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Estado de Minas PENSAR

Em 'Planícies', Federico Falco faz do pampa o protagonista

Escritor argentino detalha a onipresença da paisagem típica do país vizinho no romance, o primeiro a ser editado no Brasil


19/08/2022 04:00 - atualizado 18/08/2022 23:32

ilustração

“Aqui a paisagem domina tudo”, reconhece o narrador de “Planícies”, do argentino Federico Falco. “E nomear a paisagem também dá um certo/falso sentido de propriedade”, complementa, em outra passagem do romance. A paisagem citada pelo escritor é o pampa, que vai da costa de Buenos Aires para o Oeste e para o Norte. “É uma planície grande, atravessada por alguns rios e em geral sem muitas características geográficas: a visão é a mesma por milhas e milhas. Uma paisagem plana, há a possibilidade de caminhar e ver o horizonte ao seu redor completamente, em um círculo perfeito ao seu redor”, detalha o autor, em entrevista ao Estado de Minas

A paisagem é personagem importante, talvez a protagonista, de “Planícies” (Autêntica Contemporânea), o primeiro romance editado no Brasil do escritor, nascido em Córdoba, em 1977. “Tenho de deixar que o campo me preencha e me ensine. Tenho de aprender a olhar e tratar de não me impor”, determina o narrador de “Los llanos”, título original do romance, considerado pelo jornal Clarín “uma história de beleza sutil e poderosa” e vencedor, em 2021, do prêmio Fundacíon Medifé Filba como “o livro do ano”. (Leia, ao lado, a justificativa de uma das juradas, a escritora e roteirista Claudia Piñeyro.) 

Com os meses do ano nomeando cada capítulo, e parágrafos curtos em primeira pessoa, “Planícies” tem a estrutura assemelhada à de um diário. Há reflexões íntimas, muitas desencantadas, de um homem que sai de Buenos Aires e aluga uma casa no campo (com a forma de “um grande silêncio”) para, enquanto revira a terra e prepara uma horta, tentar se recuperar de uma desilusão amorosa. Do calor extremo do verão às ventanias do inverno, de janeiro a setembro, da observação de pássaros à criação de galinhas, do plantio de acelgas e repolhos, a passagem do tempo é marcada pelas descrições de acontecimentos prosaicos e pelas lembranças do que ficou para trás. Há também citações de nomes da literatura (Virginia Woolf, Louise Glück, Sara Gallardo) e da arte (Cy Twombly, Anish Kapoor), bem como algumas comparações, um tanto previsíveis, do fazer literário com atividades manuais que demandam esforço e paciência. “Escrever requer caos, incerteza, ebulição. É algo crescendo como no ápice da acelga: desordenado e para cima. Requer certa coragem e requer força e não saber bem para onde direcioná-la.” E, onipresente, a observação atenta a tudo ao redor que aparece (e se oculta) no pampa, “paisagem pensada como vazio que requer histórias que o preencham.”    

A seguir, a entrevista por e-mail de Falco ao Pensar, com algumas questões formuladas a partir de passagens do livro. 
Federico Falco
O escritor Federico Falco (foto: Divulgação)
 
Poderia apresentar aos leitores brasileiros o ambiente onde se passa “Planícies”? 
Planície argentina ou ‘pampa’ é uma paisagem muito difundida, que vai da costa de Buenos Aires para o Oeste e para o Norte. É uma paisagem altamente produtiva, com muita produção agrícola e, portanto, uma paisagem que estava sofrendo – e ainda sofre – muitas mudanças desde o momento da colônia até agora. 
 
Como surgiu “Planícies”? Por que um romance depois de quatro livros de contos? O que você tinha a dizer em “Planícies” que não se encaixava em uma história?
Por trás deste romance há uma tentativa de se relacionar com a escrita de uma forma diferente e, por sua vez, uma certa obsessão por uma paisagem, a da planície argentina. Eu vim de escrever contos por muitos anos e na história há alguns relógios, concisão, ação e significados reconcentrados. Em algum momento, entrei em crise com esse tipo de escrita e, paralelamente, comecei a tentar escrever de forma mais intuitiva, sem preconceitos, sem estratégias definidas. Pouco a pouco, no material acumulado, surgiram parágrafos que tinham a ver com minhas memórias de infância, reflexões sobre a própria escrita, observações da paisagem e do jardim, fragmentos de algo que eu achava que seria um livro de histórias. Até que entendi que todo esse material formava uma estrutura e era apoiado pelo mesmo arco narrativo: então eu soube que tinha um romance na mão. Em uma história, em geral, toda a ação, mesmo em seu menor elemento, é significativa. Costumo pensar nas histórias da tensão narrativa, dos conflitos dos personagens e, sobretudo, de sua forma, de sua estrutura. Em “Planícies” eu queria fazer outra coisa, mudar e tentar algo novo. O que me interessou foi gerar um arco narrativo sem picos de tensão e que, em sua forma, copiou a paisagem dos pampas argentinos, a linha plana e ininterrupta do horizonte. Eu estava interessado em narrar a planície a partir da linguagem, a partir da estrutura narrativa.

