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Estado de Minas Especial transportes

Um país fora dos trilhos: as consequências do abandono das ferrovias

Há 70 anos, o Brasil começou a moldar seu sistema de transporte em torno das rodovias. As consequências dessa escolha são percebidas hoje


08/08/2021 12:46

(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Com uma área de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, representando o quinto maior país em extensão do planeta, o Brasil tem como desafio criar uma imensa rede de transportes para escoar sua produção, permitir o deslocamento de sua população e girar a economia. A missão se torna ainda mais difícil diante de um ecossistema complexo, formado por diferentes biomas, em que a necessidade de proteção contrasta com o desenvolvimento humano e o avanço da infraestrutura.

Apontadas como meios mais ecológicos e com grande capacidade de escoamento de cargas pelo interior do país, as ferrovias vivem um cenário de abandono. Um terço de toda a malha existente está ociosa, com trilhos enferrujados pela ação do tempo em uma região que investe quase totalmente no transporte rodoviário — que ainda é caro e poluente.

No período colonial, os trens foram usados em larga escala para o transporte de café. No entanto, nas últimas décadas, esse meio de locomoção teve sua participação nos transportes nacionais reduzida. Em 2021, as ferrovias representam apenas 15% dos meios usados em todo o sistema brasileiro, de acordo com dados do Ministério da Infraestrutura.

A malha ferroviária nacional cresceu até 1957 e chegou a sua maior cobertura, atingindo 31 mil quilômetros. A partir daí, houve estagnação, e o país se tornou refém do transporte rodoviário, que também é precário, com apenas 12% das vias pavimentadas, segundo dados da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). A ausência de opções de transporte traz prejuízos para passageiros, para a economia e ao meio ambiente. As hidrovias, outra opção de mobilidade limpa, representam 20% dos meios viários na maior nação da América Latina.

Em 1997 teve início uma série de concessões à iniciativa privada, que permitiu a modernização da malha em diversas regiões, o aumento na quantidade de trens, geração de empregos e elevação do material transportado. No entanto, a ação não resultou na expansão da cobertura, que atualmente está em 30 mil quilômetros, menor do que o registrado há mais de seis décadas. Enquanto o mundo diversificou os sistemas de mobilidade, o Brasil ancorou o projeto de desenvolvimento nos automóveis e veículos de tração motora, movidos a gasolina, álcool e diesel, até quatro vezes mais poluentes que os trens, de acordo com levantamento da Ferrofrente, entidade criada para atuar em prol do impulsionamento do setor.

José Manoel Gonçalves, presidente da Ferrofrente, explica que as mudanças das últimas décadas se resumem à concessão de ferrovias, o que criou um monopólio. Além disso, de acordo com ele, o impacto ambiental é baixo, sendo que o modelo atual não incentiva o transporte de passageiros. “O panorama está péssimo. O que foi feito até agora não pode ser considerado avanço. Não se resolveu o transporte de passageiros no Brasil. Nós, da sociedade civil, estamos preocupados com o Marco Regulatório das Ferrovias e com as autorizações para as hotlines (ferrovias integradas com outros modais). Na hora de fazer as concessões, não se criou a exigência de se passar ferrovias de passageiros. Não podem ser apenas ferrovias de carga. Hoje usam-se ferrovias apenas para exportar soja, milho, açúcar e ferro”, destaca.

Menor impacto

A menor circulação de trens, segundo José Manoel, gera grandes prejuízos ao meio ambiente, com concentração no transporte terrestre mais tradicional, com emissão de gases. “Do ponto de vista ambiental, isso é péssimo. Em um vagão de trem se coloca carga para dois ou três caminhões. Tira-se das estradas uma quantidade muito grande de caminhões com apenas um trem. Se fizer isso de maneira reutilizável, além de reduzir emissões, se reduz consumo dos combustíveis. O Brasil não fez a matriz energética, não fez a matriz dos transportes versus a matriz do meio ambiente”, explica.

