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Estado de Minas POESIA

O fio da memória: Mônica de Aquino retoma o mito da heroína grega Penélope

Com ajuda de outros poetas, escritora relata a vida da heroína em seu novo livro, linha, labirinto


30/10/2020 04:00 - atualizado 30/10/2020 10:10

(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

"Penélope traz à tona alguns aspectos do arquétipo feminino, como a paciência para trabalhos delicados"

Mônica de Aquino


Com escrita alinhavada, a poeta Mônica de Aquino retoma, no século 21, o mito de Penélope, heroína grega, filha de Ícaro, que vive à espera do marido, Ulisses, que partiu para a Guerra de Troia. Penélope, para driblar o tempo e outros pretendentes, não só tece uma mortalha para o esposo, encontra uma artimanha para esperar por seu amado, no que era uma autonomia possível.

Por certo, não haveria metáfora mais precisa do que a tessitura de Penélope para referenciar a poesia da escritora belo-horizontina no livro linha, labirinto (Edições Macondo). Constrói percurso de escolha cuidadosa da forma, típica de quem se preocupa com o avesso da costura. Se o cuidado da costureira se vê no arremate, na poesia de Mônica não há fios soltos ou malpostos. Na primeira parte do livro, ela retoma poesias de Fundo falso e na segunda parte convoca outros poetas que também já escreveram sobre Penélope.

Ela convida para a tarefa de puxar a linha os poetas Jussara Salazar, Prisca Agustoni, Lenora de Barros, Daniel Arelli, Ana Martins Marques, Guilherme Gontijo Flores, Edith Derdyk, Julia Panadés, Inês Campos, Ana Elisa Ribeiro, Ismar Tirelli Neto, Patrícia Lavelle, Lu Menezes e André Vallias.

Se a tessitura no mito de Penélope passa a ser uma maneira de domínio da própria vida, pode-se dizer que Mônica convoca homens e mulheres para, na linguagem, reinventar a vida e as relações. “Saberão, talvez, que esta história foi escrita por uma mulher, deixo algumas pistas, também disfarço, saberão que Ulisses não existiu (...)”. No entanto, sem, contudo, atar-se a quaisquer bandeiras. É um escrever criterioso, de uma mulher, portanto, com traços desse lugar, mas não somente com muitas outras preocupações.  Em entrevista ao Pensar, a autora de Sístole (2005), Fundo falso (2018) e Continuar a nascer (2019) fala de seu processo.

Como foi o trabalho de retomar os poemas de Fundo falso? Quantos deles reaparecem em linha, labirinto?
Desde que finalizei Fundo falso, percebi que a série a partir da Penélope possuía autonomia e indicava uma continuidade que já me fez pensar, à época do lançamento, em um novo livro no qual eu publicaria não só os meus poemas, mas também poemas e textos de outros poetas e artistas contemporâneos que dialogassem com o mito. O trabalho acabou ganhando uma dimensão maior do que me propus no início, e aos poemas da primeira parte de Fundo falso (todos estão em linha, labirinto, com novos títulos e ordem, o que reescreve o conjunto), acrescentei ainda outros inéditos, que mostravam a mim mesma a potência infinita – e labiríntica – da personagem e seus ardis, e a partir dela pude escrever novas leituras de uma espécie de representação do feminino. A tentação de seguir desfazendo e refazendo (sempre em diferença) era grande, e o ponto final do novo livro veio quase arbitrário, encerrando (pelo menos por enquanto) essa tessitura.

Quando foi seu primeiro encontro com o mito de Penélope?
Não saberia precisar, porque a personagem reaparece, como referência mais direta ou transfigurada, em diferentes textos literários, incluindo a poesia de poetas como Orides Fontela, além de já se imiscuir na cultura popular, com o ardil de tecer e desfazer a mortalha retomado em filmes e novelas. Mas sei te dizer quando surgiu o primeiro impulso de também escrever poemas a partir do mito: foi durante uma ZIP (Zona de Invenção Poesia &), evento literário conduzido pelo poeta Ricardo Aleixo, não me lembro em que ano, no qual estive ao lado das também poetas mineiras Ana Elisa Ribeiro e Ana Martins Marques.

As duas ti- nham poemas a partir da Penélope e a certa altura propuseram uma espécie de ‘duelo’. Saí do encontro com o desejo de também escrever um poema em torno da personagem, ideia que resgatei um bom tempo depois, e o que começou despretensioso acabou se tornando minha série mais longa até hoje, iniciada em terceira pessoa e que, curiosamente, foi caminhando para a primeira pessoa, tornando-se, às vezes, uma espécie de ficção de mim mesma, e que agora se desdobra e multiplica neste novo livro.

