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Estado de Minas PENSAR

Roberto Taddei: 'A literatura não é exibicionismo, mas um oferecimento'

Coordenador de curso de pós-graduação para formação de escritores lança o romance "A segunda morte" e reflete sobre a produção literária no país


05/05/2023 22:39 - atualizado 05/05/2023 23:05

Jornalista, tradutor e crítico literário Roberto Taddei
(foto: Arquivo pessoal )
Apresentado pelo escritor Jeferson Tenório como "uma espécie de estudo lúcido e honesto sobre a finitude", "A segunda morte" é o novo romance do jornalista, tradutor e crítico literário paulistano Roberto Taddei. A história de um homem mais velho que decide viver em uma comunidade no litoral é narrada de forma contida e segura por Taddei, coordenador da pós-graduação Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz.

Nascido em 1975, Roberto Taddei tem mestrado em Escrita Criativa pela Columbia University e escreve críticas de livros em jornais, revistas e sites. Antes de "A segunda morte" (Companhia das Letras), lançou os romances "Terminália" (2013) e "Existe e está aqui e então acaba" (2014), além do livro de poemas "Essa música não é minha" (2019). Leia, a seguir, entrevista com o autor.

Como surge "A segunda morte"? O que o atraiu a ambientar a história em uma vila de pescadores?

Assim como nos meus livros anteriores, quis trabalhar com espaços onde o excesso ou a escassez de dinheiro não são tão determinantes como nas grandes cidades. Uma vila de pescador é um lugar onde a relação dos personagens com a terra e o mar é fundamental para a sobrevivência. Colocar um sujeito da metrópole, que está acostumado a resolver seus problemas com o que o dinheiro pode comprar, num espaço onde nem sequer há uma farmácia, onde é preciso lidar com as mudanças do tempo, isso me interessou desde o início. A vila de pescadores é um espaço que não aceita ser apenas cenário. Necessariamente é também personagem. A dinâmica das forças no mundo contemporâneo está mudando. Os grandes centros urbanos não são mais hegemônicos nos apontamentos dos caminhos. Aquilo que acontece em outros lugares parece ter mais vida hoje em dia do que o que acontece na metrópole. De certa maneira, o que justifica o centro urbano é o acúmulo de dinheiro e de pessoas, o acesso a serviços e entretenimento, as distrações. Um grande espetáculo onde é mais difícil encontrar a verdade. 

Como foi criado o protagonista da história, um personagem "cada vez mais fora do mundo"? Ele surge da observação ou da imaginação? É por meio dele que você traz o tema da finitude para o romance? 

Ouvi uma vez do escritor e amigo Alberto Martins que a ficção é por princípio um sonho. Um sonho pode ser imaginação, especulação, desejo, projeção, receio. Ou, para recuperar o princípio aristotélico, tudo aquilo que poderia ser. Gustavo Embaú, o personagem de "A segunda morte", é um sujeito que teve uma primeira morte em vida, que viu a sua vida anterior definhar, por conta de seus próprios atos ou por pura inação. Quando descobre que está com uma doença terminal, decide que não quer morrer na metrópole, onde sua vida já tinha acabado, e se lança nesse deslocamento. Mas ao se deslocar ele descobre que mesmo tendo vivido a vida toda num centro urbano, ele pouco sabia. Movimentar-se é encontrar-se com outros personagens. Isso é o que torna viva uma história. O outro é o que nos dá sentido, por meio de quem nos deparamos com o nosso limite, o nosso fim. 

"O que ele ainda deseja é ser atravessado pelo mundo". Quando os leitores, na sua visão, conseguem ser atravessados pelos mundos criados pelos escritores? O que um livro precisa ter para conseguir isso?

Esse é o grande mistério e a maravilha da literatura, o motivo pelo qual quase tudo no mundo sofre a obsolescência do tempo, menos a literatura. Somos "atravessados" por textos escritos há mais de 2 mil anos, assim como devem ter sido nossos antepassados. É preciso construir um equilíbrio entre o que damos aos leitores e o que oferecemos como espaços para que eles construam relações próprias com o texto. Em outras palavras, é preciso ser generoso. A literatura, para mim, não é um gesto de exibicionismo, mas um oferecimento. Apresentamos um caminho possível, um personagem, um ponto de vista, uma cena. David Foster Wallace disse uma vez que é preciso escrever com a parte que é capaz de amar, em vez de escrever a partir daquela que quer ser amada. Parece meio cafona dizer isso hoje em dia, num mundo onde a brutalidade muitas vezes se disfarça de coragem, de qualidade empreendedora, fingindo não ser um comportamento desesperado, onde a ética e a humanidade são as primeiras a serem descartadas. Não vou, evidentemente, me candidatar a dizer como se deve escrever. Bastaria dizer que o mundo literário vem tentando explicar o "como" há milênios. Seguimos tentando. Às vezes conseguimos. Às vezes nos surpreendemos por um livro conseguir nos atravessar de maneira inesperada. Por isso seguimos lendo. Por isso continuaremos lendo. É preciso que mais gente também possa escrever, para que essas possibilidades se ampliem, para que existam mais chances de livros produzirem esse tipo de efeito em mais gente. Acredito que o problema do Brasil não é a falta de leitores. Mas sim a falta de escritores. Todo mundo que fez o ensino básico é capaz de ler. Por que não leem? Há uma hipótese que foi pouco investigada: talvez não leiam porque não há livros que interessem a eles. E não há livros porque outras pessoas, como elas, não os escreveram. O meio literário brasileiro precisa urgentemente que mais gente escreva. Precisamos todos escrever! Concordo com o que Virgínia Woolf dizia: a melhor maneira de se entender um romance é tentar escrever um. 