Enquanto o Brasil tem apenas 20 mil quilômetros de ferrovias em plena atividade, o exemplo vem da parte norte do continente. Na década de 1980, os Estados Unidos viram o colapso do setor, que era pouco atrativo e estava entrando em estagnação. Para conter o problema, o governo norte-americano desregulou o setor, afrouxou regras e concedeu incentivos para a criação de linhas curtas, inclusive de passageiros. O resultado é que hoje o país tem a mais extensa malha do mundo, com 250 mil quilômetros de ferrovias espalhadas por todos os estados.

Além da economia, que ganhou impulso, tornando-se a maior do mundo, reduziu-se a frota de veículos de pneus, que hoje representam apenas 30% de todo o sistema de transportes. O gestor ambiental Bruno Souza, especialista em geografia e análise ambiental pela Universidade Estadual de Goiás, destaca que o transporte via trem também se modernizou e hoje é ainda mais limpo.

“O custo ambiental da ferrovia é bem inferior ao da rodovia. É bem mais fácil ampliar um corredor ecológico em uma passagem de trens do que nas estradas. Fora que em caso de acidentes, o caminhão, por exemplo, derrama muito mais fluídos na natureza do que uma locomotiva. Atualmente existem trens elétricos, a biodiesel, e mesmo os movidos a vapor são menos poluentes. A malha ferroviária nos EUA melhorou o escoamento, sem dano elevado ao meio ambiente”, ressalta.

Responsabilidade

Mesmo em casos de passagens de trem, as obras devem ser avaliadas minuciosamente e com critérios rígidos para impedir o dano à natureza. O Brasil tem projetos para criar grandes linhas ferroviárias e modernizar e expandir outras já existentes, como a ferrovia Norte e Sul — que, de acordo com o projeto, cortaria as cinco regiões, do Pará até o Rio Grande do Sul, atravessando os polos produtores. Outros projetos são mais sensíveis e ao mesmo tempo ousados, como a Ferrogrão, que ligaria o Mato Grosso ao Pará.

As grandes obras exigem responsabilidade e profunda avaliação de dano ambiental. Cláudio Frischtak, consultor da Inter B, Consultoria de Negócios, destaca que a expansão gera muitos custos e investimentos públicos que podem não retornar como esperado. “Eu, particularmente, sou contra esses grandes projetos. Nós temos que encarar a governança do investimento público. Temos que encarar. Só adicionamos quilometragem ferroviária, em primeiro lugar, pelo setor privado, evitando os mega projetos”.

Frischtak afirma que o projeto da Ferrogrão seria inviável, por cortar a floresta Amazônica e ser feito em paralelo ou substituindo uma rodovia que já existe. “A rodovia já existe e a ferrovia (Ferrogrão), não. A opção é modernizar uma rodovia, a BR 63, que poderia ter construído uma terceira pista, que poderia ter sido acoplada ao conjunto socioambiental de primeira linha, que seria ótimo para o país. Ou não fazer isso, que o governo decidiu não realizar, e criar uma competição de 10 anos, que não teve concorrente, para fazer a Ferrogrão. O desmatamento que a Ferrogrão vai levar é o múltiplo da poluição dos caminhões a diesel. Não tem que ter preferência, mas, sim, calcular a taxa social de retorno, resolver a questão ambiental”, completa.

"Tira-se das estradas uma quantidade muito grande de caminhões com apenas um trem. Se fizer isso de maneira reutilizável, além de reduzir emissões, se reduz consumo dos combustíveis. O Brasil não fez a matriz energética, não fez a matriz dos transportes versus a matriz do meio ambiente"

José Manoel Gonçalves, presidente da Ferrofrente




Na estação do esquecimento

O ferroviário aposentado Davi Fernandes, 52 anos, passava de carro em frente à estação ferroviária Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, no fim da manhã de sexta-feira, quando foi abordado pela reportagem. Filho de ferroviário, irmão de ferroviários e cunhado de ferroviários, o homem fez dos trilhos a própria vida, e se incomoda ao falar dos problemas enfrentados pelo setor no Brasil. Não os nega, mas sente como se traísse ao comentar os defeitos de sua maior paixão, embora seja vizinho do esquecimento, já que mora em uma casa a poucos metros do terminal que só não está abandonado porque virou habitação para… ferroviários.

