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Estado de Minas PANDEMIA

Cidade 'exemplo' de kit-COVID, Rancho Queimado não tem melhor resultado

Citada na CPI pelo senador Luis Carlos Heinze, cidade adotou tratamento precoce, sem eficácia contra o vírus, e não apresenta números melhores que vizinhos


21/06/2021 13:02 - atualizado 21/06/2021 19:07

Cidade nem chega a 3 mil habitantes e fica a menos de 50 quilômetros de Florianópolis (SC)(foto: Reprodução/Google Street View)
Cidade nem chega a 3 mil habitantes e fica a menos de 50 quilômetros de Florianópolis (SC) (foto: Reprodução/Google Street View)
Rancho Queimado é uma pitoresca cidadezinha com menos de 3 mil habitantes, a menos de 50 quilômetros de Florianópolis (SC), e portadora do título de capital estadual do morango. O nome do município passou a figurar na lista de assuntos mais mencionados do Twitter, e não foi por causa da fruta. Rancho Queimado virou meme depois que senadores governistas como Luis Carlos Heinze (PP-RS) passaram a apresentá-la na CPI da COVID como caso de sucesso do chamado "tratamento precoce", com base em drogas como a cloroquina e a ivermectina.

Com o apoio da prefeitura, de vereadores e de líderes comunitários, o médico local passou a prescrever "kit COVID" a todos os pacientes com diagnóstico ou com suspeitas da doença na cidade. Dos cerca de 2,8 mil moradores de Rancho, quase a metade, 1.115 pessoas, tomou o vermífugo ivermectina. Outras 438 pessoas foram medicadas com um coquetel de hidroxicloroquina, azitromicina e outras drogas. A prefeitura gastou cerca de R$ 47 mil com os medicamentos até agora.

Mas os dados mostram que Rancho Queimado não foi especialmente bem-sucedida em conter o vírus. E epidemiologistas descartam qualquer efeito dos remédios sobre os números da doença no local. Vários estudos clínicos no Brasil e no exterior já mostraram a ineficácia do tratamento com hidroxicloroquina no enfrentamento ao vírus.

Segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina organizados pela iniciativa Brasil.io, Rancho Queimado tem números similares aos de cidades fronteiriças. Em Rancho Queimado, foram dois óbitos até o momento. Leoberto Leal conta também duas mortes, em uma população de 3 mil pessoas. Já Angelina teve apenas um óbito confirmado entre os 4,7 mil habitantes. Nenhuma das duas cidades vizinhas adotou de forma oficial o "tratamento precoce", segundo informaram as prefeituras.

No começo de maio, por exemplo, Rancho Queimado foi citada sete vezes em uma única sessão da CPI, durante o depoimento do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. "Lá no meu Estado, os municípios de Rancho Queimado e Chapecó fizeram um tratamento inicial, um 'kit COVID'. E o resultado foi extraordinariamente positivo", disse o senador Jorginho Mello (PL-SC). "Estou lendo (...), conversando com pessoas que conhecem o assunto. Falo com as pessoas e vejo esse médico que me emocionou quando falou em Rancho Queimado. Passou (atendeu) 1.804 pessoas; testou 419 positivos. Só dois óbitos", reforçou Luis Carlos Heinze (PP-RS), na mesma sessão.

Ao Estadão, Heinze disse que conheceu o caso por meio de um grupo de médicos defensores do "tratamento precoce". Intitulada de "Médicos pela Vida", a iniciativa soma mais de 14 mil profissionais, segundo o senador. "(Eles) têm casos para apresentar do Oiapoque ao Chuí, e aí a gente foi conhecendo, tipo Porto Feliz (SP), Porto Seguro (BA) e Rancho Queimado", disse o senador.

"Rancho Queimado foi o primeiro que eu mencionei. Falei com a prefeita (Cleci Veronezi, do MDB), falei com o médico, (Armando Taranto), e ele explicou como eles fizeram, quando começou o processo lá. É uma cidadezinha pequena com apenas um médico, e ele me explicou como trabalhou", conta o senador.

