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Encontros e desencontros

No romance "Frio o bastante para nevar", Jessica Au revela as tentativas, nem sempre bem-sucedidas, de aproximação entre mãe e filha durante uma viagem ao Japão


05/05/2023 04:00 - atualizado 04/05/2023 20:36

Japão
Japão (foto: Behrouz MEHRI / AFP)

 

Giovana Proença

Especial para o EM

 

Um gélido Japão é a paisagem de “Frio o bastante para nevar”. Apesar da profusão de miudezas, captadas pela hábil narradora – também protagonista do romance – este horizonte torna-se secundário, oferecendo o cenário para as tensões familiares, essenciais ao segundo romance de Jessica Au. Nascida em Melbourne (Austrália) e vencedora do Novel Prize, a narrativa é centrada em uma curta viagem ao país asiático, sob o aguçado ponto de vista da filha, acompanhada apenas pela mãe.

 

Na abertura do romance, as duas mulheres estão em Tóquio, expostas ao sereno de outubro. É o início da viagem. Cada uma chegou, sozinha, em um voo diferente, fato bastante simbólico para demarcar a quebra do distanciamento, imposta pelos dias em solo japonês. Enquanto a protagonista tem traçados fixos para o excurso, a mãe expõe apenas uma inquietação: se fará frio o bastante para nevar. 

 

A primazia da filha é colocada em termos estruturais no romance. Ela é nossa atenta narradora; nada chega ao leitor sem ter passado pelo filtro de sua consciência – ainda que este seja, em muitos pontos, um livro sobre impulsos inconscientes. A personagem não ignora a imposição de seu ponto de vista, por meio dos contornos da viagem. Ela vai além: “Pensei também que a primeira língua da minha mãe era o cantonês, e a minha, o inglês, e como só falávamos juntas em uma, e não na outra". 

 

Na escolha do Japão como destino, ela tenta justificar uma preocupação com a mãe. Em sua visão, a mulher – natural da China – se sentiria melhor em algum país asiático e, sendo ambas estrangeiras, elas estariam em igualdade. Contudo, a narradora já conhecia anteriormente o país e revela ter pensado na mãe durante a primeira viagem por terras japonesas. Ela denota, de forma sutil, a necessidade oculta de controlar a trajetória, colocada como uma descoberta. 

 

Em certa passagem, a filha insiste em fotografar a mãe. Por trás da lente da câmera, ela quer captar a figura materna de maneira espontânea, uma tentativa de penetrar o seu universo particular. A intenção, entretanto, é frustrada pela mulher. Adiante, a narradora não permite ser fotografada; há a recusa em se colocar como vítima do mesmo exercício de escrutínio sofrido pela mãe. 

 

O roteiro programado pela filha é essencialmente cultural: museus, livrarias, cafés. O estranhamento entre as duas torna-se evidente, a partir da desatenção da mãe aos detalhes que a narradora vê como essenciais. Por meio das cenas japonesas, lembranças da juventude da protagonista, relacionadas ao acesso a um mundo até então desconhecido, vêm à memória. 

 

A filha se recorda, sobretudo, dos anos como estudante de letras, em que ela se distancia do convívio familiar para se aproximar da esfera cultural que ronda o ambiente universitário – ivros e filmes clássicos com os quais nunca teve contato e cujos nomes ouviu pela primeira vez na voz dos colegas. Ela se prende com mais força à lembrança de uma professora, responsável por sua iniciação no estudo dos gregos e que serviu de modelo para ela nos primeiros anos de faculdade. 

 

A narradora se vê apartada dos espaços comuns à mãe, trabalhadora imigrante vinda de Hong Kong. Já a filha é uma mulher australiana, frequentadora de ambientes culturais, ligada às artes e à literatura. Desse modo, temos a cisão dessa relação, com a falta de uma língua comum para possibilitar o entendimento mútuo. Se a intenção da viagem seria criar essa comunhão, o que aparece ao leitor é a experiência do estranhamento. 

