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Estado de Minas HISTÓRIA

O Brazil que o Brasil não conhece em relatos de viajantes ingleses que vieram ao país no século 16

Menos divulgadas do que as incursões dos franceses e holandeses, palavras dos ingleses são reunidas em livro pela primeira vez e revelam o interesse que a Coroa britânica nutriu pela colônia portuguesa


25/09/2020 04:00 - atualizado 25/09/2020 09:23

Terra à vista... Mas, neste “barco” aqui, apenas para os ingleses navegadores, corsários, geógrafos, marinheiros, soldados, náufragos, cirurgiões-barbeiros e, principalmente, mercadores. Entre 1526 e 1608, no início da colonização portuguesa no Brasil, o litoral e outras áreas foram visitados por esses europeus que narraram suas experiências e aventuras em cartas, notícias, relatórios, obras de geografia, diários de bordo, relatos de viagem e depoimentos à Justiça.

Para mostrar o que eles viram — e a maioria dos brasileiros ainda desconhece —, as professoras e pesquisadoras Sheila Hue e Vivien Kogut Lessa de Sá mergulharam em farta documentação para lançar Ingleses no Brasil: relatos de viagem, 1526-1608, pela Chão Editora. São 12 narrativas inéditas em livro, traduzidas diretamente de originais ingleses publicados nos séculos 16 e 17.

 

Livro é sempre uma “viagem”, com partida, observações, comparações, conhecimento e percepções. Até a chegada, ou ponto final na página, as palavras se tornam guias do destino, fios condutores de emoção, ca- minhos a serem desbravados. E por que esse capítulo é tão desconhecido? Respondem as pesquisadoras: “As viagens inglesas ao Brasil durante o século 16 são menos conhecidas do que as viagens de franceses e holandeses, e permaneceram praticamente à margem da historiografia brasileira.

Ocorridas em uma época de grandes transformações geopolíticas, revelam o interesse que a Inglaterra nutriu pela colônia portuguesa ao longo do primeiro século de ocupação, assim como as diferentes fases das relações entre Brasil e Inglaterra — de um primeiro período de exploração marítima e descobrimento e de tentativas de estabelecer relações comerciais, até as últimas décadas de hostilidade aberta e ataques de corsários”.

 

A maioria dos relatos está nas coletâneas de viagem de Richard Hakluyt (1589-1600) e Samuel Purchas (1625), impressas em Londres. Há também os que integram livros autônomos, como os do navegador Richard Hawkins, autor de um livro sobre sua viagem à América do Sul, e pelo cirurgião-barbeiro William Davies, que navegou pelo rio Amazonas.

 

A edição traz também material iconográfico, composto por mapas da época, folhas de rosto e páginas dos livros originais, “que ajuda o leitor a criar um imaginário e a contextualizar as viagens”, informam as tradutoras dos documentos e organizadoras da obra. Os relatos reunidos em Ingleses no Brasil, contextualizados por um posfácio e notas explicativas, “refletem a diversidade cultural e social de seus autores e trazem um olhar múltiplo sobre esse período e sobre aspectos pouco co- nhecidos da colônia”. 

 

Para tornar a leitura mais saborosa, vale a orientação de Sheila e Vivien: “O interessante é que os relatos conjugam experiências vividas com um pouco de ficção, como era costume na época. Para o leitor de hoje, parecem narrativas de aventuras, algumas quase inacreditáveis. Nossa motivação foi tornar acessível ao leitor brasileiro esse conjunto de relatos sobre a formação da colônia, que trazem questões e problemas ainda hoje pertinentes e oferecem perspectivas pouco conhecidas do Brasil”.

 

A leitura é ponto de partida também para conhecer as pesquisadoras e seu trabalho. Sheila Hue é professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Suas principais áreas de pesquisa são os discursos quinhentistas sobre o Brasil e os estudos camonianos. Já Vivien Kogut Lessa de Sá leciona estudos lusófonos na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Pesquisa principalmente as interações entre a Europa renascentista e o Brasil colônia, literaturas de viagem de fins do século 16 e estudos latino-americanos.

Juntas, as duas editaram As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet (Zahar, 2007) e desenvolvem há anos pesquisas sobre os relatos das viagens inglesas ao Brasil no século 16. Entre os últimos trabalhos publicados está o capítulo English pirates: early angloportuguese relations in the new world, no volume Transnational portuguese studies, organizado por Hillary Owen e Claire Williams (Liverpool University Press, 2020). A seguir, uma entrevista com as organizadoras

 

"Seria necessário todo um livro só para descrever os tipos estranhos de peixes que se encontram nessa costa e também os estranhos animais e aves da terra, pois há alguns peixes parecidos com homens e mulheres, e alguns parecidos com cavalos, e alguns com coelhos, e alguns são semelhantes aos sapatos altos usados pelas mulheres na Espanha e estes são muito venenosos."

