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Estado de Minas

Romance sobre ódio aos livros, 'Fahrenheit 451' ganha nova edição em momento oportuno

Obra se passa numa época em que os livros são queimados pelos bombeiros. Escrito em 1953, romance se mantém pertinente nos dias atuais, marcados pela massificação cultural crescente e preconceito ao conhecimento


postado em 06/09/2019 04:00 / atualizado em 06/09/2019 09:04

(foto: Pixabay)
(foto: Pixabay)

“Não coloque as pessoas em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas expe- riências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de TV e montá-lo novamente, e a maioria consegue, está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que não será medido e comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. (…) Nós resistiremos à pequena maré daqueles que querem deixar todo o mundo infeliz com teorias e pensamentos contraditórios. Não deixe a torrente de filosofia melancólica e desanimadora engolfar nosso mundo. Dependemos de você. Pelo menos uma vez na carreira, todo bombeiro sente uma coceira. 'O que será que os livros dizem?', ele se pergunta. Pode acreditar, os livros não dizem nada. Nada que se possa ensinar ou em que se possa acreditar. Quando é ficção, é sobre pessoas inexistentes, invenções da imaginação. Caso contrário, é pior: um professor chamando outro de idiota, um filósofo gritando mais alto do que seu adversário. Todos eles correndo, apagando as estrelas e extinguindo o Sol. Você fica perdido. (…) Você pergunta o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz.”

Essa declaração de ódio aos livros foi  foi escrita há quase sete décadas, em 1953, pelo norte-americano Ray Bradbury (1920-2012), para o seu livro mais importante, Fahrenheit 451. Descreve uma advertência e uma recomendação de Beatty, o chefe dos bombeiros e inquisidor, a Guy Montag, seu bombeiro subordinado, numa época atemporal em que os livros são proibidos e queimados porque tornam as pessoas “infelizes”. Pois agora, curiosamente, o Ministério da Educação brasileiro cogita tirar recursos de filosofia e sociologia nas escolas e destiná-los para veterinária, engenharia e medicina, com o argumento de que é preciso “respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando os jovens a fazer contas e um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família”. Em outras palavras, não é preciso refletir sobre o mercado, pensar filosoficamente, é preciso apenas ler manuais e operar aparelhos para garantir o sustento e a satisfação imediata, como se não fosse possível trabalhar e pensar no dia a dia.

"Deve haver alguma coisa nos livros"

Fahrenheit 451 apresenta uma narrativa linear e simples, mas provoca grandes reflexões. Conta a história de Guy Montag, bombeiro que tem como missão apreender e queimar livros, porque não precisa mais apagar incêndios em casas à prova de fogo. Fahrenheit 451 é a temperatura da incineração. Mas, depois de 10 anos, ao testemunhar a morte de uma mulher que é incinerada com seus livros por se recusar a abandoná-los, Montag começa a questionar: “Deve haver alguma coisa nos livros, coisas que não podemos imaginar, para levar uma mulher a ficar numa casa em chamas; tem que haver alguma coisa. Ninguém se mata assim a troco de nada”. Seu pensamento crítico, entretanto, tem graves consequências e o torna vítima do sistema. Sua própria casa vira alvo e ele terá de ser reeducado ou ser preso.

Embora seja tratada como ficção científica, a obra de Bradbury não deve ser vista como tal, é realista e inquietante e muito diferente de outros livros seus – o fascinante O homem ilustrado e os fantasiosos Os frutos dourados do sol e Crônicas marcianas. Mesmo muito distante de prever o surgimento da internet, do e-book e das controvertidas redes sociais, Bradbury criou uma obra visionária com o intuito de criticar a massificação causada pela incipiente TV, então nos anos 1950, e o efeito manada ou o “destino bovino” da humanidade. O que diria hoje Bradbury, que faria 100 anos em 2020? A diversão da “manada” agora são milhares de curtidas e compartilhamentos, a maioria estéreis, nas redes sociais.

Afinal, não é preciso mais pensar, só exercer atividade autômatas, apenas curtir e compartilhar. Pensar pra quê? Para criar dúvidas? Para sofrer? Já disse Fernando Pessoa em seu tocante e extenso poema O guardador de rebanhos: “Pensar incomoda como andar à chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais”...

