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"Ser a única mulher no Superior Tribunal Militar me estimula", diz ministra

Ministra aponta como os preconceitos misóginos perpassam o Judiciário no país


14/06/2021 12:23

Ministra critica atuação do governo no combate à pandemia. Para ela, muitas vidas perdidas poderiam ter sido salvas (foto: Arquivo pessoal)
Ministra critica atuação do governo no combate à pandemia. Para ela, muitas vidas perdidas poderiam ter sido salvas (foto: Arquivo pessoal)


Entre os 14 nomes que compõem o Superior Tribunal Militar (STM), apenas um é feminino. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha é a única mulher da Corte. A ministra sabe bem o porquê: “Preconceitos sexistas e misóginos perpassam o Poder Judiciário em todas as suas instâncias. O Brasil é um país onde o patriarcalismo ainda predomina. Para mim a forma adequada para lidar com estigmatizações é uma só: enfrentá-las”.

Maria Elizabeth se declara feminista e sabe que vencer o périplo para chegar aos tribunais superiores requer muito mais do que ser uma boa julgadora. “O merecimento, uma forma autorizada de ‘cooptação’ de Cortes predominantemente masculinas, promove homens em sua maioria. Aquelas que superam tais restrições destacam-se para além das capacidades exigidas de maneira geral”, garante.

Afirma, ainda, que o maior desafio das mulheres que chegaram a instâncias de poder é claro: “Todas aquelas que romperam paradigmas possuem uma concreta responsabilidade em auxiliar as demais. Não podem se furtar de fazer valer o significado de sua condição no interior de uma cultura sexista e patriarcal. A sororidade deve prevalecer”.

Sobre a pandemia, a ministra defende o papel do STF, que determinou instalação da CPI da Covid: “O STF, como de resto todo o Poder Judiciário, não pode se furtar da impostergável incumbência de assumir parcela da responsabilidade social que lhe é devida na fiscalização do atuar público”.

E não deixa de criticar a atuação do governo. Para ela, muitas vidas perdidas poderiam ter sido salvas não fosse a ineficiência na compra das vacinas, “postergada pelo Ministério da Saúde ou em virtude de uma diplomacia que envergonhou a Nação e humilhou o Itamaraty”. Credita também responsabilidade ao presidente da República, que equiparou a covid-19 a uma ‘gripezinha’, ao negacionismo e ao menosprezo à ciência essa grande tragédia humanitária. “Foram tantos os equívocos que hoje só nos resta chorar pelos mais de 480 mil mortos”, lamenta Maria Elizabeth. Leia, a seguir, os principais trechos desta entrevista ao Correio.

Como encara a sua presença solitária, como mulher, no STM? A discriminação de gênero é uma realidade ainda hoje nos tribunais? Qual é a forma adequada de lidar com preconceitos sexistas no dia a dia dentro e fora dos tribunais?
Ser a única mulher no Superior Tribunal Militar me estimula. Minha presença representa a possibilidade de acesso das mulheres a todos os lugares que, até bem pouco tempo, constituíam redutos de masculinidade. Tenho plena consciência da responsabilidade de abrir caminhos para as novas gerações, por isso redobro meus esforços e estudos para desempenhar bem a judicatura. Por certo, preconceitos sexistas e misóginos perpassam o Poder Judiciário em todas as suas instâncias. O Brasil é um país onde o patriarcalismo ainda predomina, e essa cultura impõe uma mudança de mentalidades que se descontrói a longo prazo, com a educação. Para mim, a forma adequada para lidar com estigmatizações é uma só: enfrentá-las. Não há outro caminho possível! A história das mulheres é uma história de lutas e resistências na qual desistir não é, nem nunca foi, uma opção.

Pela primeira vez na história do país, o presidente recebeu uma lista tríplice para o TSE apenas com mulheres. Isso é um avanço?
Com certeza! E eu atribuo esta mudança de cenário a um câmbio de posicionamento mundial que reivindica o reconhecimento e a ampliação dos direitos da população feminina: civis, políticos, sociais e culturais, que vão ao encontro de garantias jurídicas fundamentais que privilegiam modos de ser e de viver distintos dos padrões androcêntricos.