Como foi o processo de tessitura com os poetas convidados?
Fiz a seleção a partir das minhas leituras e afinidades, tendo sempre em mente que queria um material diversificado, que fosse mais do que uma recolha ou antologia de “Penélopes”: o núcleo, mais do que a personagem em si, foi o que ela representa, certa relação com o tempo, a própria materialidade do trabalho manual quando me volto, por exemplo, para os processos criativos das duas artistas plásticas escolhidas, Julia Panadés e Edith Derdyk. Abro, inclusive, para outros personagens míticos e históricos (escolha que se mostra desde o título, que aponta para outra personagem da mitologia grega, Ariadne), como Filomela da mitologia grega (no poema de Patrícia Lavelle), a escritora Agota Kristof (em um dos poemas de Prisca Agustoni) e João Cândido, líder da Revolta da Chibata (no poema de Lu Menezes).

Há, ainda, poemas que passam a dialogar com o mito a partir da construção narrativa do livro e pela sequência de poemas escolhida. Outro desejo foi não circunscrever a referência à Penélope a mulheres – o mito diz também aos homens, como já mostra, por exemplo, James Joyce, e hoje os poetas que incluo – há quatro homens no conjunto.

De onde você fala? É uma poesia feminista? Ou você considera que não é preciso dizer desse lugar?
Não circunscrevo meu trabalho artístico a um núcleo temático, ao contrário, uma das ambições é não me prender a uma identidade única e me deixar mobilizar cada vez mais pelas experiências e leituras, buscando sempre experimentar novos temas (ou ângulos), exercitando também a forma. Ao mesmo tempo, a criação é marcada pelo momento histórico e circunstâncias vividas, e nesse sentido ser mulher atravessa minha escrita e é também um dos ‘assuntos’ do livro, o que toca em questões feministas na própria série a partir da Penélope, obviamente, à medida que o olhar para a personagem mescla-se a reflexões sobre o lugar social da mulher hoje e sobre nossa múltipla subjetividade.

Em meu livro anterior, Continuar a nascer, também percebo um forte teor político, na medida em que ele fala de gravidez e maternidade de um ponto de vista desidealizado e desromantizado, mostrando, sim, todo o encanto que foi e tem sido essa experiência, mas também o impacto pensado desde o corpo, todas as transformações violentas que uma gestação impõe. Falar de uma temática ligada ao feminino sem circunscrevê-la a esse universo, desejando que o livro não seja só um livro para mulheres, mas um trabalho que pode interessar a qualquer pessoa na medida em que fala, com cuidado intelectual e estético, de uma experiência tão forte e vital, talvez seja o que esse tipo de trabalho tem de mais político – e, nesse sentido, fundamental.

A costura, a tessitura aparece como um lugar do feminino? O que desse lugar de tessitura você leva para sua poesia?
A tessitura está muito ligada, simbolicamente, às mulheres, desde a imagem das três moiras responsáveis pela vida humana do nascimento à morte, tecendo e cortando seus fios. O trabalho manual ligado à costura também é tradicionalmente ligado à mulher e a certas características a nós atribuídas, como o cuidado com a vida doméstica e a paciência para trabalhos delicados.

Penélope traz à tona alguns aspectos desse arquétipo feminino: a vida mais ligada à casa, a espera e a submissão, o silencioso trabalho da tecelagem também como uma metáfora de certa posição social – e no caso da personagem, já na Odisseia, como desobediência e ardil. Na retomada que faço do mito – assim como outros poetas que estão no livro –, uso esses elementos como ponto de partida para o questionamento e a subversão, buscando ler o feminino a partir dos dilemas contemporâneos.

Você considera que o espaço da mulher está conquistado na poesia brasileira?
Apesar das várias conquistas e de termos tantas poetas reconhecidas e com um espaço já consolidado, é difícil dizer que nosso lugar está conquistado, quando até muitos direitos civis são recentes, com poucas décadas, e apesar de eu não viver com frequência o machismo na minha vida pessoal, sabemos que ainda estamos todas sob influência de uma forte cultura patriarcal. Nesse sentido, acho que a situação é dinâmica e movediça, e é importante que sigamos sempre atentos, inclusive ao nosso próprio comportamento, reconhecendo os espaços conquistados e cultivando-os, o que vale não só para as mulheres, mas também para as demais lutas de minorias e grupos historicamente marginalizados. Ao mesmo tempo, não gosto de me situar em uma posição de embate permanente e acredito que uma das maneiras de consolidar conquistas é tratá-las com a naturalidade que devem ter. Cito um exemplo

ligado a outro assunto, extrapolando o campo da poesia, para explicar melhor meu ponto: me incomoda ver nesta pandemia, essencialmente, matérias sobre mulheres sobrecarregadas com o cuidado com os filhos em casa. Sei que é verdade que essa tarefa ainda recai muito mais sobre as mães, mas, ao mesmo tempo, acho que mostrar como ela sobrecarrega também uma parte dos homens é um jeito de deixar claro que a carga compete a ambos os pais.

