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Estado de Minas PRIMEIRO ANO DE GOVERNO

Tropeços na política externa de Bolsonaro enfraquecem Brasil

Com forte viés ideológico, atuação do Ministério das Relações Exteriores foi responsável por grande parte das polêmicas que marcaram o governo em 2019. Em muitos casos, porém, pragmatismo acabou prevalecendo, como no caso da China


postado em 26/12/2019 07:39 / atualizado em 26/12/2019 08:49

O presidente Jair Bolsonaro com o chanceler Ernesto Araújo: Itamaraty tornou-se palco da disputa de espaço entre olavistas e pragmáticos (foto: AFP / Sergio Lima)
O presidente Jair Bolsonaro com o chanceler Ernesto Araújo: Itamaraty tornou-se palco da disputa de espaço entre olavistas e pragmáticos (foto: AFP / Sergio Lima)

Polêmicas, amadorismo e recuos marcaram a política externa do governo Bolsonaro em 2019. Especialistas em relações internacionais, economistas e diplomatas afirmam que o Ministério das Relações Exteriores termina os primeiros 12 meses da atual gestão com a imagem desgastada — e internacionalmente enfraquecido.

Com declarações explosivas e, muitas vezes, impensadas, o presidente da República teve importante papel nesse desgaste, que começou ainda durante a campanha eleitoral, com afirmações do então candidato de que a China, nosso principal parceiro comercial, queria “comprar o Brasil”.

Posteriormente, o tom belicoso deu lugar a uma postura pragmática, e, pressionado pelo empresariado, preocupado com o risco de perder negócios bilionários, o governo voltou a tratar os chineses como parceiros.

O tom ideológico das ações da diplomacia brasileira é facilmente identificado. Bolsonaro recebeu e reconheceu o oposicionista Juan Guaidó como presidente da Venezuela. A ação não deu resultado e Nicolás Maduro continua firme no poder. O Brasil se alinhou incondicionalmente aos Estados Unidos e abandonou a postura histórica de condenar o embargo econômico a Cuba na Organização das Nações Unidas (ONU).

O alinhamento também não trouxe retorno prático. Pelo contrário. O presidente norte-americano, Donald Trump, chegou a anunciar a retomada das tarifas sobre o aço e o alumínio brasileiros. Num afago a Israel, Bolsonaro prometeu transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, desagradando os países árabes, importantes compradores da nossa carne.

Para muitos analistas, o ponto positivo nas relações internacionais foram os recuos a cada solavanco, crítica ou sinal vermelho no caminho. No caso da China, a rusga terminou com uma viagem presidencial ao país asiático e o compromisso dos dois Estados de estreitar ainda mais as relações. O acordo entre o Mercosul e a União Europeia avançou, mesmo com a troca de farpas entre Bolsonaro e o presidente da França, Emmanuel Macron, por conta do aumento das queimadas na Amazônia.

Para o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria, Gunther Ritcher Mros, há uma disputa de espaço entre pragmáticos e ideológicos no governo, e ela deverá continuar nos próximos anos.

“A política externa sofreu um solavanco como poucas vezes se viu na história do país. Tivemos um primeiro ano ideologizado, com uma pauta que não se sustenta. Agora, devemos observar, nos próximos 12 meses, um cabo de guerra entre aspectos ideológicos, econômicos e financeiros. Vamos ver quem tem mais força até o fim do governo”, avalia.


Guru na fita



Mros constata uma forte influência do filósofo Olavo de Carvalho, tido como guru de Bolsonaro, na escolha do assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Filipe Martins e do chanceler, Ernesto Araújo.

“Nesses primeiros 12 meses, a política externa brasileira começou de um jeito e terminou um pouco diferente. No início, sofria muita influência ideológica dos grupos que elegeram Bolsonaro. A ideia de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém é uma demanda evangélica, e o grupo do sistema financeiro, buscando uma pauta liberal, definiu o Mercosul como um bloco que retornaria às raízes econômicas, de livre comércio”, exemplificou.

De acordo com o professor, foi a ala olavista que influenciou o alinhamento com os Estados Unidos. “O governo aceitou um alinhamento sem reciprocidade. Mas, a ameaça de Trump de sobretaxar o aço causou desconforto na cúpula do governo brasileiro. É preciso esperar os próximos passos para saber para onde vai a relação com os EUA. O Brasil é um país grande e é natural que outras nações tenham paciência com as trapalhadas. O fator tempo ajuda. Todo governo passa. As relações entre países continuam”, diz.

A reportagem procurou o Itamaraty em sete ocasiões para comentar a política externa, mas o órgão não se dispôs a tratar do assunto.