A que atribui o reduzido número de mulheres nas altas cortes? Na primeira instância já somos maioria, por que isso acontece? Há blindagem nas indicações políticas?
Sem dúvidas! Atualmente, as mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação, conforme Censo da Educação Superior de 2016 realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a demonstrar o acesso crescente das mulheres ao ensino superior. O reflexo é a Justiça Comum de 1ª instância contar com juízas que giram em torno de 40% graças à aprovação em concurso público. Todavia, o périplo para chegarem aos Tribunais ad quem e, sobretudo, superiores, mostra-se mais árduo. Para tanto, não basta ser uma boa julgadora, sequer, excelente. O acesso atrelado ao binômio antiguidade e merecimento, para a mulher, parece centrar-se na exigência da idade no exercício da função. O merecimento, uma forma autorizada de “cooptação” de Cortes predominantemente masculinas, promove homens em sua maioria. Aquelas que superam tais restrições destacam-se para além das capacidades exigidas de maneira geral.

Trata-se de uma contrassenso, para dizer o mínimo.
À evidência, inexiste base ou referencial científico a indicar que alguma característica fisiológica ou psicológica feminina desqualifique as mulheres na tarefa de julgar monocraticamente ou em um colegiado, tampouco, que as credenciem como menos eficientes ou equilibradas. O problema não é o modo como elas exercem o poder, mas o caminho que devem percorrer e os obstáculos que devem enfrentar para obter as devidas promoções.

Quais fatores contribuem mais para impedir a ascensão das mulheres?
Em 2014 as juízas correspondiam a 35,9% do universo de magistrados, conforme Censo do Poder Judiciário realizado pelo CNJ. A pesquisa identificou que, quanto mais elevada a posição na carreira, menor é a presença feminina, correspondendo em termos percentuais a 44% dos juízes substitutos, 39% dos juízes titulares, 23% dos desembargadores e apenas 16% dos ministros de tribunais superiores. Esta situação decorre de, nas instâncias superiores de maneira geral, os cargos serem providos por indicação política, pelo que diminuta a participação da mulher devido às dificuldades de ela transitar em espaços historicamente ocupados por homens. Acresça-se que neste ponto da disputa, a meritocracia não mais predomina, momento no qual a ascensão feminina é dificultada ou mesmo obstaculizada. A escolha de mulheres, portanto, passa a ser uma possibilidade menor, uma vez que é da natureza humana indicar os semelhantes.

Há dados concretos desta discriminação?
Prova disto foi o Conselho Nacional de Justiça, avaliando os dados sobre a representatividade de gênero, constatar as flagrantes assimetrias entre os sexos na ocupação de cargos, razão pela qual editou a Resolução CNJ nº 255, de 4 de setembro de 2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher. Esta política nacional dispõe que todos os ramos e unidades do Judiciário deverão adotar medidas assecuratórias em favor da igualdade no ambiente institucional, propondo diretrizes e mecanismos que orientem os órgãos judiciais a incentivar a participação feminina nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como expositoras em eventos institucionais. Ainda nesse contexto, em 2019, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Relatório de Diagnóstico da Participação Feminina no Poder Judiciário, analisando as informações sobre magistradas e magistrados que atuaram nos 68 Tribunais pesquisados, nos últimos 10 anos (2008-2018), incluindo aposentados e afastados da jurisdição. A análise concluiu que a Judicatura Pátria é composta, majoritariamente, por homens, com apenas 38,8% de mulheres em atividade.

Nas instâncias superiores, as estatísticas são mais desfavoráveis?
O percentual de magistradas nos cargos de desembargadoras, corregedoras, vice-presidentes e presidentes aumentou nos últimos 10 anos. Entretanto, permanece no patamar de 25% a 30%. Nos tribunais superiores, ele caiu de 23,6%, nos últimos 10 anos, para 19,6%, se se considerar somente as que estão na ativa. Mais: em média, as mulheres preencheram somente de 15% a 23% dos cargos de presidente, vice-presidente, corregedora ou ouvidora na última década. Dessa forma, é flagrante ser a participação feminina no Judiciário Nacional extremamente baixa.

E no STM?
No Judiciário Federal Castrense Federal, ramo especializado da Justiça que eu integro, o acesso é ainda mais difícil, principalmente, no âmbito do STM, o órgão de cúpula desta Justiça Especializada, que conta só comigo, como a primeira e única mulher a ocupar a vaga de ministro civil reservada à advocacia. Isso porque as vagas destinadas aos ministros militares, 10 ao todo, por imposição constitucional, devem ser ocupadas por generais, almirantes e brigadeiros do último posto e patente do oficialato. Daí se faz necessária a integração plena da mulher nas Forças Armadas, para que ela possa ascender ao generalato de 4 estrelas e, consequentemente, ser indicada para compor a Corte Superior Castrense.