O que mais o atraiu a escrever uma história em um lugar onde “a paisagem domina tudo”?
A paisagem e as influências que uma certa geografia tem sobre as pessoas que a habitam são um assunto que sempre me interessou muito. Como é viver na floresta amazônica? E como é lidar com a vida, dia após dia, na estepe argentina da Patagônia? As vidas são configuradas de forma diferente em cada uma dessas paisagens? Essas questões sempre me chamaram a atenção: como nossa vida muda de acordo com onde vivemos e se há conexão com essa paisagem. Que marcas deixam o fato de viver entre as montanhas áridas? Ou vivendo no delta de um rio? Eu queria explorar um pouco esse confronto na solidão com a paisagem dos pampas e ver o que marca esse horizonte contínuo e perfeito deixado no personagem.
 
Qual é a possível comparação entre semeadura e escrita?
A comparação entre escrever e cultivar um jardim ou pomar tem uma longa tradição literária. Há muitas maneiras de abordar essa comparação. Áreas onde a comparação é mais frutífera e áreas onde parece forçada ou irrealista. O romance explora e desenvolve extensivamente várias dessas comparações e metáforas. Eu, pessoalmente, gosto muito dessa ideia da semente como um núcleo com seu próprio poder, um ser que tem tudo o que é necessário para crescer e conseguir dar folhas, mas que enfrenta o que a boa ou a má sorte coloca na frente dela: secas, pedras, granizo, um terreno mais ou menos fertilizado, formigas, vermes. Muitas vezes, sinto que, quando eu tenho uma ideia para uma história, essa ideia é como uma semente. Eu posso avaliar o potencial e considerar que poderia se tornar uma boa planta, mas então terei de confrontar essa avaliação com minhas próprias inseguranças, minha forma de escrever, o que inclui o meu desânimo se algo não vai rápido ou como eu quero. Acho que boas ideias permanecem subdesenvolvidas porque não sei como cultivá-las.
 
Você acha que o fim de um relacionamento pode ser o começo de um livro?
Sim, é claro. Assim como nunca se sabe onde está o início do próximo livro, acredito que tudo, absolutamente tudo, o que acontece conosco, as coisas mais importantes e as coisas mais inconsequentes, podem ser. Você só tem que parar, olhar, contemplar. Veja o que chama a nossa atenção, o que inflama o desejo, o que nos faz querer colocar em palavras. E de lá solte.
 
“Contar uma história transforma o narrador.” Também é possível transformar aqueles que leram essa história?
Eu não sei. Histórias, em geral, têm um poder transformador: elas nos fazem passar por uma série de emoções, iluminam aspectos de nós mesmos que talvez não saibamos, abrem as portas para um novo mundo, diferente do que habitamos diariamente. Claro, há livros que nos impactam mais e livros que passam por nós quase sem deixar uma marca. Suponho que a diferença entre um e outro está mais no próprio leitor do que qualquer outra coisa. Muitas vezes, a reação à leitura depende de nossa condição. Não é a mesma coisa ler durante as férias, relaxado, do que ler um pouco todas as manhãs, no transporte público, enquanto vamos ao nosso trabalho. Ou ler na sala de espera de um hospital, enquanto esperamos por notícias sobre um ente querido que está na sala de cirurgia. Às vezes, o mesmo livro nos exaspera em um contexto e nos contém e nos excita em outro. Depende de quão abertos e disponíveis estamos ao que o autor propõe. Também depende um pouco da sorte, de encontrar aquele livro que estávamos apenas precisando no lugar certo e na hora certa.
  
Que espaço a literatura ocupa na cultura argentina no momento?
A literatura argentina sempre teve uma grande presença dentro da cultura do país. Existem muitas correntes estéticas e grupos que coexistem e que a tornam uma literatura muito variada e heterogênea. Este é um momento complicado para a publicação, por causa dos preços dos papéis e dos desafios de custo enfrentados pelos editores, mas isso não significa que não haja uma nova geração de jovens escritores escrevendo e começando a publicar. O quadro é muito desafiador, mas também os textos que circulam são muito animadores sobre a qualidade do que está por vir.
 
Do que você mais gosta no trabalho de selecionar autores de todo o mundo para uma editora? Como a atividade influencia sua produção autoral? 
Uma das coisas de que mais gosto em dirigir a coleção de contos do Editorial Chai é que não parece um trabalho: meu papel é ler e estar ciente de novos livros de contos que são publicados em outros idiomas, selecionar autores e livros a serem traduzidos para o espanhol. Suponho que estar exposto a essa quantidade de leituras e autores tão diferentes uns dos outros e originários de países e literaturas, cada um com sua própria tradição e história no gênero, sempre marca e deixa algum tipo de influência. Também é verdade que é um trabalho relativamente recente. Talvez seja preciso um pouco mais de tempo e distância para ver que tipo de influência real ficará comigo.

