Dayanne Andrade

Dayanne Andrade, de 33 anos, recebeu aos 15 o diagnóstico de síndrome de Poland. Ela não tinha o seio direito, e só aos 19 pôde fazer a cirurgia plástica reparadora

Marcos Vieira/EM/D.A Press


Quando se fala em cirurgia plástica, está aberto o debate. Muito se discute sobre os exageros na busca por procedimentos estéticos, em grande parte uma procura por padrões de beleza propagados nas redes sociais, e muitas vezes uma perfeição irreal. Afinal, com filtros, tudo é maravilhoso.

Por outro lado, algumas características físicas podem, de fato, gerar sofrimento, e ser um fator de adoecimento psicológico, ou até físico. Nesse contexto, a cirurgia plástica acaba se tornando uma necessidade, uma condição mesmo para se ter dignidade, melhorando a autoestima.
 
A Comissão de Assuntos Sociais do Senado, por exemplo, recentemente aprovou uma lei que deve tornar obrigatória a cirurgia plástica de lábio leporino pelo SUS em bebês recém-nascidos. Nesses casos, não operar pode desencadear na criança pneumonia aspirativa, dificuldade de falar e de se alimentar.

Outro exemplo são as cirurgias corretivas de redução de mamas em meninas que têm o desenvolvimento exagerado, ou para corrigir as chamadas orelhas de abano, condições que também podem desencadear situações de bullying na escola, pensando em apenas esse aspecto.
 
Lidar com um complexo é tão difícil quanto lidar com uma doença, diz a cirurgiã plástica Cíntia Mundin, diretora da Clínica Metta – Cirurgia Plástica e membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Qualquer coisa que incomode ou tire a paz da pessoa quando se vê refletida no espelho deve ser tratada.

"Existem complexos que são capazes de tornar o indivíduo um ser antissocial e gerar sofrimento. Vejo todos os dias a transformação que a cirurgia plástica pode fazer na vida das pessoas. É maravilhoso ver como a autoconfiança pode transformar a vida de alguém. A cirurgia plástica não muda só os corpos, muda a mente das pessoas", salienta.
 

"Toda cirurgia que conserta algo que esteja fora do padrão, ou que incomode a pessoa, deve ser considerada uma cirurgia reparadora. No mínimo, ela vai reparar a autoestima do paciente. Uma orelha em abano pode causar traumas irreversíveis a uma criança"

Cíntia Mundin

 
 
cirurgiã plástica

Lidar com um complexo é tão difícil quanto lidar com uma doença, diz a cirurgiã plástica Cíntia Mundin

Leca Novo/Divulgação
A cirurgia plástica busca promover saúde, funcionalidade e felicidade para o paciente, continua a especialista, que, dessa maneira, não considera que há distinção da cirurgia plástica reparadora para cirurgia estética. "Toda cirurgia que conserta algo que esteja fora do padrão, ou que incomode a pessoa, deve ser considerada uma cirurgia reparadora. No mínimo, ela vai reparar a autoestima do paciente. Uma orelha em abano pode causar traumas irreversíveis a uma criança", exemplifica.
 
Cíntia conta que operou um adulto, pai de dois filhos, que relatou que a orelha foi um fardo que carregou a vida inteira, motivo de sofrimento. "Tem como imaginar o alívio desse paciente e sua alegria ao se ver livre desse complexo? Assim como uma mama exageradamente grande ou defeituosa, pode acarretar até mesmo uma depressão em uma adolescente. A cirurgia plástica é capaz de 'tirar com a mão' a dor das pessoas. Um complexo causa uma dor importante ao paciente."

EXCESSO Por outro lado, quando o exagero se torna uma doença, Cíntia pontua que um cirurgião plástico ético não pode ceder aos excessos do paciente. Existem doenças psiquiátricas, como compulsão ou obsessão, ela cita, além da dismorfofobia, distúrbios que devem ser diagnosticados pelo cirurgião plástico.

"Cabe a ele dizer não aos exageros do paciente que sofre desses transtornos, além de encaminhá-lo para tratamento psiquiátrico", pondera. "Não vejo como errado tratarmos algo que nos incomode, mas é muito importante elucidar ao paciente que não existe perfeição na vida real, só na digital", continua.
 
E está aí outro debate central. O perigo de não saber identificar o limiar entre a realidade e os filtros das redes sociais, o que leva muitas pessoas a acreditarem que a realidade virtual é a verdadeira realidade. "O bom senso e a distinção entre o real e digital devem ser algo debatido e explicitado à população de maneira sistemática. Na minha opinião, isso já é uma questão de saúde pública, e merece ser abordado como tal", continua a cirurgiã plástica.
 
