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Livro de professor da UFMG homenageia um dos maiores escritores brasileiros

Os relatos de convívio, a timidez e a ousadia do autor gaúcho, falecido em 2017, estão na obra Canção de amor para João Gilberto Noll, de Luis Alberto Brandão


postado em 08/11/2019 06:00 / atualizado em 08/11/2019 08:11

Eis um bom motivo para escrever: a discordância com o real. João Gilberto Noll tem trajetória interessante na história da literatura brasileira, tornou-se conhecido no círculo pequeno dos escritores, conseguiu extrapolá-lo para ser conhecido por leitores que admiram a obra a ponto de permitir reedições, em número modesto mas significativo: é lido. Entretanto, será que a obra resistirá ao crivo do tempo é talvez a pergunta que sempre ronda qualquer um que se aventure a escrever num país de não leitores e, portanto, legítima para ser aplicada também à obra de Noll, morto em 2017. Que saia agora um livro-homenagem, pouco depois e no rastro das celebrações que esse país é pródigo em produzir em momentos singulares, nada mais natural.

Nesse sentido, Canção de amor para João Gilberto Noll, assinado principalmente por Luis Alberto Brandão, vem em boa hora. Digo principalmente porque se trata de livro de ensaio, na maior parte, mas também conta com participação de um grande número de textos curtos em homenagem, carregados de lembranças, ou formulados a partir da obra de Noll, de escritores, professores, fãs, editores, gente como Sérgio Sant’Anna, Zulmira Ribeiro Tavares e a brilhante poeta Ana Martins Marques. Nesse sentido, o livro é mais que canção, é verdadeiro canto coral.
O ponto alto, no entanto, é a voz muito singular que o escritor e professor da UFMG conseguiu imprimir ao trabalho editado pela Relicário e com lançamento neste sábado. É um misto de ensaio, memória pessoal, consideração, análise, crítica, interpretação, exposição de afetos, tudo entremeado por seleção de trechos da obra de Noll, no que forma um composto interessante e provocativo, bem ao sabor experimental da prosa do escritor gaúcho, autor de grande número de romances, vencedor de número substancial de prêmios, entre eles por cinco vezes o Jabuti. O curioso, quando se faz um sobrevoo em toda a produção, é pensar que a obra vinha saindo em grande constância, desde que o livro de contos O cego e a dançarina foi publicado, em 1980. Geralmente, dois ou três anos de intervalo, quando muito. Mas o último publicado, Solidão continental, foi em 2012, o que deixou vazio muito grande e atípico até a data da morte, em 2017. Esse hiato, no entanto, não é tratado especificamente em Canção de amor. Apenas aquele da própria escrita de Noll, salpicada de personagens perturbados, errantes, misteriosos, num descompasso que lembra muito o da vida do escritor. “Começo com a impossibilidade de um começo”, anota Brandão na abertura do texto. “Começo tentando preservar a força do silêncio, a ele me manter agarrado, como a um pedaço de madeira no mar alto e revolto e instável e perigoso das palavras.” E está claro para o leitor que não será ensaio convencional, acadêmico, com notas de rodapé no estilo do velho “fedor de escolástica” que abominava James Joyce, mas ensaio criativo, provocante, sedutor, como o personagem criado por Noll para usar em situações públicas, quando se via compelido a elas.

Aliás, essa parece ter sido a dicotomia mais saliente na vida do escritor, um frequentador assíduo de festivais literários, universidades, conferências, ciclos, nos quais fazia leituras muito peculiares e teatrais para em seguida desaparecer por trás do trabalho solitário e sofrido que é produzir ficção. João Gilberto Noll quando está em público tem voz pausada, meditativa, algo de encenação e de improviso, parece estar em andamento. Era uma voz de leitura “esquisita”, como diz o editor Adilson Miguel, que depois emenda: “Não podia imaginar que em pouco tempo eu me tornaria seu editor, e aquele modo de ler deixaria de soar estranho aos meus ouvidos”. Não é o único a estranhar. “Às vezes, a voz era um fio prestes a desaparecer no silêncio”, relata o jornalista e escritor Francisco de Morais Mendes. “Em particular ou em público, sua fala era sempre tecida naquele fio de voz. Pontuada por uma respiração às vezes áspera, represada.” Para Ricardo Aleixo, a voz de Noll estava entre o recitativo à la Ezra Pound, o cantochão e as longas inflexões do teatro japonês (o nô, o kabuki e o bunraku): “É assim que eu ouço as sempre interessantíssimas leituras que João Gilberto Noll fazia de suas histórias”. Leituras que podiam ser qualificadas de inesquecíveis, garante quem o ouviu. A editora, escritora e professora Guiomar de Grammont, que criou e coordena o Fórum das Letras de Ouro Preto desde 2005, lembra que “ele falava muito lentamente, com uma voz lisérgica, como se estivesse em delírio, como se as palavras saíssem enlameadas pela dor que lhes dera origem”.

