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Estado de Minas COMPORTAMENTO

'Fui tratado como macaco de circo': a infância traumática de criança superdotada

Superdotação transformou infância do espanhol Javier González Recuenco em um 'inferno'. Agora, ajuda outros que, como ele, têm um cérebro que nunca desliga


20/06/2022 11:07 - atualizado 20/06/2022 12:26

Javier González Recuenco
Superdotação transformou infância do espanhol Javier González Recuenco em um "inferno" (foto: Javier González Recuenco)

O espanhol Javier González Recuenco rapidamente percebeu que não era como o restante das crianças de sua escola. Por causa disso, foi vítima de bullying por anos e viu sua infância se transformar em um inferno. Sem família ou apoio educacional, ele conseguiu dar a volta por cima e aprender a viver com superdotação por conta própria.

Agora, com 51 anos, casado e pai de três filhas, ele ajuda outros como ele.

 



Recuenco é, atualmente, presidente — na Espanha — da Mensa, a associação internacional para superdotados, e participa de projetos como o documentário Las zebras, estopim para um debate naquele país europeu sobre como melhorar a vida de crianças superdotadas e de alta capacidade.

Leia também: QI acima da média: o universo dos superdotados

 

A BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Javier González Recuenco sobre sua vida. Confira seu relato.

É terrível viver com um cérebro em operação contínua. Tenho uma anedota muito curiosa.

Meus colegas, meus sócios e as pessoas com quem trabalhamos não se preocupam mais quando estamos em uma reunião e estou fazendo outra coisa no meu celular. Todos sabem perfeitamente que estou envolvido no assunto. É como se você tivesse excesso de energia constante ou espaço no disco rígido e isso é terrível.

É como uma espécie de hamster que está constantemente girando em uma roda. E não para.

Colocar a mente em branco é muito complicado. É como se você tivesse uma gaiola de grilos que é caótica e impossível de manter coberta em silêncio, por assim dizer. Isso é todo dia, o tempo todo. Quando você adormece, o que acontece é que seu corpo entra em colapso fisicamente. Mas não é que você tenha alcançado a paz de espírito.

Não há maneira para gerenciá-lo. Mas também não posso dizer que se trata de um inferno. Você se acostuma e pronto. Claro, você tem que se cercar de pessoas compreensivas. Elas têm que entender que você faz essas coisas inconscientemente.

As pessoas ficam surpresas quando veem que você parece estar distraído ou fazendo outra coisa. Normalmente você tem que ter o cuidado de seguir algumas cortesias humanas básicas, porque as pessoas gostam quando olhamos nos olhos delas, para ter a sensação de que elas têm toda a sua atenção. A linha entre superdotação e a Síndrome de Asperger é bastante tênue.

Infância

Quando criança, não tinha consciência de ser superdotado, embora começasse a ver sinais estranhos. Me tiraram de onde eu fazia creche (pré-escola, 3 a 5 anos) e me colocaram para ler com os alunos do segundo ano (7-8 anos). Sabia todos os nomes e sobrenomes dos meus colegas. Há uma série de coisas para as quais você não dá importância nessa idade, nem tem consciência disso.

Minha infância foi bastante aterrorizante. Por isso, não cobro quando presto aconselhamento a pais de crianças superdotadas — gostaria que alguém tivesse feito isso com meus pais.

Nasci como uma espécie de alienígena. Meus pais são de duas pequenas cidades em Cuenca (centro-leste da Espanha).

Depois de dois anos em Madri, passei três anos na cidade de meus avós, Valera de Abajo, em Cuenca. Uma cidade de 2 mil habitantes. Ali, de alguma forma eu me sentia feliz, mesmo começando a ter problemas, porque obviamente já estavam ocorrendo coisas estranhas como só tirar nota dez ou querer organizar a biblioteca da escola.

Saí de lá sem nenhum tipo de treinamento físico e desembarquei aos 12 anos, em 1982, em uma escola de Madri com uma hierarquia muito forte baseada na educação física, a escola Valdeluz.

Sempre comento que há dois momentos críticos na infância das crianças superdotadas. Um é quando eles aprendem a andar de bicicleta.


Javier González Recuenco com seu irmão menor
Javier González Recuenco com seu irmão menor (foto: Javier González Recuenco)

Qualquer coisa que fazemos, fazemos bem rapidamente. No entanto, a bicicleta é a primeira coisa a que você tem acesso quando pequeno que implica coisas como coordenação, equilíbrio... que não têm nada a ver com sua capacidade mental.

A grande maioria tenta uma vez, cai, tenta de novo, cai e na segunda vez que cai diz que não gosta de andar de bicicleta, porque não gostamos de nos sentir incompetentes, não estamos acostumados a aceitar nossas limitações.

