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Estado de Minas ENTREVISTA

"A esquerda precisa se reinventar", diz Enzo Traverso

Para professor, avanço de movimentos de direita no mundo é resultado da falência das esquerdas


postado em 03/12/2018 08:06

(foto: REPRODUÇÃO FACEBOOK)
(foto: REPRODUÇÃO FACEBOOK)

A tentativa de se formar uma “frente democrática”, contrária à candidatura do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), foi frustrada, com os dois maiores nomes da esquerda nas eleições de outubro, Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT), tomando rumos opostos no segundo turno.

O resultado foi que 68% do eleitorado não votou na esquerda, seja por ter se ausentado, por ter votado nulo ou branco ou por fazer parte dos 57,8 milhões de eleitores que escolheram o capitão da reserva.

A bancada do PT ainda é a maior no Congresso Nacional, com 56 parlamentares, mas vê na união dos partidos de centro-esquerda, puxada pelo PDT de Ciro, um sinal de isolamento e terá de se reinventar.

Um dos mais relevantes intelectuais vivos no mundo, o italiano Enzo Traverso, acaba de trazer para o Brasil o livro Melancolia de esquerda, publicado pela Editora Âyiné. Professor de ciência política na Universidade Cornell, em Nova York, Traverso já trabalhou com temas da história política com diversas abordagens e lupas.

Investigou o autoritarismo, o holocausto e a falência das utopias do século 20. Agora, no novo livro, se propõe a explicar “o que é a cultura de esquerda, revelando suas complexidades e intrigas”.

Em entrevista ao Estado de Minas, o intelectual fala sobre o que considera a “melancolia de esquerda”, da crescente onda conservadora no mundo contemporâneo e sobre uma possível falência da democracia liberal.

Em seu último livro, o senhor afirma que há uma “tradição escondida” de melancolia na esquerda. O que isso significa?
Considero que a melancolia de esquerda é uma “tradição escondida” pela simples razão de que, durante toda a história do pensamento de esquerda, nos últimos dois séculos, a dimensão cultural dela foi permanentemente removida ou censurada e, nesse contexto, a melancolia aparece como um sintoma. A esquerda revolucionária foi dominada por comunistas e por impulsos militares de revolução e conquista de poder. A melancolia é um sinal de fraqueza e a revolução pressupõe coragem.

A extrema-direita ganhou relevância em vários lugares do mundo. Seja na Europa, seja nas Américas ou no Oriente. Como o senhor entende essa ressurgência?
Me parece ser uma tendência global. Recordo que, há alguns anos, o surgimento de uma nova extrema-direita foi considerado um evento pontual. Porém, depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e, agora, com Jair Bolsonaro no Brasil, é evidente que estamos vivenciando uma nova tendência mundial. Preocupa-me muito, porque, agora, podemos enfrentar cenários catastróficos. Penso que assistiremos a uma dramática ressurgência da extrema-direita também na Europa. Penso em uma possível reeleição de Donald Trump daqui a dois anos. Penso na consolidação de Bolsonaro – coisa que terá tanto um impacto continental, na América Latina, quanto em escala global. Nesse caso, podemos falar em uma transição para uma nova tendência autoritária no mundo, que será a nova tônica das políticas internacionais – que não sei se podemos chamar de fascismo, nos termos que conhecemos. É evidente que isso será um desafio gigantesco para o pensamento de esquerda. Todavia, sou muito cético quanto a simplesmente declarar que há uma onda fascista. É preciso entender a nova face desse “pensamento fascista” no século 21. O que o fascismo significa no século 21? Penso que hoje não podemos pensar em termos dos fascismos clássicos, seja de Hitler ou de Mussolini...

"A esquerda precisa inventar um novo projeto de sociedade, um novo projeto de existência. Não é uma tarefa fácil"



E como seria esse “novo fascismo”?
O “novo fascismo” é muito diferente das experiências que tivemos entre as duas grandes guerras, ou mesmo das que ocorreram na América Latina durante as ditaduras militares que apareceram nas décadas de 1960 e 1970. O fascismo foi uma nova forma de governo e pensamento político na primeira metade do século passado, profundamente marcado por forte intervenção estatal na economia. Agora, vivemos na época do neoliberalismo e a política econômica de um regime autoritário no século 21 seria muito diferente do fascismo clássico. Bolsonaro é um exemplo disso: ele tem perfil autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal no sentido econômico.