Relato da viagem feita em 1526 pelo inglês Roger Barlow

 

ENTREVISTA

 

Sheila Hue e Vivien Kogut Lessa de Sá (organizadoras)

 

Por que a presença dos ingleses no Brasil, no período mostrado no livro, ficou encoberta tanto tempo, ao contrário da dos franceses e holandeses?

 

Sheila – Os ingleses não tiveram um projeto de efetiva colonização do Brasil, como ocorreu com os franceses e holandeses, e isso fez com que não se lançasse tanta luz sobre a produção discursiva inglesa a respeito da colônia portuguesa. Lembremos a França Antártica no Rio de Janeiro, no século 16, a França Equinocial no Maranhão, no século 17, e o domínio holandês em Pernambuco, no mesmo século, que tantas marcas deixou. A produção letrada dessas três investidas logo ganhou as tipografias e teve uma ampla difusão.

 

Os relatos sobre a França Antártica, por exemplo, foram publicados em língua portuguesa, assim como vários outros livros e documentos sobre a história do Brasil, entre a segunda metade do século 19 e o início do 20, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia de Ciências de Lisboa lideraram um movimento de divulgação e tradução (quando era o caso) desses documentos, com a intenção de erigir uma história do Brasil. Nessa época, apenas o livro de memórias do inglês Anthony Knivet foi traduzido e publicado (e a primeira tradução não foi do original inglês, mas de uma muito deficiente tradução holandesa).

 

(foto: Tiago Morais/ Divulgação)
(foto: Tiago Morais/ Divulgação)
 

Como os ingleses descreviam os portugueses?

 

Sheila – Os relatos ingleses, por conta do antagonismo político e religioso entre as coroas ibérica e inglesa, descrevem colonos e portugueses de forma, por vezes, bastante depreciativa. James Lancaster, que invadiu e saqueou o Recife em 1595, por exemplo, descreve os portugueses como traiçoeiros e vis. Outros ridicularizam os colonos e os classificam como covardes e medrosos – uma perspectiva dos fatos na medida para engrandecer os navegadores da rainha Elisabeth I diante dos leitores conterrâneos, e que visava  construir uma identidade nacional imperialista numa época em que a Inglaterra dava seus primeiros passos nos mares que, então, eram de exclusivo uso de portugueses e espanhóis.

Essa pintura depreciativa de ibéricos e colonos do Brasil certamente pesou para que esses documentos não fossem publicados pelo IHGB e pela Academia de Ciências de Lisboa, quando se criou uma espécie de cânone de livros e documentos sobre a história do Brasil. 

 

Outro motivo é que a maior parte dos relatos ingleses sobre o Brasil no período estudado não são obras autônomas, não são livros exclusivamente dedicados ao Brasil, como os escritos pelos integrantes da França Antártica ou pelos holandeses em Pernambuco, mas trechos de livros sobre viagens mais amplas, englobando outras regiões da América do Sul, ou, ainda, são pequenos relatos, notícias, diários de bordo, depoimentos, a maioria deles publicada em duas grandes coletâneas inglesas de viagem impressas em Londres em 1589-1600 e 1625, que, juntas, totalizam umas seis mil páginas.

Os relatos, por assim dizer, ficaram perdidos entre essas milhares de páginas e nunca foram reunidos em um só conjunto, como fizemos agora com Ingleses no Brasil – Relatos de viagem. Era um material de difícil acesso. Para se ter uma ideia, somente dois dos 12 relatos do livro já tinham sido traduzidos para o português.

 

Quem eram os ingleses que vieram para cá? Sofreram represálias dos portugueses ou a Coroa portuguesa sabia?

 

Sheila – No início do século 16, temos a viagem de um navegador inglês que, assim como os franceses da Normandia, queria comerciar pau-brasil com os indígenas, antes da instituição das capitanias hereditárias. Esse senhor, William Hawkins, veio a ser o patriarca de uma família de navegadores ligados à Coroa inglesa. Temos também navios de mercadores anônimos que vieram tentar a sorte no litoral da colônia portuguesa, que era uma região desconhecida para os ingleses. 