Economia dita correção de rumos



Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano da Silva Cortinhas avalia que, ao se alinhar incondicionalmente aos Estados Unidos, o Brasil abandonou, por um momento, o “jogo da política internacional”. Cortinhas também considera a possibilidade de o Brasil deixar o Mercosul.

“Diante do grande amadorismo da atual política externa, há chances de isso ocorrer, mas seria um erro profundo. O Mercosul vem sendo construído desde 1991. Esperava-se que fosse algo maior, mas, se o Mercosul não caminha bem, cabe ao Brasil, que é um líder natural do bloco, corrigir o rumo da forma que melhor convier aos países-membros, e não abandonar o acordo”, afirma.

O prpfessor acredita que as ondas de protestos em países da América Latina podem chegar ao Brasil, mas diz que, se o cenário econômico melhorar, pode retardar ou amenizar esses movimentos. “Vejo como um processo natural a possibilidade de isso ocorrer. Não só porque há uma série de problemas na condução da política no Brasil, com ataques a minorias e tensões na relação entre governo e sociedade, mas porque existe, no mundo todo, uma insatisfação popular com os mais diferentes tipos de governo. Não é um processo ligado a ideologias políticas. As populações estão insatisfeitas com a forma que a política vem sendo feita. Isso se acentuou na última década”, afirma.


Otimismo



Economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, Mauro Rochlin, por sua vez, destaca que más escolhas podem trazer prejuízos econômicos para o país, mas demonstra otimismo com as mudanças de postura mostradas pelo governo nos últimos meses.

“Espero que, nos próximos anos, o governo tenha uma visão mais pragmática da política de comércio exterior. Ignorar nossos principais parceiros é ingênuo. O governo parece dar sinais de recuperação da sensatez. Algumas relações que se degeneraram estão sendo revistas. O presidente acabou de visitar a China e países árabes. Foi uma mudança de postura. O mesmo aconteceu com a ida do vice-presidente Mourão à posse do novo presidente da Argentina”, diz.

“Demonstrar animosidade em relação à Argentina é contraproducente, pois o país é nosso terceiro maior parceiro comercial. E o governo deve repensar a postura de alinhamento automático com os EUA. Os interesses não são coincidentes. Por bem ou por mal, o governo vem sendo obrigado a rever posições”, observa.

Para Rochlin, está mais do que na hora de o presidente e o Itamaraty diminuírem o clima de atrito, que pode prejudicar as exportações em um período em que o mercado internacional tem se retraído. Os países árabes são importadores de carnes. Não dá para apoiar Israel. Não dá pra ignorar a China como grande importador de minério de ferro, carne e soja. “Temos dois pontos de atrito para resolver: EUA e Argentina. A sobretaxa (dos EUA) ainda não se concretizou, mas pode ser um ponto de fricção e um sinal de alerta. O governo tem que cair na real. Nosso apoio não se traduziu em qualquer tipo de benefício.”

O professor também faz um alerta sobre a eventual saída do Brasil do Mercosul. “Perderíamos importantíssimos parceiros comerciais. Quando a gente fala de comércio exterior, tem de pensar a longo prazo. A Argentina  pode se tornar um mercado similar ao norte-americano. Há algum tempo, eles importavam da gente mais do que os Estados Unidos”, destaca.

Ideologia compromete credibilidade


Apesar das críticas à política externa do governo Bolsonaro, diplomatas e especialistas não veem apenas aspectos negativos na atuação do Itamaraty.

“Temos que reconhecer que algumas coisas foram boas. O acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos estava sendo discutido há 20 anos, e aconteceu na visita do presidente a Washington. O apoio dos EUA ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também foi uma coisa positiva. A conclusão dos termos do acordo entre Mercosul e União Europeia, que ainda precisa ser ratificado, foi positivo”, diz um importante servidor do Ministério das Relações Exteriores (MRE) que preferiu não se identificar.

Ele admite que as conquistas decorrem de negociações anteriores, destaca que o mundo não deu as costas para o Brasil, mas alerta: “O aspecto mais negativo é a gradual perda da credibilidade da instituição Itamaraty”.

A fonte afirma que o MRE começou a perder prestígio durante o governo Lula, recuperou parte da influência com Michel Temer no poder, mas voltou a sofrer descrédito na atual gestão, do chanceler Ernesto Araújo.

“O Itamaraty está perdendo credibilidade porque há uma ideologização na política externa. Eu critiquei a ideologização no governo do PT. A ideologização e a partidarização não podem se contrapor ao interesse nacional. A política externa é de Estado. Não é uma política de governo, como disse Ernesto Araújo. É de Estado”, alerta.

