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Estado de Minas AMOR ETERNO

Fragmentos de um desencontro amoroso em livro de Kaio Carmona

Em A casa comum, o poeta e professor investe no ritmo das palavras para recriar o momento em que o amor não é mais 'um estado de permanência'


25/09/2020 04:00 - atualizado 25/09/2020 09:13

Kaio Carmona: citação de Goethe na epígrafe para realçar as afinidades eletivas em sua narrativa(foto: divulgação)
Kaio Carmona: citação de Goethe na epígrafe para realçar as afinidades eletivas em sua narrativa (foto: divulgação)

Da casa comum à casa partida. O amor eterno, os sonhos comuns, o casamento que se estilhaça. Ao final de toda a viagem, terá valido a pena? Para ela, o amor se revela como que em um “estado de vizinhança”, algo ao estilo “as coisas bonitas que falamos, as coisas feias que fazemos”. Para ele, não é diferente: “o amor mais nos engana para melhor nos abater”.

É a partir de uma carta de despedida, escrita a mão, que o escritor mineiro e professor de literatura Kaio Carmona constrói o enredo de A casa comum, novela que será lançada em 1º de outubro a partir das 20h, em live transmitida pelo  canal do YouTube Quixote+ Do Editoras Associadas. 

 

Valendo-se de igual recurso utilizado por Valter Hugo Mãe em obras como nosso reino, o remorso de baltazar serapião, a máquina de fazer espanhóis e o apocalipse dos trabalhadores, Kaio Carmona ignora as normas para utilização das letras maiúsculas. Turbilhões de emoções brotam da memória de vida mais íntima das duas personagens ao narrar o “aqui e agora da separação”.

Todo em letras minúsculas, o desencadear do texto ganha o ritmo da oralidade sofrida, despejada após o trauma recente; dor que se sobrepõe, se mistura às dores do mundo e à súbita redescoberta do contexto social e coletivo da cidade em que vivem. Quem é ela, quem é ele, onde moram, nada disso importa. A obra aborda as dores das perdas; para passar por elas, basta estar vivo. 

 

Ao mesmo tempo em que enfatiza a universalidade do tema, Kaio Carmona oferece especial atenção ao olhar existencial sob o viés cultural de gênero. A caligrafia límpida da carta que não hesita – convite para que o leitor refaça o percurso das muitas dores do amor – parece ser feminina e de fato é. É ela que dá a partida, com o singelo manuscrito depositado sobre o tampo de vidro, que encerra o casamento: pede a ele que se respeite um período sem que ambos se encontrem, até que “o tempo melhore as coisas entre nós”.

Mas é na primeira parte da história que se revela o gênero de quem escreve a carta. Solta-se, dali, o fio do gênero, a trilha de toda a trama: “eu, que fui forjada para o sim, moldada para o sim, agora sigo em contramão. sou eu a matar de vez o amor. cortar seus últimos vestígios de vida, ver o fôlego findar-se, suspenso no ar. eu, a assassina. eu, o monstro. eu, a autora da ferida. mas insisto, cumpro um destino. a vida útil do amor, o prazo do amor. cansei. preciso sair e andar.” Prossegue: “e me pergunto se será esse o meu enredo. repetir a história de minha mãe, de minhas irmãs, de minha amiga, das mulheres todas”.

 

%u201CEmbora seja meu primeiro romance, ou novela, ou prosa poética, ou como o leitor preferir, não me preocupei muito com a forma, e, sim, com o ritmo do texto: o ritmo das palavras ao se aproximarem do amor, do fim do amor"

Kaio Carmona

 

O livro é dividido em duas seções – “ela” e “ele” – em que os sofrimentos circunstanciais da mulher e do homem referenciam-se aos contornos dos constrangimentos sociais. Da seção “ele” emerge a linguagem do destinatário da carta. Por detrás da agressividade de algumas expressões chulas, indignadas pela revolta do abandono anunciado, encontra-se a dor escondida, a decepção, o vazio, o mundo sem gravidade, sem chão: “o amor. estranha salomé o amor, que despe pouco a pouco os seus sete véus e ao final se vê nua e ridícula ao descobrir que a beleza estava no gesto que fazia ao deitar os véus ao chão. puta. vagabunda. majestade cultuada que se vexa quando exposta em celebração e dá logo mostra de sua vaidade, de sua agonia, expõe sua chaga e perecimento. vadia, puta-filha-da-puta. o amor. o amor. o amor. o que já conhecemos de antemão como finito e mesmo assim decidimos experimentar como se pudéssemos contra ele alguma modificação, algum sopro eterno, alguma criação”.

