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Christine Sinatra/Divulgação

Um dispositivo que lê a mente pode parecer ficção científica, mas, em tempos de avanço da inteligência artificial, pesquisadores da Universidade do Texas, em Austin (EUA), garantem que estão perto disso. Eles desenvolveram uma interface cérebro-computador capaz de captar pensamentos e traduzi-los em frases completas, com significado lógico. O experimento, que utiliza também o exame de ressonância magnética funcional (fMRI), foi descrito ontem, em um artigo publicado na revista Nature Neuroscience.

Segundo os autores, que participaram de uma coletiva de imprensa on-line, o decodificador foi desenvolvido para ler a atividade cerebral de uma pessoa e traduzi-la em linguagem natural contínua. Embora levante questões sobre privacidade, os cientistas garantem que, para funcionar, o equipamento depende da colaboração do voluntário. O objetivo da pesquisa também não é invadir a mente de ninguém, disse Jerry Tang, principal autor do estudo. "Eventualmente, esperamos que esta tecnologia possa ajudar as pessoas que perderam a capacidade de falar devido a lesões como derrames ou doenças como esclerose lateral amiotrófica (ELA)."

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Mas, diferentemente de outros dispositivos que já auxiliam pacientes dessas e outras condições neurológicas a se comunicar, a interface traduz qualquer pensamento que surja na mente, sem, necessariamente, que a pessoa se esforce para se fazer entender. "Também executamos nosso decodificador enquanto o usuário imaginava contar histórias e assistia a filmes mudos", disse Tang. "E descobrimos ele também é capaz de recuperar a essência do que o usuário estava imaginando ou vendo."


Treinamento


Assim, o dispositivo é capaz de capturar a essência do que uma pessoa está pensando, embora nem sempre as palavras exatas. "Por exemplo, a certa altura, um participante ouviu as palavras: 'Ainda não tenho minha carteira de motorista'. O decodificador traduziu o pensamento como: 'Ela ainda nem começou a aprender a dirigir'", contou Tang.

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Outro exemplo: quando o voluntário escutou a frase "Eu não sabia se gritava, chorava ou fugia; em vez disso, eu disse: 'Deixe-me em paz'", o aparelho traduziu como: "Começou a gritar e chorar, e então ela apenas disse: 'Eu disse para você me deixar em paz'". Porém, a tecnologia ainda é experimental e não está no ponto de ser aplicada fora dos ambientes de testes. Ela depende essencialmente do uso da máquina de ressonância magnética, observam os autores.

O treinamento do programa exigiu pelo menos 16 horas de participação de cada uma das três pessoas envolvidas na pesquisa. Para funcionar, a varredura depende da cooperação da pessoa, podendo ser interrompida por estímulos mentais que desviam o foco, como um barulho externo. Tang, porém, admite haver preocupações éticas a respeito do uso do dispositivo. "As limitações podem mudar à medida que a tecnologia melhora, por isso acreditamos que é importante continuar pesquisando as implicações de privacidade da decodificação do cérebro e promulgar políticas que protejam a privacidade mental de cada pessoa. Levamos muito a sério a preocupação de que possa ser usado para propósitos ruins e trabalhamos para evitar isso Queremos garantir que as pessoas usem esse tipo de tecnologia apenas quando quiserem e que isso as auxilie."

Evolução 

"Atualmente, a codificação de linguagem é feita com dispositivos implantados que requerem neurocirurgia. Nosso estudo é o primeiro a decodificar continuamente — significando mais do que palavras ou frases simples — atividades cerebrais de forma não invasiva, coletados com ressonância magnética funcional", explicou, na entrevista coletiva, Alexander Huth, professor de neurociência e ciência da computação na Universidade do Texas. Outros equipamentos que usaram gravações do tipo limitaram-se a traduzir palavras ou sentenças curtas, afirmou.

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"Nosso sistema realmente funciona no nível das ideias, da semântica, do significado", diz Huth. A ressonância magnética funcional mede as mudanças no fluxo sanguíneo e na oxigenação nas regiões cerebrais e redes associadas ao processamento da linguagem. "Essa é a razão pela qual o que divulgamos no artigo não são as palavras exatas que alguém ouviu ou falou. É a essência. É a mesma ideia, mas expressa em palavras diferentes", observa.

O dispositivo ainda precisa ser aprimorado. "O programa é excepcionalmente ruim em pronomes e requer ajustes e testes adicionais para reproduzir com precisão palavras e frases exatas", assinala Huth. Além disso, requer o uso da máquina de ressonância, um equipamento que pesa 6 mil quilos. Os pesquisadores acreditam que será possível utilizar o decodificador em sistemas mais portáteis, como a espectroscopia funcional de infravermelho próximo (fNIRS). "O fNIRS mede onde há mais ou menos fluxo sanguíneo no cérebro em diferentes pontos no tempo, o que, ao que parece, é o mesmo tipo de sinal que o fMRI está medindo", afirma o cientista.

"Como costuma acontecer com qualquer avanço tecnológico, este também levanta um alerta de responsabilidade", ressalta David Rodríguez-Arias Vailhen, professor de Bioética da Universidade de Granada, na Espanha, citado pela agência de notícias France-Presse. "Se uma máquina pode acabar lendo sua mente, uma vez treinada, pode ser possível — involuntariamente e sem o seu consentimento (por exemplo, enquanto você dorme) — traduzir trechos de seus pensamentos. Nossa mente tem sido até agora a guardiã de nossa privacidade. Podemos guardar zelosamente certos pensamentos para nós mesmos, os mais indizíveis, se quisermos. Essa descoberta pode ser um primeiro passo para comprometer essa liberdade no futuro", acredita.