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Estado de Minas ROMANCE

Dois sobreviventes em um país hostil: André Timm narra história contra o preconceito

Em seu novo romance, o gaúcho conta história de um imigrante haitiano e uma menina trans que protagonizam uma jornada numa Santa Catarina intolerante


23/10/2020 04:00 - atualizado 23/10/2020 09:16

(foto: Felipe Ballin/Divulgação)
(foto: Felipe Ballin/Divulgação)

"A literatura é o próprio exercício da alteridade, do colocar-se no lugar do outro. Se estivéssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em sério risco. Todavia, eu acredito na importância da representatividade"

André Timm

Em outubro de 2015, o haitiano Fetiere Sterlin caminhava, na companhia da esposa, pelas ruas de Navegantes, litoral de Santa Catarina, quando um grupo de adolescentes passou de bicicleta e o chamou de “macici” (homossexual na língua crioula). Fetiere respondeu às provocações, devolvendo o xingamento.

Então, um dos adolescentes sentenciou: “Se eu sou 'macici', você vai morrer”. Horas depois, enquanto conversava com a esposa em frente à sua casa, o grupo voltou munido de pás e facas. Fetiere foi atacado brutalmente com inúmeros golpes e perfurações, e morreu a caminho do hospital.

Esse não foi o único ataque registrado naquele ano. De acordo com a Associação de Haitianos de Navegantes, inúmeros imigrantes foram vítimas de crimes de xenofobia, tanto em ataques físicos quanto verbais. Sobreviventes do terremoto que destruiu seu país de origem em 2010, muitos buscaram novas oportunidades de vida em Santa Catarina, onde foram recebidos com preconceito e ódio, também disseminados em perfis de redes sociais que alegavam que estavam ali para roubar os empregos da população local.

Cinco anos depois da morte de Fetiere, a violência e a xenofobia contra os imigrantes inspiraram o escritor gaúcho André Timm, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2017 com Modos inacabados de morrer, a escrever o romance Morte Sul Peste Oeste.  A trama acompanha Dominique Baptiste Monfiston, um haitiano que deixa esposa e filho em seu país arrasado e, através da ação de “coiotes”, chega ao Brasil em busca de um futuro melhor. Ao atravessar a fronteira, recebe então uma proposta de emprego num grande frigorífico em Santa Catarina, porém um incidente o obriga a mudar radicalmente seus planos, colocando-o numa espiral alimentada por preconceito e ódio.

Paralelo à saga de Dominique, corre a história de Brigite, uma menina trans de 13 anos que é submetida a um regime de abusos ao se ver obrigada pela própria mãe a se prostituir e a conviver com o seu namorado violento. Porém, apesar das adversidades, Brigite é dotada de uma extraordinária força para viver o sonho de ser cineasta. E, quando seu destino e o de Dominique se cruzam, é o uso do afeto contra a violência que fazem com que busquem redenção em território estrangeiro, no estrangeirismo do próprio corpo.

Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, Timm fala sobre o processo de construção do novo romance, suas inspirações e a importância de uma literatura crítica em tempos de extremismo e de cultura do ódio. Morador do Oeste de Santa Catarina, estado predominantemente bolsonarista, o autor conhece de perto as manifestações públicas de intolerância. “Embora eu não queira afirmar que todo eleitor de Bolsonaro seja xenófobo ou homofóbico, por outro lado, é inegável que muitos de seus seguidores endossam seus posicionamentos retrógrados e inclusive o admiram por isso”.

Embora se trate de um romance, Morte Sul Peste Oeste tem um aspecto temático muito fundamentado na atual realidade nacional e internacional. Partindo então da frase do filósofo inglês Jeremy Betham de que “daquilo que é real não se pode dar nenhuma explicação clara, a não ser por meio de algo fictício”, em que momento a necessidade de contar essa história chegou até você?
A questão dos expatriados hoje é um problema de proporções globais. A intolerância também. Enquanto espécie, parece que perdemos nossa capacidade de empatia, de aceitar qualquer posição que não seja a nossa própria. Nos tornamos intolerantes a outras crenças, outros credos, escolhas, gêneros. Estamos binários e isso é péssimo, pois nos faz analisar as coisas como se só existissem duas possibilidades, enquanto há um matiz delas.

Pergunto-me se isso representa a maioria de nós ou se uma minoria muito barulhenta. Espero que se trate da segunda opção. Um migrante haitiano e uma menina trans de 13 anos são expatriados da própria terra e do próprio corpo, vítimas da nossa binariedade limitante. No que toca à realidade dos haitianos, há anos vejo isso de uma perspectiva próxima, pois moro no Oeste catarinense, local escolhido por muitos migrantes haitianos, senegaleses e venezuelanos devido ao grande número de frigoríficos. São histórias que me tocam com tristeza, porque é tão evidente que não precisaria ser dessa maneira.

Um elemento que marca o processo migratório de Dominique é o preconceito. Logo após se basear em Santa Catarina e conseguir um emprego num frigorífico, um incidente o faz vítima de ataques de xenofobia. Qual a importância de trazer essa discussão para a obra, sobretudo posta no contexto de um estado predominantemente branco?
Bolsonaro foi o mais votado em 266 das 295 cidades de Santa Catarina. Em Chapecó, ele obteve quase 65% dos votos. Embora eu não queira afirmar que todo eleitor de Bolsonaro seja xenófobo ou homofóbico, por outro lado, é inegável que muitos de seus seguidores endossam seus posicionamentos retrógrados e inclusive o admiram por isso.