Histórias, em geral, têm um poder transformador: elas nos fazem passar por uma série de emoções, iluminam aspectos de nós mesmos que talvez não saibamos, abrem as portas para um novo mundo, diferente do que habitamos diariamente

Federico Falco, escritor



Capa do livro %u201CPlanícies%u201D
(foto: Autêntica Contemporânea/Reproduão)

TRECHO

De “Planícies”, de Federico Falco

“Estou acostumado a ser alguém diferente em cada mundo em que me movo: falar com algumas pessoas sobre novilhas e colheitas; com outras, sobre livros e poesia; com outras, ainda, sobre arte contemporânea ou cinema; ou sobre flores, tomates e sementes; ou sobre amores e fofocas, com outros amigos.

Mas, às vezes, muitas vezes, desejo ser sempre o mesmo.

Ser o mesmo no povoado, o mesmo na cidade, o mesmo no campo, o mesmo quando beijo, o mesmo quando sinto saudade, o mesmo plantando na horta, o mesmo quando escrevo.

E às vezes me parece que quando estou mais perto de conseguir isso é quando dirijo sozinho na estrada, a cento e vinte quilômetros por hora, suspenso nesse movimento, entre a cidade e o campo, pairando sobre os campos de cultivo, sobre a soja que o vento move lentamente sob o sol.

Contar uma história transforma quem a conta.

E às vezes a ficção é a única maneira de pensar o verdadeiro.”    

“Planícies”
• Federico Falco
• Tradução de Sérgio Karam
• Autêntica Contemporânea
• 232 páginas
• R$ 57,90


Depoimento/Claudia Piñeyro*

“Um mundo para o qual  se pode ir para se curar”

“‘Planícies’ é um romance de beleza incomum, que a dor do luto amoroso não mancha, mas melhora. E esse amor, que não acaba desaparecendo, leva o tempo necessário para curar feridas; um tempo magistralmente refletido nesta ficção através da evolução da natureza que cerca o protagonista e o jardim que ele cuida. Dessa forma, Federico Falco consegue contar e encontrar respostas para perguntas como: O que aconteceu? Por que aquela relação que parecia indestrutível chegou ao fim? Ele poderia ter feito outra coisa?. ‘Planícies’ é um romance onde o leitor entra e quer ficar, apesar da dor, porque Falco consegue descrever um mundo para o qual se pode ir para se curar.”
*Claudia Piñeyro, escritora e roteirista, integrante do júri da segunda edição do prêmio Fundación Medifé Filba, ao justificar a premiação de “Planícies”, em 2021 

Aprendizado na tradução

Sérgio Karam/ESPECIAL PARA O EM

Traduzir o romance “Planícies” (“Los llanos”, no original, lançado pela Editorial Anagrama), do argentino Federico Falco, foi um prazer e, em alguns momentos, um pequeno suplício – como deve acontecer com as traduções que nos marcam. Eu já tinha lido dois de seus livros de contos, “222 patitos” (2014) e “Un cementerio perfecto” (2016), ambos lançados pela Eterna Cadencia Editora, e estava familiarizado com sua maestria neste gênero, mas o romance me trouxe algo mais, além da extensão, é claro.

Numa linguagem que flerta com a poesia sem chegar nem perto da horrível “prosa poética” que alguns escritores insistem em cometer, “Planícies” é um romance de ritmo lento, que tenta acompanhar o ritmo ditado pela natureza e a sucessão das estações. A passagem do tempo é tematizada constantemente ao longo do livro e o narrador do romance aproxima o tempo da escrita ao tempo necessário para o cultivo de uma horta. Pois foram exatamente os detalhes relativos a esse cultivo que causaram o pequeno suplício a que me referi: acabou sendo uma espécie de curso rápido de horticultura, que me obrigou a buscar os nomes adequados, em português, de vários tipos de tomates, acelgas, couves e beterrabas, entre outros vegetais. Também precisei ir atrás de nomes de pássaros e de árvores. Foi um aprendizado e tanto.

Além desse aspecto técnico, foi muito bom entrar novamente em contato com o ambiente típico das narrativas de Falco, cujas histórias se passam, em geral, nas pequenas cidades do interior da Argentina – na província, no campo, na planície, enfim –, e não, como na obra da maioria de seus contemporâneos, na grande e tentacular cidade de Buenos Aires. Que estas “Planícies”, traduzidas com carinho para o selo Autêntica Contemporânea, sirvam para apresentar ao público leitor brasileiro o trabalho de um dos mais talentosos escritores argentinos de sua geração.


*Sérgio Karam, tradutor e doutor em Estudos de Literatura pela UFRGS




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