Para o funcionário do Itamaraty, o alinhamento com os Estados Unidos também não foi totalmente automático, pois o Brasil se posicionou contra os norte-americanos a respeito de uma possível intervenção militar na Venezuela e não apoiou a posição de Trump nas críticas ao Irã por ter, supostamente, comandado um ataque a instalações petrolíferas sauditas, em setembro.

Celso Amorim, que chefiou o Ministério de Relações Exteriores no governo Lula e o da Defesa, sob Dilma Rousseff, faz ressalvas. Ele avalia que falta lógica ao Itamaraty e diz que o presidente da República precisa mudar a forma com que se refere a outros estadistas.

“O Brasil é como uma nau muito grande, que navega mesmo com um mau timoneiro. Não creio que o país vá afundar, mas impressiona a forma como vem sendo conduzido. Bolsonaro pode gostar de quem quer que seja. Mas, na hora de decidir, tem que levar em conta tradições diplomáticas de diálogo, não intervenção, interesse comercial, e isso está ao léu. O país é grande, tem forças que se contrapõem. E outros países também nos tratam com respeito, sabendo que essa fase passará”, afirma.


Posicionamento



As diretrizes do Palácio do Planalto têm o apoio dos presidentes das comissões de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, e do Senado, Nelsinho Trad (PSD-MS). “No início, a política externa do atual governo teve realmente um viés mais ideológico. Mas, no decorrer do ano, caminhou para a neutralidade”, diz Trad. Para o senador, o posicionamento do presidente tem viés democrático.

“O governo viu a necessidade de buscar uma ação mais macro para beneficiar o país. Ele foi eleito para isso, em detrimento de uma torcida ideológica contrária, natural de quem milita na política. Quem somos nós para ir contra a vontade de quem, soberanamente, e de forma limpa, escolheu seu representante? Esse eixo foi sintonizado, e o Brasil só tem a lucrar”, garante.

Cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV), Sérgio Praça também ameniza o efeito ideológico na política internacional do governo Bolsonaro.

“Todo governo tem ideologia. Da mesma maneira que o Bolsonaro está sendo ideológico, Lula também foi. Isso não é uma crítica nem um elogio. É uma característica”, avalia. Ao mesmo tempo, Praça faz um contraponto: “Duas coisas chamam a atenção na política externa de Bolsonaro: primeiro, a interferência de familiares do presidente, especialmente de Eduardo Bolsonaro; segundo, uma hostilidade no Ministério das Relações Exteriores a pessoas que não compartilham os valores do presidente da República”.

Três perguntas para Juliano da SIlva Cortinhas, Professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB):


Como o senhor vê a aproximação do país com Estados Unidos e Israel?

A política externa, idealmente, segue os interesses do país. Nós nos aproximamos de países com pautas complementares, que têm a nos oferecer coisas que não produzimos e nos procuram pelo que produzimos. Em alguns momentos, os países se aproximam a partir de interesses comuns, e a ideologia pode contar, por exemplo, quando há interesse coordenado em uma pauta social, mas, mesmo nesses casos, os países esperam contrapartidas. O que é muito raro é um alinhamento puramente ideológico, sem qualquer contrapartida. Cedemos aos EUA sem fazer exigências e, hoje, pagamos o preço. Fizemos várias concessões, e Trump está impondo barreiras. Ele está jogando o jogo da política internacional. Nós, não.

Como isso irritou parceiros comerciais históricos, como a China e as nações árabes?

Nas eleições, Bolsonaro disse que a China estava comprando o Brasil, que não era um bom parceiro comercial e que adota práticas discriminatórias. Mas ele aprendeu, na marra, que a China é um país que tem muito a oferecer. Eles têm dinheiro, têm recursos. É nossa principal parceira comercial. Chegou na reunião dos Brics com reservas de US$ 100 bilhões. Com Israel, começamos a fazer declaração de amizade, ignorando que o comércio com aquele país é baixo, e com os países árabes, é grande. O Brasil percebe o erro estratégico e busca se reaproximar.

Como o senhor vê a crise com a Argentina?

A relação com a Argentina é de um amadorismo preocupante. Nós nos afastamos das nossas bases históricas, do pragmatismo, da capacidade de construir pontes. Em política externa, palavras, declarações e simbolismos são importantes. Quando Bolsonaro pediu aos argentinos que votassem em Macri, quebrou um dos preceitos fundamentais. O Brasil tem que respeitar a soberania e a escolha do povo argentino. Quando o presidente não telefona para cumprimentar outro pela vitória eleitoral, é uma descortesia profunda. A Argentina é nossa principal vizinha em termos econômicos e territoriais. Bolsonaro percebeu o erro e mandou o vice-presidente para a posse. Mas, como só percebeu um erro tão sério depois de tê-lo cometido? Se houvesse profissionais instruindo o presidente, ele não cometeria erros como esse.


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