Mais, no entanto, do que a postura teatral e com um quê de sofrida, Noll conseguia produzir frases lapidares, inclusive uma delas literal: “Se não fosse a literatura, eu seria uma lápide”. Ou: “Sou um animal literário. Escolhi a solidão literária”. Tudo misturado com longos, penosos silêncios. Por ter escrito dissertação a respeito de Noll, a poeta Ana Martins Marques é convidada a relembrar o convívio com a obra, “que segue uma trilha tão inusitada na ficção brasileira, trilha cheia de interseções com a poesia”. A poeta parte de três objetos na obra de Noll, quais sejam, mapas, espelhos, relógios, para refletir a respeito de espaço, identidades e tempo. É, como diz ela, “uma ‘escrita fora de si’, marcada pela dificuldade de dizer ‘eu’, pelas imposturas da memória, pela instabilidade da identidade, desequilibrada e precária como o sujeito que ela coloca em cena”. Não é pouco.


Fórum de Ouro Preto

A cada reencontro no espaço público, João repetia ao interlocutor uma frase mantra, “como é bom estar vivo”, talvez para ressaltar a riqueza do tempo presente, talvez para indicar que, sozinho, no espaço privado do escritor que labuta, o silêncio o impediria da interlocução cheia de sugestões que a frase sugere. É bom estar vivo junto aos outros, como deve ser bom, mas de modo inteiramente diferente, quando se lida com a solidão da escrita. Havia na literatura um componente de impossível e de vergonha, admite João Gilberto Noll, como fez certa vez num congresso acadêmico. Vergonha pela incapacidade de “apontar diretamente as crueldades, vergonha avassaladora por não saber o que desnudar além deste insensato movimento de corpos inutilizados para a fabulação”. Numa mesa do Fórum de Ouro Preto mediada por Brandão, intitulada “Os mistérios não gostam de ser nomeados”, retirada de uma frase do livro Acenos e afagos, Luis Alberto Brandão relata um desencontro entre ele, que mediaria, e Noll, anterior ao evento, por falha de comunicação. Depois, quando os mal-entendidos afinal se esclarecem prestes a iniciar o evento, o bate-papo que se segue se dá em alto nível. Brandão conta: “Muitas pessoas comentaram que, de todas as participações do João em eventos, nunca o tinham visto daquele jeito tão articulado, lúcido e, ao mesmo tempo, à vontade, feliz por estar ali, tocando fundo em pontos essenciais de sua obra”. Parecia um menino barbado, entre amuado e satisfeito, humor que oscila ao sabor das circunstâncias, camisa de botão, óculos, boné de couro escuro. Guiomar de Grammont corrobora: “Ele adorava o Fórum das Letras, vivia me pedindo para ser convidado, e uma vez chegou a ficar chateado comigo porque não pude trazê-lo em um ano consecutivo”.

Para o escritor Sérgio Sant’Anna, “apesar de já falecido, Noll é o autor contemporâneo mais importante do Brasil”. Embora não influenciado diretamente por Clarice Lispector, Sant’Anna encontra uma semelhança entre eles: “Como ela, seus livros sempre propiciavam verdadeiras revelações para os leitores”. O poeta e ensaísta Tarso de Melo lamenta não ter lido os textos, cada um com até 130 palavras, que depois viraram o livro Mínimos, múltiplos, comuns, quando foram inicialmente publicados nas páginas da Folha de S.Paulo, entre agosto de 1998 e dezembro de 2001. Ele se dá conta de ter o desejo impossível e atual “de ter lido esses textos soltos na selva do noticiário”. Porque às vezes os escritores se escondem bem ali, à vista de todos, como fez Noll. Na infância, foi pianista e cantor. Quando chegou a adolescência, veio junto a timidez e embolou o meio de campo. Essa timidez que ele enganava com um personagem criado para uso sobre o palco, a fazer leituras da própria obra com voz toda peculiar.

