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Estado de Minas ENTREVISTA/GABRIELA PRIOLI

Prioli: "Podemos ter adversários na democracia, não inimigos"

Escritora e jurista explica o significado de ideologia e provoca o leitor a fazer reflexão sobre em que campo ele se encontra e a entender o país


03/12/2022 04:00 - atualizado 03/12/2022 14:03

Entender o conceito de ideologia de forma mais clara e tornar acessível a análise de como esse significado interfere em nossa vida é o cerne do novo livro da jurista, apresentadora e escritora Gabriela Prioli, intitulado “Ideologias”.

Nas páginas, Prioli faz uma viagem no tempo para explicar correntes como o liberalismo, conservadorismo e socialismo, fazendo o leitor refletir em qual campo ele se encontra, além de provocá-lo a entender as outras ideologias, com as quais ele, num primeiro momento, não concorda.

Ao Estado de Minas, a escritora afirmou que, ao ler o livro, é possível entender que conceitos do passado podem não ser os mais assertivos para analisar o presente e construir o futuro – que é preciso refletir como, dentro do contexto atual, as ideologias podem funcionar.

Confira alguns pontos da entrevista com Gabriela Prioli. A íntegra pode ser conferida no canal do Portal Uai no YouTube.

Queria que a senhora respondesse a um questionamento que está na primeira página do seu livro: “Ideologia, a gente realmente precisa de uma pra viver?”
A gente tem, invariavelmente, uma para viver. É claro que o termo ideologia não tem só um significado, então eu começo o livro falando sobre isso, sobre como os termos podem ter significados distintos em autores distintos e eu explico qual é o significado que a gente vai usar para construir a ideia desse livro, do “Ideologias”. E o significado que a gente usa, o nosso significado de ideologia, é uma forma de enxergar o mundo e pensar políticas públicas, que é partilhada por muitas pessoas. Então, pensando assim, todo mundo tem uma forma de pensar o mundo e pensar políticas públicas, então todo mundo tem uma ideologia, não tem por que a gente ter medo desse termo. Não tem por que a gente usar os rótulos ideológicos só para facilitar quem é amigo e inimigo, perdendo a oportunidade de se aprofundar um pouco mais, entender nuances, de pensar e expressar as nossas ideias com um pouquinho mais de alicerce para que a gente possa incentivar e alimentar o debate público, que é fundamental para a gente construir os caminhos que o Brasil precisa.

As pessoas conseguem entender o que é ideologia ou esse conceito ficou um pouco desgastado?
Acho que elas conseguem. Acho que capacidade todo mundo tem para entender. Acho que o conceito foi instrumentalizado para fins nefastos, no sentido dessa divisão entre amigo e inimigo, que é uma divisão ruim para a democracia. Podemos ter adversários na democracia, mas não podemos ter inimigos. E, muitas vezes, mesmo a pessoa tendo capacidade de entender, às vezes, a forma como o assunto é comunicado, que não chega em tanta gente. Nem sempre a gente compreende um vocabulário diferente do nosso. Daí a opção pelo livro; minha opção é sempre por uma linguagem mais clara, mais acessível.
Gabriela Prioli
Gabriela Prioli (foto: reprodução/redes sociais)

A pessoa que lê o seu livro consegue identificar com qual corrente ideológica ela se identifica hoje?
Acho que sim. Falo que no livro eu gosto de provocar alguns nós na cabeça para depois a gente ir desatando esses nós. E por que provocar esses nós? Porque quando a gente simplifica demais esses conceitos, quando a gente esvazia os rótulos, muitas vezes a gente afirma o que é pela negação do outro. Então, você pensa: “Eu não sou isso, então automaticamente eu sou essa coisa”. Mas aí se alguém te pergunta por que você é essa coisa, aí fica mais difícil você justificar aquilo, porque lhe falta repertório. Com o “Ideologias” você não só vai conseguir se encontrar nas correntes que integram o liberalismo, o conservadorismo e o socialismo, mas você também vai perceber que para alguns assuntos as soluções propostas no passado não servem mais. Então, a gente tem outros desafios, outras perguntas que vão precisar de novas reflexões. Isso é muito importante. Entender ideologia é entender o contexto em que os pensamentos vão se formando. As ideologias se formam a partir de respostas às perguntas vivenciadas pelas pessoas em determinadas épocas.

Baseado nas definições que se encontram em seu livro, Bolsonaro conseguiu criar uma nova ideologia?
Acho que ele tem características próprias do nosso tempo, mas ele tem muito de reacionarismo. Apesar de se apresentar como conservador, e aí já tem uma provocação, quem fizer uma leitura atenta do livro vai ver que o conservadorismo nasce como uma reação ao ímpeto de mudança da Revolução Francesa, e uma reação, portanto, a essa mudança acelerada que não preserva a tradição, que não preserva o que já tem construído. E, de repente, surge alguém que se apresenta como conservador, mas quer mudar tudo que está aí. Não combina. Então, tem muito de reacionarismo, mas tem muito de um reacionarismo com traços do nosso tempo. Manipulação de notícias falsas com grande difusão pelas redes sociais, instrumentalização de um descontentamento causado por uma crise econômica que já dura algum tempo, uma sensação de vertigem decorrente de um mundo cuja a efemeridade está cada vez mais presente e gera em nós esse sentimento de medo e insegurança em relação ao futuro. Eu não diria que ele criou uma ideologia própria não, porque aí seria equiparar esse pensamento a pensamentos muito mais substanciais na história da humanidade.