Qual o impacto de uma presença maior de mulheres nos tribunais?
É importante frisar que a presença de mulheres de gêneros e etnias variados no Poder Judiciário não é concebida para que as magistradas julguem suas “iguais”, mas para que a Justiça se torne um órgão plural e inclusivo, além, é claro, de significar chances idênticas de acesso. Por isso, a nomeação de mais juízas terá um impacto positivo na prestação jurisdicional e no desenvolvimento da lei substantiva, uma vez que o feminino vê o mundo sob uma perspectiva diversa do masculino. Nada mais saudável para a democracia, sabido que a alteridade perspectiva uma humanidade mais fraterna, libertária e, sobretudo, filógina!

Ao tomar posse a senhora disse em discurso: “Uma democracia sem mulheres é uma democracia incompleta”. As coisas mudaram de lá pra cá? Quando seremos uma democracia completa?
O mundo avançou, é inquestionável! Muitas conquistas advieram nestes meus 14 anos de magistratura. Mas a história é um processo lento e continuado e não caminha em saltos. Por esta razão, respondendo a sua pergunta, seremos uma democracia completa quando as autonomias privadas deixarem de se submeter aos crivos hierárquicos que, sob tal pretexto, conduzam a privilégios e restrições. Quando se fala em discriminação contra a mulher, se fala de uma desigualação que não é natural, e sim proveniente de um construto social. Assim, para que grupos propositalmente isolados possam integrar plenamente a comunidade política, é fundamental a estatalidade ditar regras e medidas de inclusão. Até porque a isonomia apresenta-se como um viés da não dominação ou da não submissão, implicando numa visão crítica sobre a condição humana. Ela sobrepaira as regras formais para ascender à realidade social relevante.

Machismo e preconceito são obstáculos à democracia, então.
Em um contexto democrático, nenhuma concretização deste princípio pode ser considerada válida se alija e menoscaba a participação daqueles que se encontram em situação concreta de vulnerabilidade díspar, como é o caso das mulheres, afrodescendentes, indígenas, hipossuficientes, dentre outros segmentos populacionais e de classe. Nessa perspectiva, mulheres negras, mulheres pobres, mulheres vitimizadas pela violência de gênero, merecem um corte analítico distinto, na medida em que as vivências de cada uma delas se sobrepõem e se intersectam às identidades sociais e aos sistemas de opressão e dominação relacionados. Dito de outro modo, para se entender como a injustiça social sistêmica ocorre em uma base multidimensional, criando múltiplas formas de sufocamento, é imperioso considerar os critérios de interação identificadores das estruturas de subordinação em contextos que nada têm de neutro ou natural, ainda que cotidianos.

A senhora passou em primeiro lugar em concurso para procuradora federal. Foi a primeira mulher em 200 anos a presidir o STM, é constitucionalista, garantista e feminista entre militares e civis. Sente-se desafiada em fazer diferença?
O meu maior desafio é construir caminhos e alternativas viáveis às mulheres que almejam nada mais do que a igualdade. Tenho plena convicção de que todas aquelas que romperam paradigmas possuem uma concreta responsabilidade em auxiliar as demais para alcançarem seus objetivos e aspirações. As mulheres que tiveram acesso ao poder não podem se furtar de fazer valer o significado de sua condição no interior de uma cultura sexista e patriarcal. A sororidade deve prevalecer.

Qual feminismo a senhora defende?
A história do feminismo, e eu sou uma feminista do meu tempo, possibilita reflexões inovadoras sobre a construção coletiva da identidade da mulher, legitimando-a a enfrentar o novo milênio. Falar contemporâneo implica construir o processo de feminização, implica refutar estereótipos carcomidos e caminhar em direção à equidade entre humanos como condição indispensável da dignidade. Afinal, numa sociedade plural, inexiste espaço para estamentos exclusivistas nem posturas neutras. As distorções persistentes, não só no Judiciário, mas em todas as instituições, descortinam o acentuado predomínio do sexo masculino, notadamente de homens brancos e heterossexuais. Tais características, difundidas como se fossem gerais e representativas de todas as classes e pessoas, esbatem-se nas virtudes cívicas; e, neste momento, a Justiça torna-se enviesada.