 

A narradora experimenta o anseio de diferentes personagens da literatura, que ascendem socioculturalmente com relação às suas famílias, do Philip Pirrip do inglês Charles Dickens até a Lenu de Elena Ferrante. Para a protagonista de “Frio o bastante para nevar”, esse estranhamento é ambíguo, intrincado na admiração que sente pela elegância da mãe, ressaltada em vários momentos e no seu fascínio pelas faces ocultas da figura materna. 

 

No romance de Jessica Au, o presente serve como âncora formal, enquanto o passado inunda o relato, insinuando a sua predominância. Au constrói as nuances da relação entre mãe e filha em meio aos fragmentos da viagem. A linguagem, embora direta, torna-se sinuosa em alguns momentos, quando as lembranças adquirem maior potência, revelando o caráter labiríntico das memórias que invadem os dias no Japão.

 

 

Chance de derreter o gelo

 

O gélido sereno que cobre o país asiático no outono também recobre a frieza inicial da relação entre mãe e filha, repleta de uma polidez que evidencia o distanciamento. Este elo adquire novos contornos com o avanço do romance, acumulando-se como as camadas de relento que cobrem o Japão vivenciado pelas duas mulheres. O que a narradora procura não é o frio capaz de produzir a neve, mas a chance de derreter o gelo que se acumulou entre ela e a mãe. 

 

Entre as conversas, cortadas pelo silêncio e doses de acanhamento, a protagonista revela a dúvida sobre ter filhos. Este questionamento sugere uma intenção oculta em viajar com a mãe: uma aproximação com a maternidade. Há uma demanda por reconhecimento, por olhar com atenção para os traços que ambas compartilham. 

 

O impulso da viagem, motivo que a protagonista tenta elaborar, tem o seu âmago no desejo por proximidade. Nos primeiros momentos da narrativa, a dependência da mãe - insegura em um país estrangeiro, ela se mantém perto da narradora, seguindo os seus passos - é estranho à filha. Já no desfecho do romance, é com prazer que ela a reencontra, já segura o suficiente para se afastar e fazer o próprio trajeto. Com uma comoção ambígua, a narradora inverte os papéis e atende ao pedido de ajuda da mãe para calçar os sapatos. 

 

Em menos de cem páginas, Jessica Au analisa os laços familiares com um potente tom elegíaco. O clima desolador do romance instaura a atmosfera de reflexão sobre as distâncias que se colocam intransponíveis. Em sua simplicidade tácita, o romance conquista pela sutileza. Ao fim, não há uma reconciliação ou um diálogo confortante. “Frio o bastante para nevar” apresenta a tensão entre o que é familiar e o que se torna estranho. É na inquietante busca pelo elo perdido que o romance mostra a sua força narrativa. 

 

 

*Giovana Proença é pesquisadora na área de teoria literária na Universidade de São Paulo (USP)

 

“Frio o bastante para nevar”

  • De Jessica Au
  • Tradução de Fabiane Seches
  • Fósforo Editora
  • 96 páginas
  • R$ 64,90 

 

 

Trecho

 

No início do ano, eu a convidei para me acompanhar em uma viagem ao Japão. Não morávamos mais na mesma cidade, e nunca tínhamos viajado juntas como adultas, mas eu começava a sentir que isso era importante, por razões que ainda não sabia nomear. No começo, ela estava relutante, mas insisti e, enfim, concordou, não exatamente com palavras, mas protestando um pouco menos, ou hesitando ao telefone quando perguntava a ela, e, por isso, sabia que estava finalmente sinalizando que viria. Escolhi o Japão porque já estive lá antes e, ainda que minha mãe não o conhecesse, achei que poderia ficar mais à vontade explorando uma outra parte da Ásia. E talvez eu sentisse que isso, de algum modo, nos colocaria em pé de igualdade, sendo as duas estrangeiras. Eu tinha escolhido o outono, porque sempre foi a nossa estação preferida. Os jardins e os parques estariam então em sua forma mais bonita; no final da temporada, quase tudo já se foi. 

 


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