No conjunto do livro, projetos de filmes que adaptam a obra de Noll para o cinema e a discussão interminável a respeito da impossibilidade da transposição, fotografias inspiradas pela obra, um relato minucioso de encontros do escritor com estudantes a partir de anotações e memória do professor que faz o convite, o making of do livro, tudo forma um quadro do escritor no espaço público. A ausência do outro, o escritor acabrunhado a lidar com ruminâncias, talvez é trabalho para outra vez, o da biografia, que um dia chega. Enquanto isso, a sugestão é ouvir com atenção o silêncio de João Gilberto Noll. Ele um dia disse que literatura vem do drama humano; preferia escrever de ouvido, improvisando; acrescentou ainda que literatura é trauma e choque, ou não é; e deve-se estar disposto a espetar o abcesso aberto, gerar desconforto, falar do mal-estar da existência para se fazer literatura.

“Escrever é uma inflamação”, ele disse. Contra o real, bem entendido.

* Professor de jornalismo na Universidade de Brasília (UnB)

» Canção de amor para 
João Gilberto Noll
*De Luis Alberto Brandão
* Relicário
*264 páginas
*R$ 42 
*Lançamento amanhã (9), 
das 11h às 15h, no Jockey Café –  Rua dos Inconfidentes, 871, Savassi, BH



ENTREVISTA


Luis Alberto Brandão

“Um grande músico
de nossa literatura”
 
Carlos Marcelo

“Noll foi um grande músico de nossa literatura”, diz professor da UFMG


Organizador do livro “Canção de amor para João Gilberto Noll”, Luis Alberto Brandão afirma que escritor gaúcho tinha o domínio absoluto da escrita

O que mais o fascina na obra de João Gilberto Noll?
Em termos gerais, o que mais me fascina é a sensação de atordoamento gerada por seus textos. São experiências de leitura intensas e desconcertantes, sem que, muitas vezes, o leitor consiga detectar com precisão o que é que produz o efeito de intensidade e de desconcerto. Em minha opinião, o efeito se deve à conjugação de três fatores. O primeiro é uma impressionante depuração de linguagem. O domínio da escrita é absoluto. Mas não se trata de um domínio protocolar, convencional. Pelo contrário, a intimidade com as palavras é tão forte que elas ganham uma espécie de elasticidade extra, de dimensão expandida, jamais soando mecânicas ou triviais.
O segundo fator é que os universos ficcionais criados por essa linguagem pulsante não se deixam enquadrar em limites. Mesmo as categorias consideradas elementares, como espaço, identidade, tempo, corpo, podem ser – e frequentemente são – subvertidas.
Mas a criação de um universo aberto à desmesura, capaz de ultrapassar limites, jamais se dissocia inteiramente de um campo de referências compartilhado com o leitor – eis o terceiro fator. A literatura de Noll é sempre muito legível, jamais é hermética.
A radicalidade se dá não pela ruptura ou pelo confronto direto com o leitor, mas por uma espécie de aliciamento em que ele é pacientemente conduzido por vias que vão se revelando cada vez menos familiares, cada vez mais estranhas (e fascinantes), no limite do insondável.

Quais livros indicaria para quem deseja iniciar a leitura do escritor? E qual o seu favorito?
Se a intenção é evitar no leitor iniciante o risco de um espanto tão violento que o afaste da leitura, os volumes de contos são uma boa dica, especialmente o primeiro livro de Noll, O cego e a dançarina, um clássico da literatura brasileira. Como os textos são bastante curtos, e bem diferentes entre si, o leitor pode ir se concedendo pausas para que os impactos intelectuais e sensoriais sejam assimilados, pelo menos em parte.
Outra boa dica é a trilogia de livros lançados sob a chancela de “juvenis”, sobretudo Anjo das ondas. Esse livro, que narra a trajetória de um protagonista adolescente no limiar da vida adulta, é especialmente cativante, sem abrir mão da complexidade das outras obras do Noll; na verdade, descobrindo complexidades específicas nessa experiência de iniciação. Se possuo um ou outro livro favorito, não estou certo se a eleição se deve às especificidades de determinado título ou se à minha história pessoal com ele.
Assim, considero Acenos e afagos um marco porque, diferentemente de uma verve mais rarefeita de outros romances (como Rastros do verão), investe numa densificação narrativa extrema (e, nesse sentido, é uma releitura ainda mais radical do primeiro romance do Noll, A fúria do corpo). Mas talvez essa minha predileção tenha mais a ver com o fato de que Acenos e afagos foi o principal foco da conversa pública que tive com Noll em 2008, no Fórum das Letras de Ouro Preto, conversa que me motivou a escrever e publicar um longo ensaio a respeito em meu livro Teorias do espaço literário. Também tendo a citar Mínimos, múltiplos, comuns, por seu caráter monumental, pela razão de que o livro cria uma cosmogonia inteira, vigorosa, ao mesmo tempo lúcida e alucinada. Mas talvez meu chamego especial com esse livro exista porque o Noll me convidou para escrever a orelha da segunda edição. Por outro lado, como deixar de citar Bandoleiros,A céu aberto, Lorde, Solidão continental? Na verdade, todos os livros do Noll são, sem exceção, poderosos.