O frenesi com expressões como “sou homofóbico, sim, com muito orgulho” ou aquela que afirma que os imigrantes são "a escória do mundo” estão aí para comprovar. Também podemos lembrar que Santa Catarina é um estado que abriga inúmeras células adormecidas (e agora nem tão adormecidas assim) de organizações neonazistas. Creio que essas sejam razões que justificam a escrita de um livro como Morte Sul Peste Oeste.

 A segunda personagem de destaque do livro é a transexual Brigite, que, embora submetida pela própria mãe a um regime de prostituição, consegue guiar sua visão de mundo de modo otimista. De que forma desenhar a personagem dessa maneira foi pensado para ser um contraponto para a história de Dominique, e assim estabelecer a dinâmica entre os personagens?
Ambos são personagens jogados às margens em decorrência de nossos preconceitos, de nossa intolerância, de um capitalismo insano e desenfreado também. Dominique e Brigite são motivados por diferentes dores e objetivos, mas, como afirma o escritor Itamar Vieira Junior no texto que apresenta Morte Sul Peste Oeste, os dois “guardam em si a voragem dos sobreviventes”.

Quais foram os cuidados narrativos que você tomou para tratar de personagens que se enquadram em estereótipos sem que se tornassem caricatos no universo ficcional?
A resposta metafísica é que o escritor precisa ser uma espécie de cavalo, para emprestar um termo do candomblé, precisa se permitir tentar incorporar, se colocar no lugar daquele que é objeto de estudo e observação e permitir-se o download do máximo de percepções e sensações que conseguir. Com sorte, você sai desse processo com parte daquilo que precisa para construir um personagem verossímil, tridimensional, que soe real e salte das páginas.

A parte concreta da resposta é que houve extensas pesquisas. Leituras, entrevistas, filmes, artigos, documentários. Bruna Sofia Morsch, mulher trans, psicóloga/psicanalista e escritora, foi de uma generosidade enorme ao compartilhar suas percepções sobre Brigite, percepções que vêm não apenas de sua vivência de mulher trans, mas de seu repertório técnico e de sua formação. Nahun St Julien, migrante haitiano, também foi muito solícito ao compartilhar comigo sua jornada.

Algo que chama a atenção na estruturação do enredo é a questão do não pertencimento, de como um personagem é estrangeiro num país enquanto o outro é estrangeiro no próprio corpo. Faz sentido essa correlação? Durante a escrita do romance, você pensou na correspondência desses fatores em dois níveis?
Sim, faz todo o sentido e essa correspondência dos nãos pertencimentos de Brigite e Dominique sempre foi muito latente desde o princípio.

Você dá vida a dois personagens marginalizados, que estão distantes do seu universo enquanto indivíduos. De alguma forma, trabalhar essa voz tão distante da sua realidade é uma preocupação ou acredita que, no processo criativo, a ficção é uma licença para o autor tratar de temas, contextos e questões sociais que não fazem parte de seu mundo?
Como mencionei antes, houve um extenso trabalho de entender os universos e gêneses desses indivíduos. Sempre entendi que nesse caso minha responsabilidade era muito maior, justamente por estar tratando de vivências que eram tão distantes ou diferentes da minha. É um livro arriscado, visto que estou sujeito aos questionamentos de lugar de fala, com os quais não concordo quando se trata de ficção.

A literatura é o próprio exercício da alteridade, do colocar-se no lugar do outro. Se estivéssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em sério risco. Todavia, eu acredito na importância da representatividade. Acredito inclusive que a falta dela é o que nos leva a questionamentos como o do lugar de fala na ficção. O Brasil é um país imenso, múltiplo, diverso. Carecemos de representatividade na autoria e no mosaico de personagens que habitam nossa literatura.

Quero acreditar que ao trazer para a narrativa personagens que estão à margem, estou ajudando a dar um pequeno passo em direção a uma literatura mais representativa das minorias, sempre desejando que, cada vez mais, as próprias minorias tenham as condições de criar seus próprios personagens, sejam eles quais forem, e lançar seus próprios livros. Tudo isso, é claro, falando de uma perspectiva de proporcionalidade, pois exemplos isolados já acontecem.

Você acredita que, diante desse cenário nacional de crescente radicalismo e polarização, é obrigação do autor naturalmente trazer para a literatura um tom crítico sobre os acontecimentos do seu tempo?
Não creio que seja uma obrigação. Soa, talvez, um tanto autoritário para mim. É preciso ter a liberdade de contar as histórias que se queiram contar. Agora, ainda que não seja mandatório, considero importante. A literatura, em sua história, sempre foi instrumento político e teve importantes contribuições nesse aspecto. Quem pode fazê-la e se sente encorajado, que o faça. 

Apesar dos episódios de violência que vivem seus personagens, estes buscam uma forma de redenção por meio do afeto, pelo pacto que fazem de usar suas histórias como um instrumento de força e sobrevivência. No momento em que vivemos, de preconceito, intolerância e pandemia, o quão importante é ser otimista?
É imprescindível. Se não acreditarmos que é possível algum tipo de transformação, estamos acabados. Aí deitamos as armas e nos entregamos. Mas volto à minha dúvida anterior: os intolerantes ensandecidos são a maioria ou uma minoria barulhenta? A segunda opção facilitaria um pouco nosso trabalho.

*Sérgio Tavares é escritor

Morte sul peste oeste
André Timm
Editora Taverna
180 páginas
R$ 44,90


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