Um dos capítulos do seu livro se chama “Tem muitas esquerdas dentro da esquerda”. É possível ver e analisar atualmente a fragmentação da esquerda e, creio que em 2018, isso ficou muito claro. Mas como entender essas muitas esquerdas dentro da esquerda?
Apesar de esse capítulo se chamar “Existem muitas esquerdas dentro da esquerda”, a gente poderia ter muitos outros capítulos também chamados “existem muitos conservadorismos dentro do conservadorismo”, “existem muitos liberalismos dentro do liberalismo”. Porque todas as macroideologias têm muitas nuances. É um grande guarda-chuva que vai embarcar várias correntes distintas, muitas vezes muito distantes uma da outra. Quando eu falo das muitas esquerdas dentro da esquerda, a gente precisa pensar que em todo campo político vai haver disputa. Disputa entre os atores e as lideranças por quem é o verdadeiro representante daquele espectro político. E, muitas vezes, as pessoas que se veem como integrantes do espectro político e são jogadas para fora dele por outras pessoas que pensam diferente, ainda dentro desse lugar, não entendem muito bem o porquê. Então, a gente entender que dentro da esquerda tem uma esquerda revolucionária, uma esquerda que começa a pensar o ideal socialista a partir da via democrática, mas ainda não abandona a via socialista. Depois você passa a ter um pensamento de esquerda, que se vê como de esquerda, mas que não quer a superação do capitalismo, mas sim um capitalismo mais humanizado. Se a gente pensar nas eleições deste ano, por exemplo, quando Lula apresenta a sua candidatura e defende um voto útil no primeiro turno, uma parte da esquerda mais à esquerda se posiciona em sentido contrário, defendendo um voto de convicção em candidaturas mais representativas, fazendo uma crítica a Geraldo Alckmin como vice. Então, (Temos) uma parcela da esquerda criticando uma candidatura vista como de esquerda, porque para essa parcela da esquerda ela foi para a direita demais.

Como é possível conversarmos sobre outras ideologias sem entrar em um embate ofensivo?
Nem todo debate é interessante. Então, tem alguns debates que a gente pode passar. Quando eu falo sobre debater com pessoas diferentes, as pessoas entendem isso como um chamado para que eu me engaje em toda discussão. Não funciona assim. Às vezes, a pessoa só quer visibilidade às suas custas. Às vezes, a pessoa só quer se exibir para a plateia do momento. Às vezes, ela não quer se engajar num debate propositivo. Mas se você encontrar pessoas que estão trocando com você num tom ameno e divergem de você em questões importantes, até, o que eu acho interessante que nós façamos, é olhar para o outro como alguém bem-intencionado, que quer também um mundo melhor. Mas que vê como caminho para um mundo melhor uma rota diferente do que a gente pensa. E aí é um passo de humildade. É você compreender que você não tem todas as respostas e não necessariamente está certo. É abrir a possibilidade de mudar de ideia. Quando a gente troca com alguém que pensa diferente, a gente pode ou mudar de ideia porque descobriu uma coisa nova ou reforçar ainda mais o nosso ponto de vista, melhorar a nossa argumentação a partir da compreensão da forma como o outro raciocina. É sempre bom, mas não são todas as discussões em que a gente consegue manter um grau elevado. Um exemplo disso foi que em determinado momento eu falei que não faria mais parte de um programa de debate, porque eu sentia que a minha participação naquele quadro equiparava duas coisas inequiparáveis. Um argumento, um ponto de vista com alicerce, com fundamentação, contraposto a algo sem nenhum alicerce, a um achismo, a uma informação não fundamentada, e ao fazer essa equiparação eu colaborava para que uma coisa que não tem nenhum lastro fosse vista como um argumento. E eu considerava que isso era ruim. Então, decido me abster desse debate. Mas eu debato muito com pessoas que pensam diferentemente de mim e acho essa experiência riquíssima.

Lula e Bolsonaro são os representantes da esquerda e da direita no Brasil hoje?
Isso é uma constatação. Foi o resultado que a gente viu nas eleições. As pessoas se organizaram, os campos e os espectros políticos se organizaram em torno de duas candidaturas para a Presidência da República, Jair Bolsonaro e o presidente eleito, Lula. Mas, dizer que essas são as duas únicas lideranças, que Bolsonaro e Lula representam em seus respectivos campos, gerando uma identificação absoluta entre quem está na esquerda e na direita com um ou outro, isso não é verdade. Existe muita gente que votou no Bolsonaro sem querer votar nele, mas que fez uma opção que considerou ser a menos pior, e teve gente que votou no Lula do mesmo jeito. Eu acredito, inclusive, que a gente vai ver muita disputa, já que o Lula já declarou que não vai disputar a reeleição, então terá a disputa pela sucessão do Lula. E também pela liderança dessa direita e eu imagino que vá surgir uma tensão possível entre o Tarcísio de Freitas, governador eleito de São Paulo, o Romeu Zema, governador de Minas Gerais, porque são duas lideranças que se apresentam como duas lideranças fortes da direita, e Bolsonaro, sem cargo público. Não sei se eles vão continuar amigos até 2026.


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