A obra de Bradbury é mais atual do que a de seus contemporâneos George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável mundo novo), que criaram duas distopias influenciadas pelo totalitarismo de Hitler e de Stálin. No caso de Fahrenheit, a ditadura é mais sutil, porque a própria sociedade se patrulha, inclusive pela intolerância mútua e pelo denuncismo, não precisa mais ser mandada. É vítima (in)consciente não apenas de um regime totalitário, mas também da massificação cultural, temas hoje usuais vislumbrados pelos papas da comunicação acadêmica, como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Marshall McLuhan e tantos outros da Escola de Frankfurt. É a “sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum”, como diz Manuel da Costa Pinto na introdução do livro.

Em Bradbury, o big brother de Orwell é a TV, não como espiã, mas como pacificadora alienante. “Os bombeiros são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão”. As pessoas dependem da televisão para “passar o tempo”. A TV, entretanto, por mais que tenha “alienado” e “pacificado” a sociedade nas últimas sete décadas, tem um lado só, torna o cidadão um sujeito passivo. Mas em tempos de internet e redes sociais, todos estão num campo de batalha virtual controlado por artifícios tecnológicos e ninguém é mais passivo. E ainda reina a intolerância no meio da manada. Mas a intolerância é  entre os internautas, nunca contra o sistema. “A sociedade do espetáculo é uma espécie de servidão voluntária”, diz um personagem do livro. 

"Precisamos de conhecimento"

No mundo imaginário de Bradbury, o (des)controle começa com o crescimento da população e o avanço da tecnologia. O bombeiro chefe rememora: “Veio a fotografia, veio o cinema no início do século 20. O rádio, a televisão, as coisas começaram a possuir massa. E porque tinham massa ficaram mais simples. Antigamente, os livros atraíam algumas pessoas, aqui, ali, por toda parte. Elas podiam se dar ao luxo de ser diferentes. O mundo era espaçoso. Entretanto, o mundo se encheu de olhos, cotovelos e bocas. A população duplicou, triplicou, quadruplicou O cinema e o rádio, as revistas e os livros, tudo isso foi nivelado por baixo”. Então, “a escolaridade foi abreviada, as filosofias, as histórias e as línguas foram abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas”. A vida é imediata, o emprego é que o conta, o prazer está por toda parte, depois do trabalho. “Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”

Livros fazem as pessoas pensarem, ser infelizes, então vamos queimá-los, alerta o chefe. “Eu sempre disse: poesia e lágrimas, poesia e suicídio e choro e sensações ruins, poesia e doença: é tudo uma besteira sentimental”, complementa a senhora Bowles, personagem “bovina” do livro. O contraponto vem com Faber, mestre de Montag: “Precisamos de conhecimento. Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos. Os livros são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada”. O chefe contra-ataca: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha”.

Mas, queimados os livros, qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios homens para apagar de vez a memória dos livros? Bradbury acena com esperança. Que tal cada pessoa decorar um livro, se tornar um homem-livro, uma mulher-livro. “Eu sou A república, de Platão. Esse sujeito aqui é Charles Darwin e este aqui é Schopenhauer. Somos também Mateus, Marcos, Lucas e João”, diz um homem-livro a Montag. Será essa a solução para sobreviver? Então,para destruir o conhecimento, será preciso destruir o ser humano. 

Adaptação e Truffaut

Entre games e duas adaptações para o cinema, a melhor versão de Fahrenheit 451 é a de 1966, de François Truffaut (1932-1984), o único filme que ele fez em língua inglesa e seu primeiro em cores. É bem fiel à obra de Ray Bradbury, com Oscar Werner como Montag e Julie Christie no elenco, inclusive com personagens até mais bem-elaborados do que no livro. Um dos mestres da Nouvelle Vague e diretor de obras-primas como A noite americana (1973) e Os incompreendidos (1959), Truffaut fez um filme menor, segundo críticos, mas isso parece preconceito com a ficção científica. O filme explora bem a mensagem do livro e cumpre a missão mais importante da obra: faz o espectador  refletir sobre o mundo em que vive, exercer o livre-arbítrio. Em 2018, o diretor americano Ramin Bahrani lançou péssima versão de Fahrenheit ao transformar o drama filosófico em filme de ação que simplesmente “queima” a obra de Bradbury.


FAHRENHEIT 451
De Ray Bradbury
Biblioteca Azul
215 páginas
R$ 39,90


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