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Estado de Minas PENSAR

Um coletivo chamado Ricardo Aleixo, que chega aos 60 anos: 'Eu respirei'

Poeta e multiartista revela o que fez de mais importante ao chegar aos 60 anos: 'Eu respirei. Porque respirar é uma palavra muito vasta para nós, negros'


22/01/2021 04:00 - atualizado 22/01/2021 08:36

(foto: Rafael Motta /divulgacao)
(foto: Rafael Motta /divulgacao)
O poeta e multiartista Ricardo Aleixo completou 60 anos em 14 de setembro de 2020, em plena pandemia da COVID-19. O escritor não imaginava que as comemorações da data redonda seriam no contexto do isolamento social. No entanto, o recolhimento lhe permitiu voltar para si e o resultado foi dedicar mais tempo para produção latente, antes represada frente a tantas viagens de trabalho, como a organização de livros de poesia, a preparação de um memorial artístico para receber o título de notório saber no nível de doutorado pela UFMG, a produção do podcast Poesia & e a gravação de vídeos de várias performances. 

A trajetória artística de Ricardo se ancora na dimensão verbivocovisual, um conceito extraído da obra de James Joyce. A palavra dá conta da tripla dimensão de todas as palavras: dimensão verbal, dimensão vocal e dimensão visual. “Isso é a base do meu fazer, todo focado pela obsessão de pensar cada palavra, dentro de cada verso, dentro de cada estrofe, dentro de cada poema, dentro de cada livro, como objeto nessa tripla ressonância”, diz.

Ricardo publicou 13 livros, entre os quais Festim (1992), A roda do mundo (1996, com Edimilson de Almeida Pereira), Quem faz o quê? (1999), Trívio (2001), A aranha Ariadne (2003), Máquina zero (2004) e Modelos vivos (2010), com o qual foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti 2011, e Antiboi (2017), escolhido como finalista do Prêmio Oceanos. Curador do Festival Internacional de Arte Negra de Belo Horizonte/FAN, editou a revista RODA – Arte e cultura do Atlântico Negro. Em 2018, a editora paulista Todavia lançou Pesado demais para a ventania, antologia poética do autor, nascido em BH em 1960. 

No final de 2020, Ricardo lançou Extraquadro (Impressões de Minas) e Diário da encruza (Organismo). Nesta entrevista concedida ao Pensar, ele fala do processo de escrita, do lugar de onde irradia sua poética (Campo Alegre), do conceito “pessoas-muitas” e dos múltiplos significados do ato de respirar.

Você completou 60 anos em setembro. O que fez para comemorar?

Eu respirei. Eu vim me preparando muito nos últimos anos para chegar a essa idade redonda, do jeito que eu fiz quando completei 50 anos. Vivi com muita alegria a chegada aos 50, com livro novo, Modelos vivos, que tinha um apanhado do que eu estava fazendo e apontando um caminho para o que viria depois. A questão da idade nunca foi um problema. O envelhecimento não me traz mal-estar nem quando contemplo a situação brasileira, que tem um contexto “velhofóbico”.

Aprendi que as gerações anteriores à minha inventaram novos modos de envelhecer. Geração dos músicos, por exemplo, Caetano, Gil, Paulinho da Viola, geração que está chegando aos 80 anos muito ativa, muito criativa e sem dar sinais de que vai parar, vai dependurar as chuteiras. Tudo isso é nutriente para mim e me animou a pensar com alegria, inclusive porque os meus 60 anos se dão no mesmíssimo ano dos 60 anos de Arnaldo Antunes, Eder Santos, Nuno Ramos. Como viajo muito, era para fazer de cada viagem uma comemoração. Estaria nos EUA em abril, depois Suíça; aí veio a pandemia.

Respirar tem um sentido múltiplo para os negros...

Respirar é uma palavra muito vasta para nós, negros. Ela aponta não só para a pandemia como para o genocídio: “Eu não consigo respirar”. Tive que passar a lidar com essas questões e, fazendo esse movimento, tudo ficou possível. Entrei numa roda-viva de autoconhecimento. Projetos antigos afloraram e agora estou com 12 livros. Coisas de vários anos que fui deixando de lado e, agora, sem as viagens, consegui examinar com calma. Os 60 anos estão sendo de muita vivacidade.

Conte um pouco sobre os dois livros mais recentes.

Um deles é o Diário da encruza, que vim escrevendo ao longo dos anos, tal qual foi com Antiboi, em 2017, com poemas que escrevo ao sabor dos ventos. A crise política e social que se instaurou no Brasil foi sugerindo a criação dos poemas, que publiquei nas redes sociais. Pela recepção dos leitores, já selecionava. O Diário da encruza tem outra característica, que é a tentativa de entendimento da encruzilhada não como um beco sem saída, como o ocidente pensa. Mas a encruzilhada como lugar de movimento, se é lugar de Exu, é lugar de coisas acontecerem.

