantes de pulgas.

Há uma certa dissonância cognitiva em nossa sociedade moderna. O mesmo ser humano que se banha em álcool gel ao menor espirro do colega não hesita em deixar que seu labrador lhe dê lambidas no rosto após uma detalhada investigação olfatória no traseiro de outro cão.

A peste bubônica, essa prima distante e mal-humorada da COVID-19, matou cerca de 75 milhões de pessoas em plena Idade Média, quando a população mundial não chegava a 500 milhões. Imagine o equivalente hoje, com nossos quase oito bilhões de habitantes. Seria como eliminar toda a população da China e mais uns dois países pequenos.

E o que fazemos nós, humanos do século 21? Compramos caminhas ortopédicas para nossos pets, enquanto negligenciamos a possibilidade de estarem trazendo para dentro de casa pequenos acrobatas sedentos por sangue e ainda Candida auris no ouvido. Esse fungo, para o qual praticamente não temos tratamento eficaz, costuma colonizar o ouvido de cães. A mesma espécie que desenvolveu antibióticos, vacinas, enviou robôs a Marte e criou a internet ainda se deixa surpreender por parasitas que já estavam por aqui quando os dinossauros faziam a festa.

Como diria minha avó, "Não é a cobra que te mata, é o mosquito". Eu acrescentaria: "E a pulga que me fez coçar às três da manhã e me roubou o sono".

Talvez a verdadeira lição da pulga seja a de nos mostrar que a grandeza não está no tamanho, mas na capacidade de deixar marcas. Minhas pernas que o digam. Enquanto escrevo esta crônica, olho pela janela e me pergunto: quantas outras pequenas criaturas invisíveis aos nossos olhos estão, neste exato momento, reescrevendo silenciosamente a história da humanidade? A pulga me ensinou que, às vezes, o menor dos seres carrega mistérios milenares. E não seria essa, afinal, a mais bela metáfora da vida? Nesse minúsculo ser, esconde-se o segredo do universo inteiro. Aqui fico eu, refletindo e velando o cadáver de uma pulga.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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