Anton Tchékhov (1860-1904) é um dos gigantes da literatura russa, ao lado de Doistoévski, Tólstoi, Pushkin, Gogol e Górki. Sua obra não é tão volumosa como a dos autores de Crime e castigo e Guerra e paz. Pelo contrário, ele se notabilizou por escrever centenas de pequenos contos e peças teatrais memoráveis, como Tio Vânia, A gaivota e O jardim das cerejeiras. Uma obra inusitada e pouca conhecida dele chega ao mercado editorial brasileiro. A ilha de Sacalina, escrito em 1895, revela outra verve do escritor, desta vez para mostrar os horrores da ilha-prisão de Sacalina, no extremo oriente do planeta.
Durante seu tempo na faculdade de medicina, Tchékhov começou a escrever contos humorísticos para jornais e revistas. Era uma forma de ganhar dinheiro para ajudar a família pobre, que morava num porão numa rua cheia de prostíbulos na capital russa. O avô de Tchékhov foi servo e o pai era um pequeno comerciante que fugiu de sua cidade, Taganrog, onde o escritor nasceu, para Moscou, para não ser preso por dívidas.
Em abril de 1890, entretanto, aos 30 anos, o jovem escritor surpreendeu a família e os amigos ao anunciar uma penosa e custosa viagem à ilha distante, no Pacífico, ao Norte do Japão. A viagem impressionava porque seria de 9 mil quilômetros a partir de Moscou, atravessando sete fusos horários – nos padrões de hoje. Foram três meses de viagem pelas vastidões agrestes da Rússia siberiana, um inferno gelado, cercado de água, frio, gelo e muita desumanidade. Tchékhov leu 65 obras sobre Sacalina e comprou muitos mapas. Partiu de Moscou em 19 de abril de 1890 e levou três meses para chegar, depois de viajar de trem, de coche, de balsa e a pé. Foi uma verdadeira aventura de autoprovação. E acabou sendo mais complicada ainda porque Tchékhov já havia sido diagnosticado com tuberculose, que o mataria aos 44 anos.
Como explicar tamanha aventura em condições tão adversas? A ilha de Sacalina era uma das fronteiras orientais da expansão colonial da Império Russo comandado pelo czar Nicolau II. Ali foi implantada uma grande colônia agrícola e penal de deportados de todo o império. França e Rússia também faziam isso, povoavam colônias com condenados a trabalhos forçados. Como médico, Tchékhov queria fazer um recenseamento da população deportada, destacando as condições sanitária, higiênica, nutricionais e médicas. Mas sua boa intenção e atitude científica esmoreceram diante do cenário de abandono que encontrou, principalmente castigos cruéis, prostituição em massa e crime de todo tipo. Nos confins do planeta, de forma ultrajante, viviam os esquecidos e os proscritos do regime czarista.
Com o aval do regime russo, Tchékhov teve permissão para vasculhar as pequenas cidades isoladas e seus alojamentos de deportados. Depois que cumpriam suas penas, os deportados viravam colonos, recebiam indultos do czar e pequenas propriedades, mas não podiam voltar para sua terra natal. Muitos eram acompanhados de mulheres e filhos, mas essa ‘bondade’ do regime não representava necessariamente melhoria da qualidade de vida dos deportados.
O maior problema é que a maioria da população na região não conseguia sobreviver sem ajuda do governo. “Ali, como na Rússia, em situações semelhantes, se revela a lamentável ignorância dos mujiques (camponeses): não pediam escolas, tribunais, salários, mas várias bobagens: um queria um subsídio do governo, outra queria adotar uma criança. (…) Quando a pobreza era clamorosa, para ir de um povoado a outro havia uma trilha aberta no mato pelos passos das mulheres livres e forçadas que caminhavam para as prisões próximas para vender-se aos presos em troca de umas poucas moedinhas de bronze”, relata Tchékhov em uma de suas andanças pela ilha.
O livro foi escrito entre 1891 e 1894. A grande repercussão da obra foi uma das razões que levaram ao fim do regime prisional absurdo após o lançamento do livro. Embora não seja uma leitura fluente do início ao fim, por causa do detalhamento excessivo de ambientes, a obra é um livro-reportagem que está entre os relatos mais impressionantes da literatura.
A ILHA DE SACALINA
Anton Tchékhov
461 páginas
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora Todavia
R$ 51,90
R$ 51,03
TRECHO DO LIVRO
“Pelo que contam os prisioneiros, esse velho matou sessenta pessoas ao longo da vida; parece que seu método era o seguinte: observava os prisioneiros novatos, descobria quais deles eram um pouco mais ricos e os persuadia a fugir junto com ele; depois, na taiga, matava e roubava o parceiro e, a fim de ocultar os vestígios do crime, retalhava o cadáver em pedaços e jogava no rio. Na última vez que o pegaram, brandiu um porrete contra os guardas. Ao observar seus olhos atormentados e metálicos e seu crânio grande, raspado pela metade e anguloso como uma pedra de calçamento, me senti disposto a acreditar em todas aquelas histórias. (…) Sobre a cama está sentada a Meretriz da Babilônia, a própria dona da casa. Lukéria Nepomiáchaia, descabelada, muito magra, sardenta; ela se esforça para responder às minhas perguntas. Seus olhos são feios, turvos e, pelo rosto chupado, apático, posso avaliar quantas prisões, doenças e locais de repouso nos transportes de presos que ela havia suportado em sua existência tão curta. Essa Lukéria é quem dá o tom de vida geral da isbá (casa de madeira), mas é graças a ela que todo o ambiente inspira a sensação de uma vadiagem desenfreada e vertiginosa”.