Médico liderou 'kit COVID'


Armando Taranto é um médico de 69 anos. Passou os últimos 45 deles trabalhando em Rancho Queimado. Com a concordância da prefeita, dos vereadores e do Conselho Municipal de Saúde, Taranto abriu um posto separado para atender os pacientes com suspeita de COVID-19 e passou a aplicar o protocolo do "tratamento precoce". Para os pacientes sem sintomas e com teste negativo para o vírus, a prescrição era de ivermectina (6 mg), como forma de prevenção. Se o teste fosse positivo ou se o paciente apresentasse sintomas, a prescrição era de ivermectina (6 mg), hidroxicloroquina (400 mg), azitromicina (500 mg) e aspirina (100 mg), mais corticóide (prednisona ou dexametasona) e complexo de vitaminas.

"Já temos quase 2 mil pacientes que foram atendidos lá. Desses 2 mil, cerca de 450 foram casos positivos. Tratamos desses 450, e tivemos dois óbitos", diz Taranto. As duas mortes foram de homens idosos - um não recebeu os medicamentos, segundo o médico, e o outro veio a óbito por causa de uma pneumonia, depois de ter tido alta da COVID-19, diz Taranto. "Dessas 2 mil pessoas que já passaram por mim, desses que foram medicados, não tive nenhuma complicação. Nenhuma reação aos remédios", diz ele. Taranto estima que a prefeitura tenha gastado cerca de R$ 47 mil com a compra dos medicamentos.

Questionado sobre o fato de municípios vizinhos terem tido resultados similares sem empregar o mesmo protocolo, Taranto desconversa. "Medicina não é uma ciência exata, né? Você tem cidades onde a tuberculose ataca uma parcela grande da população, e outra cidade do lado onde não ataca. Angelina tem dois médicos, um frontalmente contrário ao tratamento, mas tem outro que faz (o tratamento). Já Leoberto Leal é longe daqui", diz.

'Se tomassem água, era melhor', diz opositor


Adversário de Heinze e Jorginho Mello nos embates da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) diz que a argumentação a favor do "tratamento precoce" é uma "leviandade". "Eles todos sabem que 95% das pessoas que contraem a doença ficam assintomáticos ou têm sintomas leves ou moderados. Então, o que eles fazem? Pegam os assintomáticos, leves e moderados, e tocam a hidroxicloroquina. As pessoas ficam boas. E ficariam boas de qualquer jeito. Se tomassem água era melhor, porque a hidroxicloroquina pode matar quem tem arritmia, e a água não mata", diz Alencar, que é médico.

Em julho do ano passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) abandonou definitivamente os testes com a cloroquina, depois que a droga antimalárica se mostrou ineficaz contra a COVID-19. Outras drogas, como a ivermectina, não se mostraram eficazes para combater ou prevenir a COVID-19. O uso do medicamento para a doença viral é até desaconselhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e pela farmacêutica alemã Merck, que criou o vermífugo nos anos 1970 e o comercializa no exterior.

'Piada do ponto de vista científico', diz epidemiologista


Segundo o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal, usar Rancho Queimado como "estudo de caso" para defender o uso de drogas como a cloroquina e a ivermectina "é uma piada do ponto de vista científico". "Algo que só é feito por quem não entende nada de ciência", diz ele. A população da cidade e o número de óbitos são pequenos demais para qualquer conclusão válida, segundo o especialista da universidade gaúcha.

Mesmo se fossem representativos, os números de Rancho Queimado não seriam bons quando comparados com o restante do mundo, conforme observa Pedro Hallal. "As duas mortes confirmadas levam a uma taxa de 666 mortes para 1 milhão de habitantes, enquanto a média mundial está hoje em 488 mortes por 1 milhão. Então, o resultado de Rancho Queimado é até pior que a média mundial", pontua o estudioso.

Hallal também diz que o "tratamento precoce" não teve nenhuma influência sobre o andamento da pandemia de COVID-19 na cidade. "Todos os órgãos de saúde já testaram esses medicamentos e eles não funcionam para COVID-19. Ou seja, não tem nada a ver com isso o resultado de Rancho Queimado nem o das cidades vizinhas", diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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