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Estado de Minas A CORTINA DA CRISE

"A Lava-Jato se desenrola como um grande romance"

A economia está se desmanchando. A democracia brasileira foi bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas instituições


postado em 03/04/2016 06:00 / atualizado em 03/04/2016 08:28

Num antológico ensaio sobre o romance, o escritor tcheco Milan Kundera enaltece a importância da obra de Cervantes para toda a literatura contemporânea: “Uma cortina mágica, tecida de lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina. O mundo se abriu diante do cavaleiro errante em toda nudez cômica de sua prosa”. É a invenção do romance, “a marca de identidade de uma arte”.


Segundo Kundera, assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, quando o mundo corre em nossa direção no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. “E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta”.

Ao fazer um paralelo entre a pintura e a literatura, Kundera destaca o quadro célebre de Delacroix, A liberdade guiando o povo, que retrata “uma mulher jovem numa barricada, o rosto severo, os seios nus inspirando medo; ao seu lado, um revolucionário maltrapilho com uma pistola na mão”. Kundera não gosta da pintura, mas reconhece a obra de arte. Adverte, porém, que um romance que glorifique semelhantes posturas convencionais, símbolos tão gastos, se excluiria da história da literatura. De fato, foi o que aconteceu com a maioria dos autores do realismo socialista.

A Operação Lava-Jato se desenrola como um grande romance, pois rasga a cortina de um mundo político maquiado, mascarado e pré-interpretado. Entretanto, nada pode contra a cegueira maniqueísta, causada por um conjunto de ideias que se tornaram anacrônicas após a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Instaladas no poder, levam a economia à bancarrota e bloqueiam a renovação política, além de resultar numa crise ética sem precedentes.A cortina da política brasileira pode ser bem traduzida pelas palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, numa conversa informal com estudantes de pós-graduação em economia, gravadas sem que ele soubesse pelo sistema de tevê da Corte: “Quando, anteontem, o jornal exibia que o PMDB desembarcou do governo e mostrava as pessoas que erguiam as mãos, eu olhei e, meu Deus do céu, essa é a nossa alternativa de poder. Eu não vou fulanizar, mas quem viu a foto sabe do que estou falando”.

“O problema da política neste momento, eu diria, é a falta de alternativa. Não tem para onde correr. Isso é um desastre. Numa sociedade democrática, a política é um gênero de primeira necessidade. A política morreu. Talvez eu tenha exagerado, mas ela está gravemente enferma. É preciso mudar”, disparou o ministro. Como rasgar essa cortina? Essa é a questão que está posta. Gostem ou não os políticos, para a sociedade, quem está rasgando a cortina é a Operação Lava-Jato.

Ideias anacrônicas

Na raiz do impasse nacional, há duas concepções que tecem a crise tríplice: de um lado, a ideia de que o Estado é o tutor e provedor da sociedade; de outro, a de que os fins justificam os meios, ainda mais se os objetivos são, digamos, (pseudo) revolucionários. O fracasso do governo Dilma Rousseff pode ser atribuído a esses dois aspectos, basta fazer uma retrospectiva dos erros cometidos na condução da economia e agora mesmo, no fragor da batalha, das ações em curso para reorganizar a base do governo contra o impeachment.

A presidente Dilma Rousseff mobiliza correligionários e aliados, montou um palanque no Palácio do Planalto para atacar a Operação Lava-Jato e defender seu mandato. Recorre ao passado e compara a situação atual às crises que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, em 1954, e os militares ao golpe de Estado que destituiu João Goulart, em 1964. Mascara, porém, a realidade e tenta fechar a cortina de seu mundo maquiado e pré-interpretado. Será mesmo essa a alternativa que nos resta?

Fala-se muito em defesa do Estado democrático e das garantias e direitos individuais, embora os militares (protagonistas das rupturas de 1889, 1930 e 1964) estejam quietos no seu canto. A economia está se desmanchando. A democracia brasileira foi bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas instituições. Quem pode impedir que a cortina seja remendada pelo Executivo? O Congresso Nacional, se também purgar seus pecados e cortar na própria carne; ou o Supremo Tribunal Federal, se levar adiante a Operação Lava-Jato e iluminar o palco da renovação política.

 


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