Nesse contexto, o senhor entende que há uma ameaça posta para o pensamento de esquerda?
O sucesso eleitoral de movimentos e partidos à direita em todos os lugares não pode ser explicado como uma conjuntura simples, ou como um simples acidente. Não há acidente algum, mas o começo de um novo ciclo. A eleição de Bolsonaro no Brasil, assim como o crescimento de movimentos de extrema-direita na Europa, é também o resultado da falência da esquerda. No Brasil, vê-se o fim de um ciclo político que foi encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores. Penso que, sem mudanças radicais no projeto político da esquerda e, inclusive, em suas características, sem que a esquerda pense em um novo modelo de sociedade, ela será condenada a falhar.

"Vivemos em mundo onde não há utopia e isso é um problema gigantesco para a esquerda"



O senhor considera que as utopias do século 20 perderam seu papel no mundo contemporâneo ou que há algum retorno a elas no século 21?
Uma das grandes dificuldades que a esquerda tem enfrentado hoje é a ausência completa de um horizonte utópico, que é uma das diferenças mais marcantes com a esquerda dos últimos dois séculos. O século 19 foi, ainda, muito marcado pela Revolução Francesa, dominado pela ideia de progresso e de socialismo – o que se desaguou no século 20. O século 21 nasceu do colapso dessas utopias e, por isso, vivemos em um mundo onde não há utopia. Isso é um problema gigantesco para a esquerda, que, para mudar a sociedade, precisa mobilizar pessoas, paixões, a imaginação coletiva. Isso, em um mundo sem utopia, é muito difícil. Não creio que uma possível ressurgência da esquerda venha a partir de um simples retorno aos antigos projetos, às antigas ideias, às antigas formas de organização social. A esquerda precisa inventar um novo projeto de sociedade, um novo projeto de existência. Não é uma tarefa fácil. Acredito, sim, que novas utopias devem surgir e que elas serão criadas por novos movimentos sociais. A ressurgência de uma nova extrema-direita, certamente, estará acompanhada do surgimento de novos movimentos à esquerda. Até agora, porém, esses movimentos foram incapazes de encontrar uma nova proposta política – e a esquerda não pode se afirmar como um novo projeto com receitas antigas de sociedades.

Como deve ser pensado esse novo projeto da esquerda?
A fundação de uma nova esquerda não é algo que pode ser artificialmente pensado. O pensamento crítico, em escala global, é poderoso e vibrante e, atualmente, muito mais sofisticado e difundido do que era há um século, quando a esquerda estava organizando revoluções em diferentes países. O problema não é a falta de um pensamento crítico, mas a distância dos novos pensamentos críticos da esquerda como movimento social orientado para uma mudança política e social.

"A melancolia é um sinal de fraqueza e a revolução pressupõe coragem"



A esquerda se tornou acadêmica demais?
O próprio conceito do “intelectual” precisa ser repensado. Quando pensamos em intelectuais lembramos de figuras como Jean-Paul Sartre, que foram importantes e participantes da realidade de sua época. Isso não existe mais. Hoje, os intelectuais são, em grande parte, acadêmicos e um pouco aristocráticos.

A democracia liberal, como a conhecemos, está se desmanchando?
A própria ressurgência de uma extrema-direita é um óbvio espelho de uma crise global da democracia. A democracia está ameaçada de diferentes formas. Por um lado, pelo autoritarismo protofascista desses regimes políticos que surgem. Por outro, a democracia está sendo ameaçada pelo neoliberalismo, que não é necessariamente fascista, mas é um novo modelo de civilização que é incompatível com a ideia de democracia. Ele é uma maneira de destruir a democracia por dentro. Democracia significa uma preocupação pelo comum, uma ideia de sociedade que compartilha lugares, uma comunidade na qual indivíduos agem unidos. Democracia implica interação e diversidade em um lugar-comum. O neoliberalismo é um modelo de sociedade completamente baseado no individualismo, possessivo e competitivo. Nele, é preciso entender a sua própria vida como se ela fosse uma empresa – o que impossibilita que os indivíduos se entendem dentro de uma sociedade compartilhada e comum.

*Estagiário sob supervisão da editora-assistente Vera Schmitz

 

 


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