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Símbolos de luta, amor e tolerância

Átila e Wander são namorados e moram na rua. O primeiro, cruzeirense fanático; o segundo, atleticano 'desde que nasceu'. E o casal dá uma lição de o que é torcer em paz e harmonia


postado em 11/07/2019 04:06

"Não é para se levar a sério e querer matar o outro. Jogo é esporte. Cadê o amor? Esfriou. O povo está extrapolando já" Átila Souza Ferreira, 35 anos, cruzeirense "Jogo é uma bobagem, é uma diversão. Não é aquela coisa de: 'Ah, ele é cruzeirense, eu odeio ele, vou matar ele'. Não pode ser assim" Wanderlúcio Alves da Silva, 35 anos, atleticano (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


Átila Souza Ferreira, de 35 anos, foi abandonado no lixo com poucos dias de vida, em Vitória, capital do Espírito Santo. É cruzeirense fanático. Wanderlúcio Alves da Silva, também de 35, foi encontrado ainda bebê numa feira ao ar livre, em Belo Horizonte. É atleticano. “Desde que eu nasci”, vibra. Ainda bebês, foram resgatados por famílias que os adotaram e os criaram. O fim da infância dos dois, porém, veio acompanhado de mais abandono.

“Um policial militar me pegou para criar. Quando eu tinha 12 anos, ele me expulsou de casa, porque falei que eu era homossexual”, relembra Átila, que chegou a voltar para a família que o acolhera, mas por pouco tempo.

A história de Wanderlúcio, ou apenas “Wander”, como é chamado pelos amigos, não é muito diferente: “Fui encontrado na feira de chuchu, no sacolão. Meu pai e minha mãe me adotaram. Quando eu tinha 11 anos, minha mãe morreu, e meu pai me mandou embora de casa. Vim morar na rua”.

Tempos mais tarde, quando ambos tinham 22 anos, essas histórias tão parecidas se encontrariam, como num roteiro de filme. Nas ruas de BH – onde vivem atualmente em uma barraca que dividem –, superaram o frio, a chuva, a fome, o desemprego. E passaram a viver um amor improvável, reaquecido às vésperas do clássico pela Copa do Brasil.

“Vai ser 2 a 1 para o Galão da Massa. Depois de quinta-feira, vou te dar um ombro para chorar (risos)”, brinca Wander. “Para, para, para. O Cruzeiro vai ganhar de 4 a 2”, rebate Átila, num dos vários momentos de demonstração de afeto entre os dois.

DESTINO O ano é 2006. Wander caminhava pela Avenida Dom Pedro II, nas proximidades do Bairro Bonfim, Região Noroeste de Belo Horizonte. Carregava com ele pacotes de salgadinho e pipoca, além de um isopor com água mineral – produtos que vendia para sobreviver. Enquanto recebia o pagamento de um cliente, um olhar lhe chamou a atenção.

“Num olhar, a gente pegou e começou a conversar. Ele estava indo para uma direção e eu estava numa esquina. O olhar dele se desviou e veio até mim. Olhou, focou, gostou, acabou. Pronto. E até agora, até hoje. Tivemos idas e vindas, sempre, mas toda ida e vinda foi bem edificante”, conta, sorridente, Átila ao olhar para o namorado.

“Nós resolvemos colar um com o outro para podermos levantar, né?”, relembra Wander. Enquanto contava, interrompeu a história para dar bronca: “Parem vocês dois de bagunça, vocês dois. Para com isso!”. A ordem era para dois dos “filhos” do casal. No total, são quatro: Lourenço, Luigi, Leopardo e Black, os agitados cachorros que eles adotaram.

“Um nós achamos no lixo, o outro achei também no lixo há quatro anos, este nós ganhamos de uma dona. Este aqui a dona ia jogar no Rio Arrudas, mas ele (Átila) pegou da mão dela”, diz Wander.