Naturalizar a divisão, acostumando-nos, todos, a ver os homens também neste papel de cuidado com os filhos e com a casa, é um caminho para outra percepção do problema. Parece-me que esse tipo de exposição vai introjetando em todos uma outra compreensão, complementar à denúncia e ao embate. Do mesmo jeito que é importante ver mulheres em posições de destaque profissional para nos reconhecer nesses lugares, é importante apresentar o homem em seus papéis múltiplos, para que eles se vejam e se reconheçam assim, e para que passemos também a reconhecê-los nessa multiplicidade de demandas, chegando à parceria igualitária que desejamos – pelo menos eu desejo.

Insone

Completar a urdidura do dia
saber do manto o desenho exato

saciar toda fome de geometria
conhecer o trabalho, no limite dos olhos.

Recriar-se inexata sem simetria
até terminar o diagrama de escolhas.

Só então destruir, com agulha e tesoura cada amor imaginado.
Conservar apenas a memória das mãos sobre o tecido, o percurso do fio

a desfazer o possível antes da aurora.

Penélope dissolve-se na hipótese:
quer conhecer, em detalhes,
o manto que a separa do outro.

Tece o pano como quem toca
o corpo de um homem, de cem homens
desfaz a mortalha como se destruísse um véu.

 Fere a carne do pano, fere o dedo na pressa
e mancha, com sangue, a colcha de promessas.

Mas ante isso: recusa o passado seus retalhos
prefere o que ainda não aconteceu
enquanto pensa: Ulisses, agora, sou eu.

outro mendigo 
junto à porta 

Guilherme Gontijo Flores

Entra de esgueira, 
a cara torta entrega o efeito do disfarce; 
ele retorna, ainda bruto, 
ainda incapaz do face a face, 
em frente ao tempo que desperta. 
Sabe: não foram dias fáceis. 
Sei: ele sempre chega e parte 
de novo, 
pois assim desfaz-se 
este elo que refaço em porte 
firme. Moedas pra Odisseu 
são tudo — dou-as e pretendo 
a pobre ficção, eu consinto 
num jogo longo que se estende, 
Penélope perfeita em seus recintos: 
o nome de Odisseu sou eu.  

Prisca Agustoni

cette langue qui tue ma langue maternelle:
a língua inimiga entra
pelos ouvidos e escorre
até a aorta
ali espera e rosna
um cão que sabe
o estranho à espreita
atrás da porta
nessa língua feita cão
que ladra
e rói o osso
da língua morta
a operária húngara
escreve seu caderno
como uma Penélope,
mais uma,
ela própria no exílio
tecendo
sua mortalha:
Agota Kristof
espera
a volta da língua
sacrificada,
a certeza da escrita
como única casa
rascunho eterno
numa língua torta

Ismar Tirelli Neto

Avançando-se o problema da voz
de quem
verbera avança-se o problema da torre
avança-se o problema de quem deste alto destece
o quê
avançam-se os espaços recuados
o problema da disposição dos aposentos
do tálamo
(onde a memória ininterrupta)
o problema dos aposentos
dos que se estreitam aos aposentos mais recuados
dos firmes
dos opacos;
assim falou o véu na boca
palaciana coloca o problema de quem vê
no orto do mundo esperas
vacatura


penélope

Ana Martins Marques 

Teu nome 
espaço 

meu nome 
espera 

teu nome 
astúcias 

meu nome 
agulhas 

teu nome 
nau 

meu nome 
noite 

teu nome 
ninguém 

meu nome 
também  

Lançamento nesta sexta-feira (30), às 20h, com bate-papo com Leonardo Antunes e Fabricia Walace Rodrigues e leitura de poemas. No canal da Edições Macondo no YouTube

Linha, labirinto
Mônica de Aquino
Edições Macondo
108 páginas
R$ 42
Lançamento na sexta (30), às 20h, no YouTube


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