Ferroviário aposentado Davi Fernandes reclama do baixo investimento no setor e lamenta abandono(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Ferroviário aposentado Davi Fernandes reclama do baixo investimento no setor e lamenta abandono (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Davi veio para Brasília com o pai, que trabalhou na construção dos trilhos que trariam o Trem Bandeirante para a nova capital. “A gente tem isso no sangue. Eu gosto de ferrovias. A gente fica revoltado com o abandono”, confessa. Para o ferroviário aposentado, o baixo investimento no setor em décadas é resultado de interesses políticos e econômicos nas rodovias, tanto para o transporte de carga quanto para o de passageiros. “Você pega o trem Luziânia-Brasília que tanto falaram. Se você implementa, não tem empresa de transporte rodoviário que vá competir. Será mais barato, mais seguro e atende toda a população”, exemplifica.

Também ferroviário aposentado, Sebastião Picolo, 62 anos, mora em um espaço que ocupa cômodos que antes pertenciam a um bar na estação ferroviária. Assim como Fernandes, trabalhou na Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Morava em um alojamento da estatal que “estava caindo aos pedaços” e, posteriormente, foi transferido para a estação desativada. Trabalhou na estatal até 1996, e foi demitido no processo de privatização. Ele recorda que, no início, os moradores da estação dividiam dois banheiros públicos. “Hoje, cada um tem o seu. Cada governo que assume vem aqui, diz que vão nos tirar, que vão construir casas, mas nunca acontece nada”.

As letras de metal com o nome da estação estão caindo, vários bancos de concreto estão quebrados e, a uma centena de metros, parte do telhado de um galpão onde os trens descarregavam os vagões ao chegarem na capital foi arrancada pelo vento. A situação só não é pior do que a da estação de Jardim Ingá (GO), a 42km de Brasília, que, mesmo incendiada, permanece de pé com as janelas dos guichês de venda de bilhetes expondo o interior usado como banheiro por moradores de rua. Pesquisador do doutorado em História da Universidade de Brasília, Guilhermo Vilas Boas estuda a história do esquecimento do Trem Bandeirante.

Questão cultural

O estudioso destaca que o esquecimento da linha pode ser relacionado ao abandono de toda a malha férrea brasileira, graças à fixação política e econômica por rodovias, que teve início no país durante o governo Juscelino Kubitschek. “Brasília é projetada e inaugurada pelo governo JK, que promove uma modernização alinhada ao automóvel e transporte rodoviário em geral. Com o advento do governo militar, a situação não mudou. Falando em conjuntura nacional, as ferrovias brasileiras estavam em período de decadência, com desinvestimento federal, estadual, municipal”, explica Vilas Boas.

Ele destaca que o abandono das ferrovias virou uma questão cultural. “Essas estações são elementos que reforçam que houve esse esquecimento. Não só esquecimento, mas silenciamento. O esquecimento é da esfera pública e privada. E o silenciamento, de tempos em tempos agentes do governo aparecem na estação Bernardo Sayão, falam que vão retirar essas pessoas e nada ocorre. Isso denota uma escolha. As coisas seguem como estão. E o silenciamento está ligado a essa escolha. E aí você silencia também a memória dessas pessoas”, alerta o pesquisador.

Modernização na letra da lei

O desafio de modernizar o sistema ferroviário brasileiro passa, também, pela modernização da legislação e regulação do setor. É o que explica o diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes. Para ele, as normas atuais são antiquadas, em especial por conta das metas de produção que são exigidas das concessionárias. Da forma como é hoje, os operadores devem atingir um determinado nível de desempenho em locais onde não há muita demanda para o transporte de cargas, ou então, precisam carregar produtos que não são rentáveis para uma ferrovia, seja pelo peso, seja pela distância percorrida.

Como consequência, muitos trechos de ferrovias acabam abandonados ou têm pouco tráfego. Paes destaca a necessidade de melhorar a regulação que incide justamente sobre as concessões de transporte ferroviário, que ele considera um dos pontos mais importantes para o país. “Isso não faz sentido pela lógica econômica. O problema na regulação é que ela é muito focada na forma e não nos resultados, o que faz com que a operação ferroviária seja mais cara do que ela precisaria ser, tornando o setor menos atrativo”, explica.