O Congresso instalou a CPI da Covid por determinação do ministro Luís Roberto Barroso. Cabe ao STF esse tipo de decisão que interfere nos trabalhos do Legislativo?
A quem caberia, senão ao Poder Judiciário, sobretudo ao Supremo Tribunal Federal, em cumprimento de sua missão de guardião da Constituição? Isto não é, de forma alguma, ingerência de um Poder em outro, mas o exercício do legítimo dever de compelir judicialmente o Congresso Nacional, até então inadimplente. O STF, como de resto todo o Poder Judiciário, não pode se furtar da impostergável incumbência de assumir parcela da responsabilidade social que lhe é devida na fiscalização do atuar público.

A Suprema Corte é excessivamente politizada?
Não a considero nem politizada, nem ativista. Seu atuar tem sido de extrema importância na consolidação de garantias que consubstanciam o próprio ideário civilizatório, a exemplo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da pesquisa com células troncos e da concretização dos direitos sociais, dentre outros temas. O acesso ao Poder Judiciário, nomeadamente o acesso ao STF em sede de controle abstrato para questionar e impulsionar o Estado, se impõe cada vez mais para o adimplemento dos preceitos constitucionais. Sua atuação enaltece o papel de fiador dos imperativos da República que lhe foi atribuído pela Carta Política. Eu relembro, ademais, a inafastabilidade da jurisdição e a efetividade das tutelas individual, coletiva e metaindividual como uma das várias possibilidades oferecidas pelo Constituinte ao jurisdicionado para pleitear reivindicações fidedignas, que devem ser respondidas pelo magistrado.

O combate à corrupção sofreu um revés com o descrédito da Lava-Jato?
Absolutamente. A corrupção é um mal terrível, que corrói a sociedade brasileira. Porém a punição deve observar as garantias inflexíveis do devido processo legal. Está-se diante de um pressuposto basilar do Estado Democrático de Direito.

Como o STM contribuiu no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
A Justiça Militar da União foi o primeiro órgão do Poder Judiciário a atuar em plataforma completamente virtual, após a integração efetiva de toda a estrutura organizacional a partir de 26/6/2018. Muito embora a pandemia tenha surpreendido a todos, a Justiça Federal Castrense já possuía um aparato normativo e prático de atuação nacional em ambiente virtual com audiências e coletas de depoimentos e interrogatórios realizados por videoconferência, bem como o manuseio eletrônico e integrado da maioria dos atos definidos no Código de Processo Penal Militar, sobretudo, pela massificação do sistema E-Proc.

Houve outros avanços?
Não se pode esquecer, ainda, a atuação de base do sistema inquisitorial das Forças Armadas, que igualmente possuem seus plataformas virtuais para a produção dos Inquéritos Policiais Militares e dos Autos de Prisão em Flagrante, para além da performance eletrônica das partes: quer advogados, quer Defensoria Pública da União, quer Ministério Público Militar. Desta forma, com todo o sistema conexo em meio digital, a JMU adequou-se ao quadro pandêmico para processar e julgar as demandas propostas por meio das Sessões Virtuais por videoconferência, do Julgamento eletrônico e do estabelecimento do trabalho remoto dos servidores. Apesar dos impasses vivenciados, sua atuação neste período tem sido positiva devido à celeridade processual e respostas judiciais dispensadas aos jurisdicionados e à sociedade em geral.

Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia revelou o que sempre soubemos: que o homem é o destino do homem. E se a humanidade não florescer entre os humanos, a opressão e as injustiças continuarão a tiranizar a ética e a moral.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tudo mudou. Saio pouco de casa, aprendi a lidar com as mídias telemáticas e digitais a que sempre tive resistência e trabalhei o triplo do usual entre julgamentos, votos, aulas e palestras.

Como ficam as grandes questões de Brasil no pós-pandemia?
Ficam mais trágicas e permanecem pendentes de solução. Fica, ainda, o gosto amargo de um sistema de saúde ineficiente e de uma desigualdade social brutal que nos condena como sociedade política.

O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, se engajou em alguma atividade coletiva – a distância ?
Sim, ajudo com cestas básicas às pessoas hipossuficientes desde o início da pandemia. Não atuo diretamente junto às populações carentes, mas a família militar à qual integro, é humana e solidária, e muitas esposas de oficiais, mais jovens e atuantes, vão para a linha de frente e desempenham um trabalho magnífico de auxílio aos necessitados.

Que ensinamento este momento nos deixa?
A lição do Papa Francisco na benção Urbi et orbis: “Ninguém se salva sozinho.”