Mestre em quadrinhos
Tchékhov e sua genialidade para contar histórias de pessoas e suas idiosssincrasias, explorar temas comuns, o cotidiano de mesquinharia da condição humana, também chegou aos quadrinhos. Os contos Aniuta, O investigador, A revelação, O infrator e a aposta estão em Contos de Tchékhov, da editora Escala Educacional, produzidos pelo adaptador e roteirista Ronaldo Antonelli e pelo ilustrador, roteirista e quadrinista Vilachã. No conto A aposta (ao lado), durante discussão sobre pena de morte e prisão perpétua, um advogado desafia um banqueiro a dar sua fortuna a ele se aguentar nada menos do que 15 anos na prisão. O banqueiro aceita, e o desfecho
é surpreendente.
A PALERMA
Anton Tchekhov é um dos maiores contistas da literatura universal. Desde jovem, ainda estudante de medicina, começou a escrever pequenos contos de humor para jornais. Publicou centenas e, com tanto talento, ganhou notoriedade. A seguir, um desses pequenos contos bem ao seu estilo, chamado A palerma. Escrito em 19 de fevereiro de 1893, guardadas as circunstâncias, continua atualíssimo ao falar do caráter humano. O conto integra a obra A corista & outras histórias, lançada pela L&PM, com tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira e Tatiana Belinky.
“Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Júlia Vassílievna, ao meu gabinete. Precisávamos acertar as contas.
– Sente-se, Júlia Vassílievna! – eu disse. – Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
– Quarenta...
– Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
– Dois meses e cinco dias...
– Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...
Júlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...
– Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete – dezenove. Subtraindo restam... hum... 41 rublos. Certo?
O olho esquerdo de Júlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d’água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas – nem uma palavra?
– Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança da família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
– Eu não peguei!, sussurrou Júlia Vassílievna.
– Mas eu tenho aqui anotado!
– Então, está bem... Que seja.
– De 41 vamos subtrair 27 – restam catorze.
Os dois olhos de Júlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
– Eu só peguei uma vez, disse ela com voz trêmula. - Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
– É mesmo? Ora, isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
– Merci, sussurrou ela.
Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.
– Merci por quê?, perguntei.
– Pelo dinheiro...
– Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
– Nos outros lugares eles não pagavam nada...
– Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?
Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: “É possível!”.
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: “Como é fácil ser poderoso neste mundo!”.
Durante seu tempo na faculdade de medicina, Tchékhov começou a escrever contos humorísticos para jornais e revistas. Era uma forma de ganhar dinheiro para ajudar a família pobre, que morava num porão numa rua cheia de prostíbulos na capital russa. O avô de Tchékhov foi servo e o pai era um pequeno comerciante que fugiu de sua cidade, Taganrog, onde o escritor nasceu, para Moscou, para não ser preso por dívidas.
Em abril de 1890, entretanto, aos 30 anos, o jovem escritor surpreendeu a família e os amigos ao anunciar uma penosa e custosa viagem à ilha distante, no Pacífico, ao Norte do Japão. A viagem impressionava porque seria de 9 mil quilômetros a partir de Moscou, atravessando sete fusos horários – nos padrões de hoje. Foram três meses de viagem pelas vastidões agrestes da Rússia siberiana, um inferno gelado, cercado de água, frio, gelo e muita desumanidade. Tchékhov leu 65 obras sobre Sacalina e comprou muitos mapas. Partiu de Moscou em 19 de abril de 1890 e levou três meses para chegar, depois de viajar de trem, de coche, de balsa e a pé. Foi uma verdadeira aventura de autoprovação. E acabou sendo mais complicada ainda porque Tchékhov já havia sido diagnosticado com tuberculose, que o mataria aos 44 anos.
Como explicar tamanha aventura em condições tão adversas? A ilha de Sacalina era uma das fronteiras orientais da expansão colonial da Império Russo comandado pelo czar Nicolau II. Ali foi implantada uma grande colônia agrícola e penal de deportados de todo o império. França e Rússia também faziam isso, povoavam colônias com condenados a trabalhos forçados. Como médico, Tchékhov queria fazer um recenseamento da população deportada, destacando as condições sanitária, higiênica, nutricionais e médicas. Mas sua boa intenção e atitude científica esmoreceram diante do cenário de abandono que encontrou, principalmente castigos cruéis, prostituição em massa e crime de todo tipo. Nos confins do planeta, de forma ultrajante, viviam os esquecidos e os proscritos do regime czarista.