“Isso é ruim para todo mundo, em especial acaba impedindo que se façam investimentos para ampliar a capacidade de algum trecho das ferrovias. Não deveríamos ser obrigados a explorar trechos que não são economicamente viáveis, mas, sim, nos preocupar com a disponibilidade e a qualidade do serviço”, completa.

Representantes do setor e concessionárias aguardam a tramitação do PLS 261/2018, hoje parado no Senado, que trata da exploração indireta, pela União, do transporte ferroviário em infraestruturas de propriedade privada, além de autorizar a autorregulação ferroviária e disciplinar o trânsito e o transporte ferroviário. De acordo com o presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), Vicente Abate, o projeto trará capilaridade para o setor, por permitir a exploração das chamadas short-lines (linhas curtas, em tradução livre). Trechos pequenos que alimentam, nos Estados Unidos, por exemplo, 30% da malha ferroviária. O relator do PLS é o senador Jean Paul Prates (PT-RN).

(foto: Arte CB)
(foto: Arte CB)

“O PLS tem um mecanismo de autorização menos burocrático, que concede o uso e autoriza a construção de ferrovias privadas com prazo de 25 a 99 anos renováveis”, conta. Na falta de ação do Congresso e do Executivo, estados já tomam frente no processo. “Esse mecanismo que esperamos que o Senado tramite, vote e aprove, tem sido feito pelos estados enquanto isso não ocorre. Minas Gerais fez seu decreto em 8 de junho, Mato Grosso, também, e São Paulo vai fazer. Mas, como lei federal, ele abarcará os estaduais. Isso dá capilaridade para o setor. Faz a indústria ferroviária crescer”, ressalta Abate.

O plano do Ministério da Infraestrutura é um aumento de 33% da rede ferroviária até 2035, em etapas. Abate avalia que, com o PLS, o país poderá chegar a 40% no período. “O transporte ferroviário é 30% mais barato do que o rodoviário. De construção de via, temos que desfazer o mito de que a ferrovia custa muito caro. Efetivamente, custa, mas o ciclo de vida dura mais de 30 anos. Então, acaba sendo muito mais barato do que a rodovia. E quem faz a manutenção da ferrovia é o operador privado, enquanto na rodovia é o Estado”, defende.

Sinergia é etapa obrigatória

Todos os especialistas consultados pelo Correio alertaram para a necessidade de se investir em ferrovias, mas também na conexão entre modais, dando prioridade ao mais estratégico em cada região. Ao ressaltar a importância do desenvolvimento das ferrovias, é fundamental lembrar que o transporte rodoviário aparece na conta, no início e no fim da ponta do processo logístico.

É preciso destacar, ainda, a importância e o potencial mal explorado do uso de hidrovias no país. O país tem mais de 41 mil km de rios mal aproveitados. Do trio trem, rodovia e hidrovia, é o que tem maior capacidade de carga e o que menos polui. E sem investir na conexão entre caminhões, trens e barcos, o país perderá em eficiência, mesmo que passe a cuidar bem das linhas férreas, da pavimentação asfáltica e organize o transporte aquaviário de cargas.

O professor de logística da Faculdades de Tecnologia do Estado (Fatecs) Guarulhos, Mogi das Cruzes e Zona Leste, Marcos José Corrêa Bueno, alerta. “Um dos nossos gargalos é a integração intermodal. Mesmo que a ferrovia tenha melhorado nos últimos anos, precisamos melhorar a integração”, exemplifica.

Pela extensão territorial do Brasil, como analisa o doutor em engenharia de transportes Luiz Miguel de Miranda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a intermodalidade deveria ser melhor explorada. Na avaliação dele, os caminhões não deveriam transportar cargas para distâncias superiores a 500 km, visto a possibilidade de desgaste do veículo e do expediente puxado para o caminhoneiro, sem contar na quantidade de poluição ao meio ambiente.

“Se conseguirmos inserir uma malha ferroviária eficiente e eficaz, estaremos contribuindo com o país como um todo, sobretudo com as pessoas, com milhões de caminhoneiros que não dormem em casa e que prejudicam suas relações pessoais, familiares e de saúde. Eles andam 3 mil km para transportar, não vão em casa, estão sempre doentes, sofrem acidentes e ainda podem ser assaltados. Isso tem um custo social absurdo”, alerta. (AF, LC e RS)


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