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões?
Nunca imaginei que seria espectadora de uma tragédia humanitária tão devastadora quanto a que vivemos, e que o Brasil seria um dos seus protagonistas! É lamentável a quantidade de vidas perdidas, que poderiam ter sido salvas não fosse a ineficiência na compra das vacinas, postergada pelo Ministério da Saúde, ou em virtude de uma diplomacia que envergonhou a Nação e humilhou o Itamaraty. Não fosse o menoscabo do Presidente da República, que desqualificou a covid-19, equiparando-a a uma “gripezinha”, do negacionismo de muitos, do menosprezo à ciência. Foram tantos os equívocos que hoje só nos resta chorar pelos mais de 480 mil mortos.

O que tem a dizer sobre a decisão do Exército de não punir o ex-ministro Eduardo Pazuello por participação em evento político com o presidente?
A punição administrativa disciplinar é um ato discricionário do Comandante do Exército. Se ele entendeu que não houve o cometimento de infração por parte do general Pazuello, não cabe a mim comentar.

Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Não tenho exemplos a citar. Não gosto de estabelecer comparações, pois o Brasil tem diferenciais imensos em relação a outros Estados, seja pelas suas dimensões continentais, seja pela imensa população, seja pelas dificuldades de acesso em determinadas regiões do país. Mas não posso deixar de externar todo o meu horror e a minha indignação como ser humano e cidadã pelos brasileiros que morreram!

Por que a Lei Maria da Penha não protege as mulheres militares?
Sinteticamente, por se tratarem, tanto o Código Penal Militar quanto a Lei Maria da Penha, de leis especiais e por regulamentarem matérias afins, pelo que exsurge um conflito aparente de normas que, a meu ver, é resolvido frente à definição de crime militar. Para que um crime seja de natureza militar, faz-se necessário a afronta aos seus princípios fundamentais, a ordem militar (disciplina e hierarquia), e os interesses da administração castrense. Assim, tais delitos só se tornam especiais quando são cometidos em prejuízo da funcionalidade das Forças Armadas. Os que estiverem fora desse enquadramento, encontram óbice de natureza formal à sua apreciação na Justiça Especializada. Por este motivo, sem embargo da edição da Lei nº 13.491/17, que ampliou o rol delitivo castrense e instituiu os chamados crimes militares por extensão, ou seja, aqueles que não estão tipificados no CPM, mas estão previstos no Código Penal Comum e nas leis extravagantes, a Lei nº 11.340/2006 (Maria da Penha) continua inaplicável no foro castrense.

Como esse problema jurídico ocorre no cotidiano da família militar?
Um ponto a se ressaltar é que mesmo se tratando de residência militar, a casa não está sujeita à Jurisdição Militar, por ser o asilo inviolável do indivíduo. Não cabe, portanto, à JMU adentrar em questões envolvendo bens jurídicos tutelados pela Constituição em seu art. 226, porquanto voltado exclusivamente à proteção à família, e não, à hierarquia e disciplina das Forças Armadas. Mas não é só, um outro óbice a ser colocado é que o crime militar se processa mediante ação penal pública incondicionada, enquanto a Lei Maria da Penha prevê, em alguns casos, o oferecimento de ação penal pública condicionada à representação da ofendida.

Há outras dificuldades?
Não fosse suficiente, a Lei Maria da Penha possui uma natureza híbrida, que mescla sanções penais e medidas de natureza cível, as protetivas de urgência. Ora, a Justiça Militar da União, um foro exclusivamente penal, não poderia, por manifesta incompetência, deferi-las. Por tais motivos, considerando que a Lei Maria da Penha se insere em um contexto de necessidade de tratamento diferenciado à violência de gênero, cujo escopo é proteger a mulher vitimizada, independentemente da atividade profissional que ela exerça, entendo não se poder suprimir, por afronta ao princípio da igualdade, as garantias conferidas pela lei à mulher civil. Eu então, apesar de restar vencida no meu entendimento, declino o foro para o Juizado de Violência Doméstica na tentativa de salvaguardar direitos.

Seus posicionamentos, como o da possibilidade de suspensão condicional da pena a casos de deserção, são considerados muito polêmicos. Sente-se desanimada por ser minoria também em ideias? Isso interfere no seu relacionamento com colegas no tribunal?
Logo que tomei posse no Tribunal, ouvi do ministro Marco Aurélio que quem não sabe conviver com a divergência não pode integrar um órgão colegiado. Ele não poderia estar mais correto! O dissenso é saudável nos tribunais porque areja as ideias. Ninguém é o dono da verdade ou do direito.


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