A tradição em Santa Luzia remonta à década de 1940 -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

"As celebrações da Semana Santa e Páscoa foram marcantes na minha infância. Já fui metade dos apóstolos de Cristo, os quais eram distribuídos por sorteio. Ninguém queria ser Judas".

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As celebrações da Semana Santa e Páscoa foram marcantes na minha infância. Minha mãe era uma católica fervorosa e meu pai um cético convicto. Confrontando o ceticismo do meu pai e aliado da minha mãe, estava o padre Agostinho Klinger, pároco alemão de Ibiá (MG), que falava um português quase incompreensível, mesmo depois de décadas no Brasil. Missa em latim ou em alemão não fazia muita diferença, ironizava o meu pai.

Independentemente da discussão filosófico-religiosa, cabia a mim ser personagem da Cerimônia do Lava-pés. Já fui metade dos apóstolos de Cristo, os quais eram distribuídos por sorteio. Ninguém queria ser Judas.

Ali pelos 9 anos, o destino quis que eu fosse sorteado para ser o crápula que entregou Jesus aos romanos. Minha mãe protestou e até tentou virar a mesa, mas para o rigoroso padre alemão – “regras nom mudá”.

Nas celebrações anteriores, a batalha dela contra o meu poderosíssimo chulé era obsessiva e começava duas semanas antes. Tinha que lavar os pés duas vezes ao dia e mantê-los de molho em água com Lysoform por 10 minutos no mínimo. Tortura quase que insuportável para quem só pensava em jogar futebol com o velho e bem adaptado ténis Bamba, reservatório de mágicos fungos craques de bola.

Não entendia o motivo, mas nessas épocas do ano meu pai sempre me incentivava a usar uma galocha de borracha para ir à escola, a qual era aliada do tênis Bamba na contramão do Lysoform. Os fungos nadavam de braçada.

Quando fui Judas, meu último personagem de destaque no teatro bíblico, minha mãe ficou tão desapontada que se esqueceu um pouco dos cuidados com os meus pés, o que não me incomodou em nada. Pelo contrário, estava até curtindo ser Judas.

No dia anterior à cerimônia, como de costume, o padre Agostinho sempre alertava as mães para o cuidado com os pés dos apóstolos: “Padre non gostar de chulé. Padre gostar e beijar só de pé limpinho”.

Recado dado e não bem captado pela minha mãe. Para o meu pai, eu estava perfeito. Afinal, conhecendo o padre Agostinho, com o qual jogava longas partidas de xadrez, o aroma no ambiente não era dos melhores. Além disso, o velho pároco gostava de vinho e queijos bem curados, os quais lhe conferiam um hálito por vezes demoníaco.

Pois bem, chegou o grande dia! Palco montado no altar da igreja, portas e janelas fechadas por causa das águas de março, que marcavam o fim do verão. Lá fui eu com meu velho Bamba, vestido de Judas. Meu pai fez questão de me acompanhar, o que jamais havia acontecido. Tudo transcorria normalmente até o momento em que o padre desatou o nó do cadarço do Judas e sentiu o poder micológico que estava por enfrentar. Com o cuidado de um desarmador de bombas, removeu lentamente o tênis do alcaguete de Cristo. Sentiu o golpe!

Deu um pulo para trás e disse: “Judas, que isso?! Quer matar a padre também?!”.

O aroma se espalhou por toda a igreja e as portas e janelas tiveram que ser imediatamente abertas. O olhar do padre fuzilou a minha mãe, que voltada para São Sebastião, agradecida pelo filho que lhe havia presenteado, apesar do chulé. Meu pai, não se aguentando de rir, saiu de fininho.

Ao final, padre Agostinho pediu desculpas aos fiéis pelo chulé do Judas: “Ele ser Judas, representar bem sua papel”.

Minha curta carreira teatral terminou nesse dia. Os fiéis e o padre deram graças a Deus! Graças a Judas e aos fungos, nunca mais fui escolhido para ser apóstolo. Entretanto, jamais me esqueci das palavras atribuídas a Jesus (Lucas:22:19):

“Isto fazei para a minha memória”.