A síndrome de Poland é uma anomalia congênita caracterizada principalmente pelo desenvolvimento defeituoso ou incompleto de tecido ou órgão, que afeta a musculatura torácica de forma unilateral, ou gera encurtamento dos membros superiores. É uma condição rara, pouco relatada na literatura médica (há pouco conhecimento sobre o problema), que acomete mais os homens.
 
Foi esse o diagnóstico que a empreendedora do mercado sensual Dayanne Andrade, de 33 anos, recebeu aos 15. A partir dessa época, na adolescência, quando se dão as mudanças no corpo, ela percebeu que a mama direita não crescia. Ela não tinha o seio direito, e só aos 19 anos pôde fazer a cirurgia plástica reparadora. A janela entre a detecção do problema e o procedimento se deu porque era preciso esperar a conclusão do desenvolvimento da mama esquerda, a mama normal.

VERGONHA Foi uma época complicada, lembra. "Na escola, andava só de blusa de frio, moletom, mesmo se estivesse o maior calor. Tinha uma professora que questionava a roupa, mas eu não tirava, e também não explicava o porquê. Ninguém sabia da síndrome, a não ser minha família. Também evitava o contato físico, não abraçava ninguém, usava sutiã com enchimento, e nunca decote. Tinha muita vergonha e problemas na autoestima. Ficava me escondendo mesmo, me perguntava 'por que eu?'. O medo era que meus colegas descobrissem e eu virasse a 'monoteta'."
 
Ela conta sobre reparar sempre nos seios de mulheres que via nas ruas, e por isso não se sentia bem. Em 2007, Dayanne então passou pela cirurgia corretiva e colocou silicone no lugar da mama direita. À época, o procedimento tinha um valor elevado, e ela agradece à proprietária da clínica onde foi feito, que foi solidária com a sua situação, e pagou boa parte da cirurgia, dividindo os custos com Dayanne, sua mãe e seu irmão.
 
Depois da cirurgia, uma melhora visível. "Passei a me olhar no espelho e me ver como uma pessoa normal, sem deficiência. Me sinto leve, livre, nem uso sutiã. Gosto de usar blusa de alcinha, adoro abraçar as pessoas. Me sinto parte", diz. Dayanne também iniciou acompanhamento psicológico no processo da doença e segue com a terapia, ainda que agora os assuntos sejam outros – a síndrome já está superada.
 
Há 10 anos, Dayanne e o marido estão à frente da na Universo dos Prazeres, e atuam abordando temas sobre sexualidade e tabus. "Ele me ajudou muito em relação ao meu corpo, mas só me conheceu depois da cirurgia", diz.

FALTA DE INFORMAÇÃO Em 2020, a empreendedora publicou nas redes sociais um depoimento com a sua história, e só assim todos ficaram sabendo da sua experiência com a síndrome. Ela conta que até hoje recebe mensagens de diversas partes do Brasil e até do exterior de pessoas dizendo que têm o problema, mas não sabem onde e como buscar informações. "Essa é uma síndrome sobre a qual quase nada é falado."
 
Na publicação, Dayanne discorre sobre seu maravilhoso corpo, fora do padrão imposto pela sociedade. Conta sobre a síndrome, antes um segredo, mas para ela não é esse o motivo de não se enquadrar nos modelos sociais, e sim o corpo gordo. "Acredito que muitas pessoas, até mesmo os familiares próximos, não sabem da doença rara que tenho. Dos 15 aos 19 anos foi um período complexo. Desenvolvimento sexual, paquerinhas, adolescência. E eu tive que lidar com tudo isso, mas o que mais doeu nesse período não foi ter nascido sem o seio direito, foi o corpo gordo", escreveu.
 
Depois da cirurgia e com um lindo par de seios, como ela se refere, ainda assim estava fora dos padrões de uma sociedade gordofóbica, em suas palavras. "Ser fora do padrão que a sociedade colocou como correto me fez mudar diversas vezes para ser aceita, até que chegou um ponto em que eu não queria mais ser notada, nem vista, uma pessoa invisível. O jeito, na verdade, foi me aceitar e entender que ser único é perfeito. Eu não sou bonita só de rosto, não acho que preciso perder um pesinho para ficar melhor. Falar que eu perdi peso é mais ofensivo do que elogio (...) Eu sou maravilhosa em tudo, até no meu par de peitos", postou.