Ao mesmo tempo em que temos o genocídio, celebra a experiência negra, coloca a experiência negra no Brasil na ponta de lança, da invenção de um país, e não dá lamúria, apesar de constar a existência do genocídio, não deixa de celebrar a nossa experiência de resistência nas diversas formas de celebrar. Como disse Muniz Sodré, em entrevista a você para a revista Roda: “Santo é aquele que olha a alegria de frente na direção do desejo”. É uma das epígrafes do Diário da encruza. A outra epígrafe é de Pixinguinha de quem Muniz fala nessa resposta. O repórter fazia um monte de perguntas complicadas para ele, ele estava com os velhos companheiros, Donga, João da Baiana. Ele ri diante da pergunta, aponta para os velhos companheiros e diz: 'Nós somos um poema'. Eu pus essas duas epígrafes para conversar. 

E o outro livro?

O outro livro se chama Extraquadro, é irmão quase gêmeo do Diário da encruza, poemas também vindos das redes sociais. Só que pontuados, nesse caso atravessados, por imagens da minha infância. Uma fotografia de minha infância: eu e minha irmã no Clube Palmeiras, onde a gente morava e meu pai era zelador, que funciona até hoje na (rua) Grão Pará. Minha irmã e eu estamos juntos de outras crianças nos brinquedos. Somos as únicas crianças com expressão séria. Daí “extraquadro”, aquele procedimento técnico-formal tanto da foto- grafia quanto do cinema para falar do que não está na foto. Os poemas não estão falando sobre a foto, estão falando sobre o entorno da foto da nossa infância e dos anos que se seguiram.

Em Extraquadro, você faz essa mirada para situações que viveu ou lança o olhar vivenciado pelo coletivo?

Tenho trabalhado há alguns anos com o conceito de “pessoas-muitas”. Aílton Krenak se referiu a mim, em conversa com uma amiga em comum, como sujeito-coletivo. Fiquei muito feliz e me dei conta de que sempre trabalhei com a ideia do poeta como alguém que tem muita gente na cabeça. Tenho uma sensação muito agradável quando pego qualquer livro meu; é que tem vários poetas ali. Eu penso que meus livros são coletâneas. Não precisa procurar por uma singularidade de Ricardo Aleixo.

Não existe singularidade, no sentido de marca pessoal. A minha marca pessoal é ser coletivo. Tenho desenvolvido o conceito de pessoa-muitas, o que acaba ampliando a noção de pessoa. A pessoa-muita não é só a minha cabeça, o meu pai Ogum, minha mãe Iemanjá, um dia descobri que tenho Exu na cabeça e tenho Xangô. Não são só meus ancestrais, o meu pai, minha mãe. Não. É quem não nasceu ainda e são as vivências que se dão no entorno… Eu escrevo como se estivesse vivido essas vidas. O “Eu” dos meus poemas não é necessariamente o ‘eu lírico do Ricardo Aleixo’.

Você fala da perspectiva de quem ainda não nasceu, é um devir...

É o mundo que está posto no oriki de Exu: atingiu ontem um pássaro, com uma pedra que só hoje atirou. Tenho um poema no Diário de encruza: “Ancestral é quem vive no meio do tempo sem tempo. É quem veio e já foi e é quem ainda não veio. Se veio, não virá. Se já foi ainda não veio”. É circular. É o que garante a dimensão ética do pertencimento à vida, não como algo que posso negociar, mas algo que ultrapassa o meu tempo de vida aqui.

Em Antiboi, você tem um poema que diz que você escreve, mesmo não sendo o melhor mês para escrever, o melhor ano para escrever, não é o melhor século para escrever. Antiboi foi publicado em 2017 e esses versos são muito pertinentes a 2020, último ano do século.

Não gosto do Facebook por várias razões e gosto por um único motivo: as lembranças que me permitem ver que, desde 2012, estava cantando a pedra sobre o desastre que estava ocorrendo. Não podia saber que era golpe, não podia saber que o genocídio seria ampliado. Muita gente que lia na época me chamava de exagerado. Dizia que estava vendo chifre na cabeça de cavalo. No Brasil, cavalo tem chifres, muitos chifres. Não me gabo disso, obviamente. Boa parte do que tenho escrito tem vindo de sonhos, nem tudo que escrevo é matéria de observação e reflexão. Às vezes, sou acordado no meio da noite com um poema pronto, só tenho que anotar. Às vezes, faço ajuste na diagramação, mudança de uma palavra.

Casa como espaço que permite uma reinvenção, você relaciona muito os seus projetos ao Campo Alegre, à sua casa, fazendo da sua casa muito mais do que um ateliê, lugar onde você convoca as pessoas para essas invenções. O que pensa da sua casa como espaço de invenções?