Você coordena a pós-graduação Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz. Poderia descrever aos nossos leitores como funciona o curso e quais estudos e atividades são realizados? Com a experiência adquirida, consegue determinar o que é possível e o que é impossível aprender em uma pós?

A pós-graduação é inspirada numa tradição de mais de um século de ensino de escrita literária, que por sua vez está conectada com aquilo que conhecemos como literatura desde Homero. A primeira escola de escrita do mundo ocidental, gosto da provocação, talvez tenha sido a de Aristóteles, onde ele discutia a sua "Poética" com os alunos. No Instituto Vera Cruz partimos da premissa de que os alunos e alunas são autores, desde o primeiro dia. Ou seja, não se trata de ensinar a escrever. Isso se faz no ensino fundamental, e ninguém pode dizer que não funcione. Nossa tarefa é ler e discutir textos de autores variados e dos próprios alunos e alunas procurando com isso construir uma relação de autonomia com a escrita. Queremos que os alunos e alunas possam concluir a pós-graduação sabendo o que estão fazendo, tendo mais clareza sobre seus próprios projetos literários e com condições de avaliar onde encontrar os recursos necessários para escrever aquilo que desejarem. Nesse sentido, não queremos formar discípulos, mas compartilhar conhecimentos com colegas. Aprendemos, os professores, um mesmo tanto que os alunos e alunas. Eu, por exemplo, compreendi que professores não conseguem simplesmente fazer com que que alguém aprenda o que quer que seja. Alunos e alunas aprendem se as condições forem apropriadas, se o processo for bem planejado, se houver interação e interesse. Podemos dividir conhecimento, experiência, procedimentos. Sobretudo, podemos e devemos tratar os alunos como indivíduos plenamente capazes de propor escritas autorais que se distingam e se diferenciem das nossas. Ou seja, precisamos ouvir e não apenas pedir para sermos escutados. No final, todos ganhamos com isso. Agora, uma resposta mais prática e objetiva para a pergunta poderia ser: temos um calendário rigoroso de entrega de textos por parte dos alunos, que passam dois anos escrevendo e tendo seus textos lidos e discutidos por professores e demais colegas de curso. Além disso, lemos muitos textos de outros autores e os estudamos a fundo. Essa experiência tem se mostrado importante para muitas pessoas. Assim como foi para mim, que estive na condição de aluno pouco mais de uma década atrás.

Como o crítico Roberto Taddei analisaria um romance como "A segunda morte"? Quais aspectos da narrativa leva em consideração para suas análises?

O que eu faço, como diz James Wood, é crítica de autor, e não crítica literária. Leio e comento outros livros tendo como referência meus interesses autorais. Nesse caso, não posso fazer a crítica do meu próprio livro porque tudo o que eu queria dizer com ele está dito como ficção. Quando leio outros livros, no entanto, o que busco é a percepção de alguma verdade na narrativa. Esse termo é vago e pode servir a muitos propósitos. Para mim, geralmente está associado a uma dimensão sutil da escrita, quando o texto não está a serviço de uma ideia autoral, ou seja, que o texto não está atrás da mão do autor ou autora, mas sim o contrário. Gosto de um livro quando percebo que o texto está à frente de quem o escreveu. Para usar uma analogia contrária ao dito popular, a verdade na escrita aparece quando a carroça está à frente dos bois, sendo a carroça o livro, e os bois quem o escreve. O autor não deve puxar a carroça, mas empurrá-la, com a visão limitada que uma grande carroça projeta contra as percepções daquele que, sozinho e com os pés na lama, tenta empurrá-la sem saber por onde segue o caminho. Quando um livro escrito dessa maneira produz um caminho suave, dando a sensação de que havia apenas uma estrada possível para aquela história, aí então a verdade daquele livro aparece. Gosto disso. 

O que mais chama sua atenção na produção literária contemporânea brasileira?

Parafraseando o Caetano, a literatura brasileira contemporânea é "foda"! A verdade é essa. Jeferson Tenório, Noemi Jaffe, Joca Reiners Terron, Marília Garcia, Edimilson de Almeida Pereira, Bruna Beber, Michel Laub, Carol Bensimon, Cidinha da Silva, Paulo Scott, Fabrício Corsaletti, Ana Martins Marques, Cida Pedrosa são foda! E tantas outras autoras e autores. É sempre temerário nomear alguns, mas cito esses nomes não porque são os únicos, nem mesmo os melhores, é apenas para ilustrar, porque são muitos. Centenas! Há muita gente produzindo obras interessantíssimas, plurais, com linguagens, propostas e arranjos diferentes, e em lugares distintos. E há espaço ainda para outras vozes participarem. Espaço e necessidade. Quero crer que o meio literário tenha enfim se afastado da praga da unanimidade. O que os escritores e escritoras brasileiras estão fazendo hoje aponta para um dos momentos mais ricos da literatura brasileira ao longo da história da escrita em língua portuguesa nessas terras, não tenho dúvida. 

Livro Segunda morte
(foto: Divulgação)

Serviço

"A segunda morte"
De Roberto Taddei.

Companhia das Letras.
136 páginas.
R$ 64,90. 


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