Como a vida e a obra de Noll se entrelaçavam nas aparições públicas do escritor?
Noll criou uma persona pública intimamente vinculada ao universo ficcional de sua obra. É como se ele fosse um de seus personagens, o que significa que ele assumia uma postura enigmática, quase impalpável, quase evanescente, embora sempre muito cordial, tocante, profundamente carismática. É como se ele assumisse uma fragilidade limítrofe, a qual, paradoxalmente, é convertida em vigor – é exatamente o que se passa com seus personagens. É como se ele fosse um ponto de interrogação vibrando diante do público.

Como definiu as participações especiais no seu livro? 
Originalmente, o projeto era individual, uma “canção solo” minha para homenagear o Noll em um evento ocorrido em 2017, ano em que ele faleceu. Mas como tal apresentação, que incluía alguns elementos performáticos, foi acompanhada, antes e depois, de postagens em redes sociais da internet, recebi várias manifestações de pessoas que amavam a obra do Noll e queriam expressar o quanto essa obra havia sido importante para a vida delas. Percebi, então, que o projeto tinha uma clara vocação coletiva, que ele precisava se expandir.
Os convites aconteceram em função desse grau de afinidade que algumas pessoas demonstraram com a proposta. As participações especiais são, basicamente, de três tipos. Há os depoimentos, de pessoas que conviveram de perto com o Noll (editores, amigos) ou com sua obra (pesquisadores, leitores entusiastas). Há também criações livres (experimentos visuais e escriturais feitos por gente de diversas áreas e artes) inspiradas na obra e na figura pública do Noll, dialogando com elas, buscando incorporar algo de sua radicalidade e de seu poder de atordoamento.
Finalmente, há dois valiosos presentes: duas extensas e ricas entrevistas inéditas com o Noll, que chegaram às minhas mãos por causa do interesse despertado pelo projeto e da generosidade dos entrevistadores.

A prosa de Noll é música?
Toda prosa é musical, no sentido de que todo texto composto de palavras possui ritmo e melodia, especificidades timbrísticas e harmônicas. É claro que boa parte do que se produz em prosa não se dedica a tirar partido desse elemento constitutivo da linguagem verbal. Textos não literários procuram, inclusive, esconder ou negar tal elemento. Mesmo em certo tipo de prosa literária, que prioriza os universos ficcionais suscitados pelo texto, costuma ser dominante o ideal de uma linguagem que atue como mero veículo de cenas e ideias. A prosa de Noll vai na direção oposta: assume explicitamente a paixão pela espessura (e rarefação) da linguagem, pela força sensorial, pulsional das palavras. Assume, pois, a vocação poética da prosa. Não se trata, é claro, de abdicar da complexidade do que ocorre no plano na fabulação. Pelo contrário, trata-se de ampliar tal complexidade por meio dos muitos efeitos de vibração sensível que as palavras disponibilizam. Noll é, pois, sim, músico. Um grande músico de nossa literatura. Certamente, um dos nossos mais vigorosos, ousados e brilhantes músicos.


TRECHO
“Ainda assim – eu (aquela que eu era então, quase uma outra, quase eu...) dizia na dissertação –, ainda que consciente do desencaixe intransponível entre o mundo e sua representação, ainda que se saiba cena, essa escrita insiste em textualizar o corpo, em simular a presença do corpo no texto. A estratégia de aproximação do tempo do enunciado e do tempo da enunciação efetuada em muitos textos de Noll acentua o efeito de apagamento da distância (inevitável) entre vivido e narrado, entre o corpo e sua escrita – simulação de uma escrita “em tempo real”, em que o presente dos corpos se diz a cada momento. A ficção de Noll aponta para esse desejo do corpo exposto e concreto, desejo de um desejo realizado que (para parafrasear uns versos do poeta René Char) no entanto permanece desejo: ‘eu quero um carnaval de verdade’, lê-se em A fúria do corpo. Desejo do qual podemos aproximar também a ideia de uma linguagem não simbólica, não convencional, linguagem de gestos, de palavras sem semântica, só de afetos, intensidades, apelos, que aparece em alguns textos de Noll. Linguagem que não é veículo de saber ou poder, mas canto, entoação, e que se anuncia sempre como se pela ‘primeira vez’, expressão que – e não será por acaso – encerra A fúria do corpo.”
Ana Martins Marques


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