A casa é fundante para que eu seja um escritor. Não existiria o Ricardo Aleixo, voltado para as artes e pensamento, se a família negra e pobre da qual descendo não tivesse podido... Na velhice, o casal consegue adquirir essa casa. Meu pai adquiriu porque era funcionário público federal, por meio de um sorteio concorreu a uma das 586 casas do Campo Alegre. O Campo Alegre significa o convívio com um número muito maior de gente no meu entorno, já dá uma ideia de diversidade.

Víamos, pela primeira vez, dezenas de tons de pele negras. Para minha irmã e eu foi fascinante. Um dos efeitos imediatos é que puderam investir na educação minha e de minha irmã. Primeira pessoa da família a entrar para a universidade. Letras não forma escritor. Ela se decepciona. Me apresentou bibliografia, praticamente fiz o curso com ela, meu amor pela literatura tudo vem dessa carona que peguei com minha irmã, que me permitiu não cursar na universidade. Primeiro fato do Campo Alegre sobre a minha sensibilidade foi isso aí, pude chegar aos meus pais e dizer vou estudar sozinho. Conto em detalhes no Memorial Artístico Cultural que escrevi a pedido da UFMG.

Vou receber o notório saber no nível de doutorado, com possibilidade de participar de concursos e participar de bancas. Tive que fazer memorial com 158 páginas. Qual a importância? Mostra a importância do núcleo familiar na definição de rumos de seus filhos. Meus pais nunca questionaram minha decisão, pelo contrário, eles abraçaram minha decisão. O que quero frisar é algo que Muniz Sodré disse para você naquela entrevista. Lembra-se de que ele falou sobre o valor dos livros na casa dos pobres? Livro é um objeto que mobiliza, mais do que na casa dos brancos e classe média, na casa dos negros e dos indígenas é um dispositivo que permite a mobilidade, o sonho da mobilidade sociocultural. Faço a celebração de uma tradição que vem desde o século 19.

Meu pais de 1911 e 1918. Muita gente do século 19, o século de Machado, de Cruz e Souza, Luís Gama, José do Patrocínio, ou seja, é um século que não estranhou a presença negra no mundo intelectual. Meus avós, que não conheci, foram tocados por isso, porque legaram ao meu pai e à minha mãe três tecnologias fundamentais: leitura, escrita e capacidade de inter-relacionar os códigos. É muito sofisticado o processo que esse casal legou aos filhos. Meu pai era calígrafo, cinéfilo, além de dominar a oratória. O Campo Alegre é o lugar onde tudo isso aflora. Lugar de trocas, não só da família para quem chegava. Nunca faltaram comida, lugar de descanso e conversa. Essa casa é terreiro, lugar de atravessamento.

E poderia explicar o conceito de dimensão verbovocvisual?

É um conceito que os poetas extraíam da obra de James Joyce. No romance Invenção Fina Gazoeica, Joyce escreve essa palavra que dá conta da tripla dimensão de todas as palavras: dimensão verbal, dimensão vocal e dimensão visual. Isso é a base do meu fazer, todo focado pela obsessão de pensar cada palavra, dentro de cada verso, dentro de cada estrofe, dentro de cada poema, dentro de cada livro, como objeto nessa tripla ressonância. Isso é tão importante em mim que, até no sonho, aparece o tempo todo. A casa é, para mim, não a confirmação da noção do lar burguês, mas a destruição dessa perspectiva.

Eu tento me lembrar tantas coisas, desde março e abril, posso fazer na minha casa: Etecétera espaço do texto criativo, aulas on-line que dou desde 2016, projetos que acompanho, desde 2018, com gente do Brasil inteiro. Gravei muito Itaú Cultural, IMS, gravei videoperformance, instalação intermídia, recebi convite para fazer abertura de festival de arte sonora no ano que vem e nós resolvemos fazer a gravação de um vídeo. Vamos os quatro fazer uma criação aqui em casa, regras de segurança, aproveitar celebrar, transformar em ri- tual, vai beber, comemorar e conversar. Sou caseiro quando estou em casa e rueiro quando estou na rua.

Extraquadro

.Ricardo Aleixo 
.Impressões de Minas
.64 páginas 
.R$ 50
.impressoesdeminas.com.br

Diário da encruza

.Ricardo Aleixo 
.Organismo Editora 
.74 páginas 
.R$ 50
.editorasegundoselo.com.br

Oriki de Ogum à beira-mar

Pai
meu pai 
inumerável 
meu inumerável 
pai
que eu não seja
insensível
a nenhuma 
beleza
e que nunca 
me baste
nem toda a 
beleza 
que existe 
no mundo
enquanto houver
mundo
 
 

L

Três tambores negros
semeiam no corpo 
do vento um grito

de guerra e de paz
que incomeça pela
invocação do Mar

ancestral e se expande
em meio às dobras do L
(de Luta e de Liberdade)

que infinda 
o nome sagrado
daquela a quem Iansã

chama com tanta ternura
de Minha Irmã
Marielle


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