O outro momento crítico é trabalhar em grupo.

Há um certo momento em que o trabalho em grupo começa a aparecer na vida da criança e ela vê o trabalho de seus colegas e não acredita. Achamos que se trata de algum tipo de piada ou algo assim.

Não é muito complicado entender porque você acaba não se tornando a pessoa mais popular da classe. Se você não é particularmente atlético ou de alguma forma não tem um conjunto de habilidades que compensem esse seu jeito, sua infância pode se tornar muito complicada. Esse foi o meu caso.

Bullying na escola

Não tinha a sensação de ser diferente até chegar a Madrid. Percebi que era diferente da pior maneira. Passei a sofrer bullying — fui alvo de insultos e agressões.

Foi bem difícil. Nesses momentos você se sente muito mal. Você tem a sensação de que seus pais não sabem de nada. Mostrava o boletim escolar a meus pais, eles ficavam felizes com as minhas notas altas e me davam um beijo na testa, enquanto eu só pensava em me jogar debaixo do próximo ônibus.

Quando você tem essa idade, a escola é toda a sua vida e se a escola é um inferno, toda a sua vida é um inferno.

Com o tempo, melhorei do ponto de vista físico. Aos 14 anos, não me destacava, mas já não era mais o saco de batatas de quando cheguei. O problema é que falava de uma forma muito afetada. Tinha uma voz sibilante. Você acaba sofrendo bullying por qualquer coisa, eles (outras crianças) sabem que você é diferente.

Apesar de tudo, sou muito contrário a essas narrativas vitimizadoras de superdotação, porque há muitas pessoas que não sofrem o que sofri e se adaptam bem à vida na sociedade. A vida de superdotação não precisa ser um mar de dor. Mas sofri muito, porque o restante das crianças percebia que eu era diferente.

Quando completei 15 anos, cresci 15 centímetros em um ano e de repente percebi que a violência funciona. É triste, mas verdade. Descobri que se fui o melhor, agora vou ser o pior.

Decidi que a violência seria uma forma de me entrosar. De alvo de bullying, me tornei uma espécie de líder de um grupo de pessoas bastante complicadas.


Javier González Recuenco adolescente
Javier González Recuenco quando adolescente (foto: Javier González Recuenco)

Não sou o único com essa experiência aterrorizante. Meu amigo Pepe Beltrán, que está comigo na diretoria da Mensa, teve sua vida salva por um professor quando entrou no meio de uma sala de aula — seus colegas estavam enforcando-o com a corda da persiana.

Digamos apenas que para alguns de nós, a adolescência é um lugar cheio de lembranças ruins, porque as pessoas identificam rapidamente o diferente. Pelo menos isso acontece com os meninos, não sei muito bem qual é a dinâmica, por exemplo, com as meninas.

Lidando com a superdotação sozinho

Quando sofria bullying, nunca busquei apoio de professores ou de meus pais. Com o tempo, entendi. Tinha a sensação de que eles não tinham absolutamente nenhuma compreensão do que eu estava passando. Os professores, tampouco.

Não sei porque foi assim. Acho que tinha um profundo entendimento de que não receberia nenhum tipo de ajuda de nenhum deles. Ou simplesmente não ousava ou tinha vergonha de admitir que outras crianças estavam abusando de mim. Não sei, é um conjunto de coisas.

Também nunca falei com ninguém sobre minha intenção de me jogar debaixo de um ônibus. Poderia ter acabado sob as rodas de um ônibus? Sim, definitivamente.


Javier González Recuenco jovem
(foto: Javier González Recuenco)

Apesar de tudo, meus pais perceberam que era diferente, mas para eles, era uma espécie de macaco de circo. Era uma daquelas crianças que falavam muito bem, muito articuladas. Era capaz de recitar muitas coisas de memória. Meus pais ficavam encantados. Era um aluno muito bom, não dava problemas. Também não contei nada a eles sobre o que estava acontecendo na escola, para ser honesto.Nunca tive uma conversa aberta com eles sobre isso, porque por muito tempo foi algo que me machucou muito e não consegui processar. Agora que consigo processar, não sei...Nunca falei com meu irmão sobre o que estava acontecendo na escola também. Sei que pode soar estranho. Mas este foi um processo pelo qual decidi passar sozinho. Era dois anos e meio mais velho que ele. Quando pudemos falar sobre esse tipo de coisa, já tínhamos 20 e 17 anos, respectivamente. Já tinha enterrado tudo no meu passado. Falei com ele quando já tinha processado tudo.