 

Numa segunda fase, quando parte do litoral brasileiro já era povoado e a navegação de estrangeiros era proibida, acontece uma viagem muito interessante, do navio Minion of London, armada por importantes mercadores de Londres. Apesar da proibição oficial, o navio é recebido pelas principais autoridades coloniais e faz seus negócios à vontade. O responsável pela vinda do navio foi um inglês radicado em Santos (no atual estado de São Paulo), John Whithall (chamado de João Leitão, no Brasil), que havia se casado com a filha de um poderoso senhor de engenho.

Essa viagem é especialmente curiosa porque Whithall escreve uma lista de mercadorias necessárias em Santos e nela encontramos coisas como fitas de veludo, sedas, cetim e mesmo cordas de viola. Isso em 1580. O embaixador espanhol em Londres (na época o Brasil tinha acabado de ser submetido à Coroa espanhola) sabia de todos os passos do navio, e da boa recepção pelas autoridades coloniais, e escrevia ao rei Felipe II recomendando medidas urgentes para proibir e impedir o comércio ilegal na costa brasileira.

 

Havia vários tipos de homens nos navios que vieram para o Brasil: marinheiros, soldados, mercadores, aventureiros, de diferentes extratos sociais e formações culturais. Um dos relatos que publicamos foi escrito por um cirurgião-barbeiro, uma espécie de médico de bordo. Outro foi redigido por um "cosmógrafo", ou seja, o autor de um livro erudito sobre diferentes regiões da terra. Outro por um homem culto e educado, Richard Hawkins (neto de William).

Outros, ainda, por agentes comerciais ou marinheiros. São relatos muito heterogêneos. Alguns são depoimentos orais transformados em texto, como o do náufrago Peter Carder, que viveu entre os índios e foi empregado de um senhor de engenho na Bahia.

 

Depois de 1581, quando houve a anexação de Portugal pela Espanha de Felipe II, temos duas invasões francamente piráticas da Bahia e de Pernambuco, narradas de forma exuberante por um agente comercial e um mosqueteiro anônimo, em que as batalhas entre os colonos e os ingleses invasores são o foco principal. São relatos que se assemelham a histórias de aventuras.

 

As pesquisadoras Sheila Hue e Vivien Kogut: relatos podem ser lidos também como uma narrativa de aventuras (foto: Divulgação)
As pesquisadoras Sheila Hue e Vivien Kogut: relatos podem ser lidos também como uma narrativa de aventuras (foto: Divulgação)
 

Qual foi a motivação para a pesquisa de vocês? Como foram encontrados esses relatos?

 

Sheila – Pesquisamos os relatos ingleses desde o início deste século e publicamos em 2007, pela editora Zahar, uma edição comentada do livro de memórias de Anthony Knivet. Em uma pesquisa apoiada pela Biblioteca Nacional, fiz um levantamento dos relatos ingleses relativos ao Brasil e a partir daí começamos a trabalhar na seleção, tradução e notas, pensando em publicá-los. Vivien fez uma pesquisa de doutorado no Reino Unido sobre o relato de Knivet, também pouco conhecido na Inglaterra, e preparou uma edição comentada publicada pela editora da Universidade de Cambridge.

Além disso, nós duas publicamos vários artigos sobre esse corpus, o último deles é um capítulo no volume Transnational portuguese studies, que saiu este ano pela editora da Universidade de Liverpool, intitulado Piratas ingleses: primeiras relações anglo-portuguesas no Novo Mundo.

 

Portanto, nosso trabalho conjunto nesta coleção de relatos vem de longe. A editora Chão acolheu o livro com entusiasmo e estamos muito satisfeitas com o resultado. A edição traz também um material iconográfico precioso, composto por mapas da época, folhas de rosto e páginas dos livros originais, que ajuda o leitor a criar um imaginário e a contextualizar as viagens.

 

A maioria dos relatos está nas coletâneas de viagem de Richard Hakluyt (1589-1600) e Samuel Purchas (1625), impressas em Londres. Há também os que integram livros autônomos, como os do navegador Richard Hawkins, que escreveu um livro sobre sua viagem à América do Sul, e pelo cirurgião-barbeiro William Davies, que navegou pelo rio Amazonas.

 

O interessante é que os relatos conjugam experiências vividas com um pouco de ficção, como era costume na época, de forma que para o leitor de hoje parecem mesmo narrativas de aventuras, algumas quase inacreditáveis.

 

Nossa motivação foi tornar acessível ao leitor brasileiro esse conjunto de relatos sobre a formação da colônia, que trazem questões e problemas ainda hoje pertinentes, e oferecem perspectivas pouco conhecidas do Brasil. 

 

Pelos relatos, qual era a descrição do Novo Mundo pelos ingleses? Há descrições detalhadas sobre os indígenas, a flora, a fauna e outros aspectos? Certamente, os ingleses ficaram deslumbrados com a natureza tropical...