 

Salto no abismo

 

Saída, não há. Apenas o abismo: saltar é a única opção, conclui a personagem masculina. Resta a viagem de um relacionamento, posta por Goethe nos termos de uma “síntese de impossibilidades”. Não à toa, a epígrafe cita a obra Afinidades eletivas – expressão usada nas ciências naturais para designar a atração entre dois elementos químicos diferentes, mas afins –, em que considera o casamento uma "síntese de impossibilidades": da química, tem-se que esses dois elementos agregados se separam para se unir a dois outros elementos.

É dessa forma que Goethe estressa aspectos morais e psicológicos do jogo de atrações e repulsas entre casais, aquilo que um dia os atraiu é também aquilo que em dado momento da rotina os repele: “E assim descansam os dois amantes um ao lado do outro. A quietude paira sobre sua morada; anjos serenos, seus afins, olham-nos do espaço. E que momento feliz aquele em que, um dia, despertarão juntos!”. 

 

A apresentação do romance – que como sugere Kaio Carmona, a partir da preferência do leitor, pode também ser categorizado sob a forma de novela ou prosa poética – é assinada ao final da obra pela professora de literatura Nádia Battella Gotlib. Sob o título “Das artimanhas do discurso amoroso” – e em referência à citação de Carmona, “o amor não é mais um estado de permanência” – ela pontua, na narrativa das emoções despejadas pelas personagens, a força das alusões presentes no repertório mítico de uma cultura clássica, tanto na tradição da literatura brasileira quanto também europeia, naturalmente encaixadas na trama.


Assim como Clarice Lispector emerge sob a menção de Macabéa, personagem de A hora da estrela; Abelardo e Heloísa surgem em alusão ao dramático desfecho dessa história de amor do século 12, na França. E como não poderia deixar de ser, José de Alencar também se faz presente: “julguei ter meu nome escrito nessa cartografia do amor. achei que merecia meu papel, meu espaço, fosse aurélia na janela, fosse o encontro de iracema, fosse o destino de lúcia, fosse atriz, fosse beatriz.” 

 

Sobre o autor

Kaio Carmona é poeta e professor de literatura, doutor em estudos literários pela UFMG, publicou vários livros, entre eles Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Compêndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum, 2017). O autor embarcará para Luanda (Angola), onde será “Leitor Brasileiro” por dois anos na Universidade Agostinho Neto

 

Trecho

“cansei. pronto. é isso. ponto final. já não suporto mais, já não dou conta. é isso. o amor acaba. não tem mais jeito. o amor realmente acaba. todo livro tem a sua última página, o último parágrafo. é preciso atribuir os devidos créditos ao filme que se encerra, sair da escuridão da sala. é sabido, é esperado. antes disso, as estratégias. aprende-se a ler com mais calma, deixa-se de ir ao cinema. mas mesmo em casa a cena tem de chegar ao fim. as diversas possibilidades do enredo já foram pensadas, inventadas, testadas, e quaisquer delas levam ao mesmo lugar. agora posso ter a certeza. a certeza de meu momento. o que sei agora é o que sou agora. um epílogo. uma constatação. cumpro um destino. etapas que um dia pensei existir, mas passavam distantes como notícias. palavras que orbitam em torno de um mesmo eixo e que apontam para um mesmo sentido. o fim. e é claro que imaginei isso um dia. o fim. devaneei. sonhei. fiz o exercício. rezei a cartilha da história” 

 

A casa comum

De Kaio Carmona

Editora: Quixote+Do

Coleção Desassossego

76 páginas.

R$ 49,90 

Lançamento: 1º de outubro

Transmissão pelo YouTube, no canal Quixote+Do Editoras Associadas


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