Javier González Recuenco com sua família
Javier González Recuenco com sua família (foto: Javier González Recuenco)

Meu pai é uma pessoa que não lê nada, mas tem o curioso hobby de comprar livros. Uma das coisas que ele assinou por muito tempo foram alguns livrinhos que continham trechos de outros artigos que saíam em outras grandes publicações. Em um deles, havia um artigo sobre a Mensa e o li quando tinha 12 anos, mas naquele momento não fiz nenhum tipo de conexão mental.

Não entendia tudo o que estava acontecendo comigo até chegar à faculdade. Porque, durante meu ensino médio, embora eu nunca tenha ficado em recuperação, meu desempenho foi medíocre, porque estava muito ocupado sendo uma espécie de "valentão" nas ruas.

Quando entrei na faculdade raspando, não havia ninguém ali que eu tivesse de impressionar e eu podia me concentrar única e exclusivamente na minha tarefa. Terminei a licenciatura em Engenharia Informática sem esforço e depois fiz outra licenciatura, Administração de Empresas; esta à distância.

Maturidade

Meu pai era uma pessoa que teve trabalhos muito variados até conseguir começar a trabalhar na Telefónica (operadora). O sonho de toda a vida do meu pai era que eu trabalhasse na Telefónica.

Quando estava no primeiro ano da licenciatura, uma tarde ele me disse: "Ei, Javier, esta noite não chegue muito tarde, nem muito bêbado, porque amanhã você presta concurso". Tinha 18 anos. O concurso ao qual me inscrevi era de auxiliar de informática.


Javier González Recuenco mais velho
(foto: Javier González Recuenco)

Desde os 12 anos já me envolvia, possivelmente fugindo da realidade, em tudo o que tinha a ver com os primeiros computadores pessoais que chegaram à Espanha. Prestei concurso aos 18 anos, no primeiro ano da universidade. Cerca de 10 mil haviam se inscrito e eu terminei entre os 50 primeiros.

Percebi que trabalhar para a Telefónica me dava acesso a todos os computadores que eu queria e permaneci nesse emprego. Passei alguns anos na empresa, onde também fui um dos fundadores da Telefónica Data (subsidiária do Grupo Telefónica) em 1995. Mais tarde, em 2002, montei uma start-up.

No escritório, me tornei uma espécie de bichinho esquisito, porque tinha 19 e 20 anos, e entendia de computadores como ninguém. Enquanto o restante das pessoas que trabalhavam ali eram engenheiros de telecomunicações na casa dos 40 ou 50 anos, que não haviam tido acesso a computadores nem estavam tão à vontade quanto eu.

Acho que foi aí que percebi que isso poderia ter algo a ver com o artigo que li quando tinha 12 anos e liguei os pontos. Procurei ver se havia algo assim na Espanha e descobri que eles estavam aqui desde 1984. Foi quando decidi me candidatar à Mensa, onde fiz as provas e entrei, em 1992.

Entrei na Mensa quando já tinha terminado minha via crucis. Já tinha processado tudo na minha cabeça. Como disso, foi um processo completamente individual. Assim que cheguei onde cheguei e internalizei e digeri, poderia ter me perdido a qualquer momento. Poderia ter me jogado debaixo de um ônibus, poderia ter me acabado nas drogas, poderia ter me acabado no álcool.


Mulher e três filhas de Javier González Recuenco
Mulher e três filhas de Javier González Recuenco (foto: Javier González Recuenco)

Tenho três filhas, de 14, 13 e 7 anos. Uma com certeza é superdotada e as outras duas, provavelmente, também são.

Necessito que elas sejam crianças e se desenvolvam emocionalmente. Mas converso muito com a que é claramente superdotada. É importante que elas entendam que há mais delas no mundo e que somos nós que temos que nos adaptar.

Se tivesse tido apoio, isso teria me poupado de muitos problemas.

E mesmo assim, ela tem problemas de integração e enfrenta outras dificuldades na hora de fazer as coisas, porque empatia básica não é comum em dinâmicas de grupo. O grupo trabalha em uma velocidade e você em outra. Isso sempre cria atrito. Mas ela não tem o nível de desamparo e falta de compreensão do que está acontecendo que eu tinha. Ela está numa condição melhor do que eu.

Se você tem um filho superdotado e com altas capacidades e não sabe como agir, Javier González Recuenco recomenda:

  • Deixe-os serem crianças e não os sobrecarregue com aulas extracurriculares como idiomas ou instrumentos musicais.
  • Incentive-os a explorar e tente oferecer-lhes o máximo de oportunidades possíveis para explorarem, mas sem a obrigação de maximizar suas qualidades.
  • Tente localizar outras crianças como elas, para que saibam que não são as únicas no mundo

Você pode obter mais informações no site da Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação — APAHSD (https://apahsd.org.br)

'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61844810'

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