É o amor pelos “filhos” que os mantém nas ruas. “Não existe abrigo que tem cachorro. Não existe. Eu falo que são meus filhos. Mas não tem abrigo que os aceite. Se não aceitam, eu também não vou”, avisa Átila.

Enquanto isso, continuam pelas ruas de BH. Wander trabalha com venda de materiais recicláveis. Átila ainda não conseguiu um emprego formal desde que, há quase um ano, deixou o restaurante em que trabalhava.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil tinha 101.854 pessoas em situação de rua em 2015. O número cresce à medida que aumenta a taxa de desemprego, que atingiu 12,5% no trimestre de fevereiro a abril.

Átila e Wander buscam empregos formais para, eventualmente, alugar uma casa. Nas ruas, enfrentam o frio do inverno da capital mineira e a chuva: “É o pior de tudo”, diz o atleticano.

Homofobia Dados compilados pela ONG Grupo Gay da Bahia apontam que o Brasil registrou 420 mortes motivadas por LGBTfobia em 2018 – uma a cada 20 horas. De janeiro até maio de 2019, foram 141 casos, também de acordo com a organização.

No ambiente do futebol, casos de LGBTfobia são frequentes e naturalizados. No último dia 2, torcedores entoaram o grito de “bicha” no Mineirão sempre que o goleiro Armani, da Argentina, cobrava um tiro de meta na derrota por 2 a 0 para o Brasil, na semifinal da Copa América.

Em junho, o mês do orgulho LGBT, diversos clubes de futebol do país não se pronunciaram, embora se posicionem em outras causas sociais. Atlético e Cruzeiro também se calaram. Entre torcedores das duas principais equipes de Minas Gerais, é frequente o uso de cânticos ou gritos homofóbicos e machistas como tentativa de menosprezar os rivais.

Em meio a esse ambiente hostil, Átila e Wander surgem como símbolos de resistência e amor, embora não se posicionem dessa forma. O cruzeirense conta que, apesar de todos os problemas, é respeitado nas ruas pelos amigos.

“O povo aqui gosta de nós. O povo aqui sabe que nós somos um casal “diferente” [aponta para as camisas, para deixar claro que está falando dos clubes, não da orientação sexual]. Somos homossexuais e nos respeitam. Não tenho que ser atleticano ou ele ser cruzeirense ou palmeirense, torcer para o mesmo time. O que manda é o amor.”

E HOJE À NOITE? Embora o futebol seja uma paixão em comum, a rivalidade não foi um assunto que dominou as primeiras conversas do casal. “Começou com ele me fazendo raiva, ouvindo o jogo no celular. Ele me zoava demais”, diz Átila. “É, porque aí eu descobri que era cruzeirense. Até então eu não sabia que era cruzeirense. Ficava caladinho. Depois que descobri que era cruzeirense, acabou (risos). Agora é que vou zoar mesmo!”, responde Wander.

O clima para o jogo de hoje já é de provocação e ansiedade. “E que não passe disso”, alerta Átila. “Não é para se levar a sério e querer matar o outro. Jogo é esporte. Cadê o amor? Esfriou. O povo está extrapolando já”, completa. “Jogo é uma bobagem, é uma diversão. Não é aquela coisa de: ‘Ah, ele é cruzeirense, eu odeio ele, vou matar ele’. Não tem nada a ver não. Isso é bobagem de torcedor. Não pode ser assim”, reforça Wander. Juntos, os dois vão assistir ao jogo entre Atlético e Cruzeiro hoje, a partir das 20h.

Como ajudar Átila e Wander, assim como outras pessoas em situação de rua, receberam ajuda do Cruzeiro Social. “É um projeto de voluntários, um coletivo em que a gente está buscando e está conseguindo engajamento de várias pessoas de segmentos da sociedade para ajudar diversas iniciativas”, explica o empresário Christiano Rocco. O grupo auxilia pessoas com agasalhos e comida, além de realizar outros projetos de cunho social.

Quer ajudar? Entre na página do Cruzeiro Social no Facebook e contate os envolvidos no projeto.

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