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Estado de Minas

O dilema da velhice


05/05/2023 04:00

Faustino Rodrigues 

Especial para o EM

 

Recentemente, a Companhia das Letras lançou “A segunda morte”, do escritor paulistano Roberto Taddei. O romance tem o angustiado octogenário Gustavo como personagem principal, vivendo o dilema da velhice, de maneira a esperar o que julga ser o seu iminente falecimento. Para ele, cada dia é como se fosse o último. É assim que se distancia da família e vai viver isolado em uma praia no litoral paulista, no quarto de uma pousada, certo de que a qualquer momento passará para o outro lado (se é que o outro lado realmente existe).

 

Além de coordenar o curso de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz, Roberto Taddei é professor, jornalista, tradutor e poeta. Com seus 48 anos, já publicou outros dois romances, “Terminália” e “Existe e está aqui e então acaba”, bem-aceitos pela crítica, assim como o livro de poemas “Essa música não é minha”, consolidando-se no cenário nacional como grande nome de sua geração.

 

Em um primeiro momento, “A segunda morte” poderia representar uma daquelas ficções introspectivas, focadas nas reflexões do protagonista a avaliar as consequências de suas ações no mundo do qual faz parte, exibindo simultaneamente uma angústia derivada de um desejo descoberto a ser contido. Mas não é bem assim.

 

De fato, é visível uma angústia em Gustavo, sem otimismo para o que julga serem os últimos dias de sua vida. Não demonstra qualquer esperança de um final glorioso, ostentando orgulho quanto ao que tenha feito em sua trajetória, mesmo que seja em relação a uma obra imaterial a revelar uma sensação de dever cumprido. Nos raros momentos a evocar o passado, insinua ter realizado um trabalho monótono, não amenizado nem sequer pela recompensa financeira. Insiste em nunca mais pôr os pés em uma cidade.

 

Ou seja, não estamos diante de um velho amargurado. Tampouco se trata de um bondoso senhor ou mesmo um sábio. Aliás, a forma como o narrador em terceira pessoa se mostra presente tira qualquer possibilidade de atribuição de sabedoria ao protagonista, principalmente quando os seus aparentes sintomas se mostram presentes em momentos muito específicos. Estamos diante de uma destreza narrativa que nada entrega, deixando um importante fio oculto a se desvanecer, revelando ao leitor como mais importante as experiências vividas por Gustavo, e em segundo plano o que ele esconde – tanto que, aos poucos, o leitor deixa de se preocupar com o seu passado.

 

 

UM LIVRO ATUAL 

 

Taddei escreve para a contemporaneidade. Opta por não fazer uma identificação do jovem de hoje, projetando-o em um futuro que seria consequência de ações diversas, até mesmo aquelas aparentemente sem sentido. Ele já nos entrega um personagem que, supostamente, passou por tudo, não tendo motivos para questionar uma vida confortável. Fica claro, desde o princípio, que os motivos que levaram Gustavo a se afastar da vida de antes são secundários. Pode ser qualquer coisa, pois, mais importante, é o que Gustavo acha deles, como eles se encontram impregnados em seu “pesado corpo”.

 

Gustavo é o retrato de uma sociedade individualista e autocentrada – ao chegar, esforça-se em evitar a proximidade com praticamente todos os nativos. Em uma realidade como essa, qualquer coisa abalaria as certezas de qualquer um. E, novamente, por isso o narrador em terceira pessoa torna-se ainda mais interessante, pois ele consegue dar uma noção do meio em que o seu protagonista se encontra inserido, de modo que seja sempre interrogado pelo que está ao seu redor, sem fazer intermináveis reflexões quanto ao sentido disso ou daquilo, pois essas nós já sabemos que existem, guardadas com Gustavo, juntamente com o misterioso passado.

 

Quem tem 80 anos viveu diferentes momentos da história brasileira: glórias e horrores, de afirmação de certezas, bem como de questionamentos do que se nos é posto. Embora não haja referências históricas diretas, Gustavo teria vivenciado a ditadura de 1964, a restauração da democracia e a aparente normalidade institucional que veio em seguida, até o golpe de 2016. Otimismos econômicos e promessas de desenvolvimento não cumpridas. Logo, há condições de ter testemunhado transformações as mais diversas. Por outro lado, o artifício narrativo de Roberto Taddei nos impede até mesmo de falar que Gustavo é uma pessoa calejada.

 

Recolhido na pousada, conhece a dona, Bianca, por quem adquire grande afeição. O amor, neste caso, poderia salvá-lo a ponto de lhe assegurar uma calma no que julga serem os dias finais de sua vida, despertando uma nova “sede de viver”. Mas, não. Ela está atarefada com os cuidados ao seu marido, Heitor, em estado vegetativo, dependendo de um ventilador mecânico. A apatia de Gustavo em relação aos filhos converte-se em solidariedade e companheirismo, a ponto de, em determinado momento, por força de circunstâncias, correr para salvar a vida de Heitor.

 

Em meio a tantas incertezas, por certo, fica a impossibilidade de sustentar uma saída gloriosa. A sombra do fracasso, mesmo que seja imprevisível, persiste. De tudo, resta nada esperar, em vistas de que o pior sempre é possível. E até mesmo a morte, que, num primeiro momento, teria um roteiro bem claro e preciso, desvela-se como misteriosa, quando notamos as efêmeras melhoras físicas de Gustavo em seu período na praia, bem como a incrível resistência de Heitor – cuja vida não é invejável. Então, pra que otimismo?

 

“Aquele corpo impulsionado pelo ventilador mecânico é somente um resto insepulto. Tudo o que não quer ser. Mesmo assim, encara a situação com certo pudor. Há uma moral, antiga, com a qual concorda: o vilipêndio a cadáver é condenável. Morto, mesmo que ainda não tenha sido aceito no mundo dos mortos, Heitor merece respeito. Sua recusa em morrer significa apenas isto: ainda não abriu mão dos direitos dos vivos. Restam-lhe poucos direitos”.

 

Assim percebemos que nos enganamos ao pensar que há total indiferença de Gustavo quanto ao que se passa ao seu redor. Desse modo, Taddei nos entrega um personagem contraditório, pois um tanto misterioso, embora muito transparente, tão transparente que a sua confusão é bastante clara quando se perde em meio aos seus passeios na praia e quando revigora a sua saúde diante de uma vida mais saudável.

 

Enfim, resumindo, não há, em Gustavo, o entusiasmo de ter vivido tudo o que gostaria; tampouco o afã de viver outras coisas mais; e, igualmente, à medida em que o livro avança, percebemos não haver toda aquela anunciada segurança da morte e a certeza do que ela poderia proporcionar para alguém realizado ou não. Porém, como retrato da atualidade, não há como não se fechar em si, aguardando o pior – mas, o esforço em se fazer isso é bastante presente.

 

A segunda morte, no romance de Taddei, não é a busca pelo fim que Gustavo vai atrás. É, sim, a exigência que o autor entrega de um novo entendimento de morte que cobra de seu personagem principal, distinta da certeza que tinha antes, quando chegou ao litoral. E, nos dias de hoje, nada mais curioso, certeiro, do que abalar certezas e temer o futuro, que é o fim, promovendo o seu adiamento. Estamos diante de um livro que vale muito a pena ser lido.

 

 

* Faustino Rodrigues é psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg)

 

 

A SEGUNDA MORTE

  • De Roberto Taddei
  • Companhia das Letras 
  • R$ 64,90 (impresso)
  • R$ 29,90 (digital) 


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