 

Sheila – Os relatos ingleses são mais diretos e objetivos, diferentes dos franceses, dos portugueses e da narrativa de Hans Staden (viajante alemão,1525-1576). Observamos, quase sempre, que o foco principal era o comércio e, em alguns períodos, o saque. Em meio a descrições de rotas comerciais, oportunidades de negócios, abordagem e saque de navios portugueses e espanhóis, e interações com colonos e indígenas, eles acabam revelando pormenores sobre a vida colonial, algumas vezes bem prosaicos, que não surgem nas narrativas mais elaboradas de franceses e portugueses.

Como, por exemplo, as viagens de um médico inglês que ia atender pacientes em várias capitanias, os hábitos das senhoras de Santos, as relações comerciais entre o governador da capitania do Rio de Janeiro e um poderoso bispo radicado na atual Argentina, as práticas de boas- vindas dos habitantes da colônia, etc.

 

Há um relato em especial que faz uma deslumbrante descrição da natureza, resultado de uma viagem feita em 1526. Roger Barlow entregou o manuscrito de sua obra ao rei em 1540. Portanto, é uma obra anterior à de Hans Staden. Trata-se de uma narrativa encantadora justamente por ter um frescor e um maravilhamento que parecem realmente genuínos.

 

As viagens se limitaram ao litoral? Onde exatamente?

 

Vivien – Os relatos dão conta de viagens que passam por diferentes capitanias, desde a Amazônia a outros trechos do litoral Norte do Brasil – como uma região por eles chamada de “Canibales” – , Nordeste (invasões da Bahia e de Pernambuco), Rio de Janeiro, São Paulo, Sul da colônia e mesmo uma viagem que adentra o rio Paraná.

Alguns narram também viagens não marítimas, como o náufrago Peter Carder, que faz uma longa travessia por terra, segundo ele diz saindo do Sul e chegando à Bahia. Acredita-se que haja partes do seu relato que foram omitidas pelo editor inglês, Samuel Purchas, e portanto o seu itinerário pelo interior do Brasil ainda é nebuloso, mas tudo indica que cruzou a área que hoje em dia engloba vários estados brasileiros.

 

O que podemos aprender com os relatos em termos de preservação? Há alguma boa lição?

 

Vivien – Em meio ao acervo relativamente limitado de fontes sobre o Brasil em seu primeiro século como colônia portuguesa, impressiona ver o número de registros e descrições feitos pelos ingleses e que até hoje permaneciam inéditos ou pouco conhecidos. Isso talvez sinalize a importância de nos reconectarmos com essa época mais antiga da história brasileira, revalorizando fontes e ampliando o campo de pesquisa.

 

Os ingleses têm uma longa tradição de registros – como indicamos acima, em geral respondendo a necessidades pragmáticas de comércio e lucro – o que contrasta com a política de sigilo imposta por Portugal. Com isso, ironicamente, muitas das fontes mais antigas que temos sobre o Brasil não vêm de portugueses, mas de outros europeus, cuja perspectiva mais ‘estrangeira’ fica evidente. É o que acontece nesses relatos ingleses.

 

Os ingleses tinham corsários famosos, a exemplo de sir Francis Drake. Dá para saber, pelos relatos, dos reais interesses econômicos desses viajantes?   

 

Vivien – Num primeiro momento, os interesses eram basicamente o comércio com os indígenas do litoral, especialmente de pau-brasil e algodão. Num segundo momento, a proposta era trocar as manufaturas inglesas por açúcar, então uma mercadoria extremamente valorizada, e numa época em que o Brasil era o principal produtor. Num terceiro momento, quando havia uma guerra entre Espanha e Inglaterra, as expedições eram de corso, ou seja, ataques a naus e territórios com o objetivo de saquear bens e carregamentos de açúcar.

 

Um dos autores dos relatos é um náufrago da viagem de Francis Drake, o marinheiro Peter Carder, que, ao voltar para a Inglaterra, narra suas aventuras no Brasil para a rainha Elisabeth I.

 

Vale lembrar que naquela época quaisquer informações sobre navegações no Atlântico eram extremamente valiosas, pois redundavam em vantagens estratégicas, principalmente a partir de meados do século, no contexto da rivalidade entre Inglaterra e os países ibéricos em relação ao chamado Novo Mundo. Portanto, relatos, mapas, registros de viagens tinham quase o mesmo valor de tesouros, e eram roubados, contrabandeados, copiados, destruídos, ocultados. Assim, esses registros ingleses têm uma importância singular e quase subversiva aos interesses de Portugal e Espanha.


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