Com o aval do regime russo, Tchékhov teve permissão para vasculhar as pequenas cidades isoladas e seus alojamentos de deportados. Depois que cumpriam suas penas, os deportados viravam colonos, recebiam indultos do czar e pequenas propriedades, mas não podiam voltar para sua terra natal. Muitos eram acompanhados de mulheres e filhos, mas essa ‘bondade’ do regime não representava necessariamente melhoria da qualidade de vida dos deportados.
O maior problema é que a maioria da população na região não conseguia sobreviver sem ajuda do governo. “Ali, como na Rússia, em situações semelhantes, se revela a lamentável ignorância dos mujiques (camponeses): não pediam escolas, tribunais, salários, mas várias bobagens: um queria um subsídio do governo, outra queria adotar uma criança. (…) Quando a pobreza era clamorosa, para ir de um povoado a outro havia uma trilha aberta no mato pelos passos das mulheres livres e forçadas que caminhavam para as prisões próximas para vender-se aos presos em troca de umas poucas moedinhas de bronze”, relata Tchékhov em uma de suas andanças pela ilha.
O livro foi escrito entre 1891 e 1894. A grande repercussão da obra foi uma das razões que levaram ao fim do regime prisional absurdo após o lançamento do livro. Embora não seja uma leitura fluente do início ao fim, por causa do detalhamento excessivo de ambientes, a obra é um livro-reportagem que está entre os relatos mais impressionantes da literatura.
A ILHA DE SACALINA
Anton Tchékhov
461 páginas
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora Todavia
R$ 51,90
R$ 51,03
TRECHO DO LIVRO
“Pelo que contam os prisioneiros, esse velho matou sessenta pessoas ao longo da vida; parece que seu método era o seguinte: observava os prisioneiros novatos, descobria quais deles eram um pouco mais ricos e os persuadia a fugir junto com ele; depois, na taiga, matava e roubava o parceiro e, a fim de ocultar os vestígios do crime, retalhava o cadáver em pedaços e jogava no rio. Na última vez que o pegaram, brandiu um porrete contra os guardas. Ao observar seus olhos atormentados e metálicos e seu crânio grande, raspado pela metade e anguloso como uma pedra de calçamento, me senti disposto a acreditar em todas aquelas histórias. (…) Sobre a cama está sentada a Meretriz da Babilônia, a própria dona da casa. Lukéria Nepomiáchaia, descabelada, muito magra, sardenta; ela se esforça para responder às minhas perguntas. Seus olhos são feios, turvos e, pelo rosto chupado, apático, posso avaliar quantas prisões, doenças e locais de repouso nos transportes de presos que ela havia suportado em sua existência tão curta. Essa Lukéria é quem dá o tom de vida geral da isbá (casa de madeira), mas é graças a ela que todo o ambiente inspira a sensação de uma vadiagem desenfreada e vertiginosa”.
Mestre em quadrinhos
Tchékhov e sua genialidade para contar histórias de pessoas e suas idiosssincrasias, explorar temas comuns, o cotidiano de mesquinharia da condição humana, também chegou aos quadrinhos. Os contos Aniuta, O investigador, A revelação, O infrator e a aposta estão em Contos de Tchékhov, da editora Escala Educacional, produzidos pelo adaptador e roteirista Ronaldo Antonelli e pelo ilustrador, roteirista e quadrinista Vilachã. No conto A aposta (ao lado), durante discussão sobre pena de morte e prisão perpétua, um advogado desafia um banqueiro a dar sua fortuna a ele se aguentar nada menos do que 15 anos na prisão. O banqueiro aceita, e o desfecho
é surpreendente.
A PALERMA
Anton Tchekhov é um dos maiores contistas da literatura universal. Desde jovem, ainda estudante de medicina, começou a escrever pequenos contos de humor para jornais. Publicou centenas e, com tanto talento, ganhou notoriedade. A seguir, um desses pequenos contos bem ao seu estilo, chamado A palerma. Escrito em 19 de fevereiro de 1893, guardadas as circunstâncias, continua atualíssimo ao falar do caráter humano. O conto integra a obra A corista & outras histórias, lançada pela L&PM, com tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira e Tatiana Belinky.
“Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Júlia Vassílievna, ao meu gabinete. Precisávamos acertar as contas.
– Sente-se, Júlia Vassílievna! – eu disse. – Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
– Quarenta...
– Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
– Dois meses e cinco dias...
– Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...
Júlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...
– Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete – dezenove. Subtraindo restam... hum... 41 rublos. Certo?
O olho esquerdo de Júlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d’água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas – nem uma palavra?
– Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança da família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
– Eu não peguei!, sussurrou Júlia Vassílievna.
– Mas eu tenho aqui anotado!
– Então, está bem... Que seja.
– De 41 vamos subtrair 27 – restam catorze.
Os dois olhos de Júlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
– Eu só peguei uma vez, disse ela com voz trêmula. - Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
– É mesmo? Ora, isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
– Merci, sussurrou ela.
Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.
– Merci por quê?, perguntei.
– Pelo dinheiro...
– Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
– Nos outros lugares eles não pagavam nada...
– Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?
Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: “É possível!”.
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: “Como é fácil ser poderoso neste mundo!”.