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Estado de Minas DEPOIMENTO

Norte-americano com raízes mineiras descreve o primeiro dia de manifestações nos Estados Unidos

'Sábado foi um dia belo e trágico na Filadélfia'


postado em 01/06/2020 12:33

(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)
As demonstrações de racismo e a truculência policial nos Estados Unidos indignam o professor universitário de literatura e língua portuguesa, Ronaldo Fortes Ribeiro, de 41 anos, de família mineira, nascido na cidade de Minneapolis, no estado de Minnesota, e residente na Filadélfia há 10 anos.

Num relato emocionado, Jay, como é conhecido pelos amigos, faz um paralelo entre sua vida cheia de oportunidades e a de George Floyd, cinco anos mais velho, negro, e assassinado na última segunda-feira por um policial branco, em Minneapolis.

"Os dias têm sido muito tensos", diz Ronaldo, que no sábado, ao lado da mulher, a norte-americana Rachel, participou de uma manifestação contra a violência que se irradia pelo país. Mas, à noite, a paz virou guerra nas ruas, com incêndios, destruição, vandalismo: "Os carros em chamas, as bombas de efeito moral, as lojas saqueadas e os incêndios por todos os lados me pareceram excessivos e criminosos. Bateram na minha porta. Incendiaram os restaurantes na esquina. Quebraram a loja da minha colega. Fiquei com medo. Fiquei com raiva. Rachel, Linda e eu nos escondemos no quarto com duas facas. Nunca tive armas. Sou contra as armas. Fiquei indignado."

Formado em odontologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comunicação social (jornalismo) na PUC Minas, Ronaldo fez mestrado em literatura na Universidade de Winsconsin e não se esquece das raízes mineiras, nem deixa de lado os grandes autores nacionais. E em mais esse momento dramático na história do Estados Unidos, conta que participou da manifestação de sábado, na Filadélfia, em homenagem a Floyd, e a pessoas como Sueli, que trabalhou em sua casa e merece toda sua gratidão.

Leia o depoimento completo:

"Sábado (30) foi um dia ao mesmo tempo belo e trágico na Filadélfia, cidade grande e cosmopolita localizada a duas horas de Nova Iorque. Belo pela demonstração de solidariedade após a morte de George Floyd, que perdeu a vida asfixiado por um policial na cidade de Minneapolis, no meio-oeste dos Estados Unidos. Trágico por uma demonstração pacífica ter se transformado em vandalismo, saques a lojas, queima de carros e violência.

Moro na Filadélfia há quase 10 anos. Por uma coincidência do destino, nasci na cidade onde George Floyd morreu, a belíssima e rica Minneapolis, de arquitetura moderna, lindos lagos e um inverno rigorosíssimo, com temperaturas que chegam a menos 30 graus. Param por aí as semelhanças entre mim e Floyd. Meu pai (José Leonardo Ribeiro) foi um economista e pesquisador bem-sucedido. Por ter sido um tremendo nerd, papai recebeu uma bolsa da organização Fulbright, no fim dos anos 1970, para estudar no exterior. Partiram papai nerd, mamãe, e meu irmão Heleno, criancinha ainda, não sabendo que ia parar na cidade de Floyd. Alguns anos mais tarde, sem ter WhatsApp ou internet, mamãe escreveu uma carta para a vovó dando as boas novas que a família tinha acabado de ter um baby boy. Ao contrário do negro Floyd, nasci branquelo e num berço de ouro cheio de amor, livros e possibilidades.

Os anos se passaram, papai decidiu voltar ao Brasil para ser diretor de uma empresa de pesquisa (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais/Epamig), mamãe foi dar aulas, discutir ideias e nos encher de amor. Meu irmão deixou para trás o halloween, a neve, a banda de rock Kiss, e foi falar português com sotaque na escola nova. Eu deixei a minha cidade natal e fui ser brasileiro na Belo Horizonte do Clube da Esquina, do clube de esportes Mackenzie, e mais tarde da boemia e dos bares. Quando papai nerd tomou 'um trem pras estrelas', mamãe precisou ainda mais da ajuda da Sueli, nossa babá. Depois vieram outras Suelis, que cuidaram do irmão, de mim e mais tarde da própria mamãe. Mas esse tempo todo, a cidade de Floyd nunca me saiu da cabeça.

Depois de muitos carnavais, o espírito aventureiro e uma bolsa de estudos me levaram para perto da Minneapolis da minha infância. Me enfiei nos livros, e quando finalmente entendi a beleza de Machado de Assis, que tinha me aporrinhado no segundo grau durante a preparação para o vestibular, fui ensinar literatura brasileira e português na Universidade da Filadélfia. E aqui estou até hoje, com a esposa Rachel e a cadela chamada Linda, uma Golden Retriever gulosa, gordinha e dorminhoca, bem diferente da famosa Baleia do nosso amigo Graciliano (Graciliano Ramos, autor de Vidas secas) – magra, quieta e sofrida.

Nunca conheci Floyd. Mas quando soube da sua morte brutal, resolvi participar da manifestação, porque pensei não só no Floyd mas também na minha infância e na Sueli. Pensei em tudo que recebi do meu pai, da mamãe idealista e amorosa, do irmão cuidadoso, e de como tudo isso não fez parte da realidade da Sueli. E nem da realidade do Floyd. E nem da realidade das outras Suelis que vieram depois. E nem da realidade da Mariley, uma mulher inteligente, trabalhadora e bem-humorada, apesar de todos os pesares.

E foi assim que saí para participar da manifestação num dia belo. Começou claro, sol a pino, brisa gostosa. Depois de um inverno longo, a Filadélfia estava florida, as pessoas de shorts e sandálias, o espírito amistoso. E de repente a indignação dos Floyds e das Suelis veio à tona, se transformando em ira e violência desmedida. Quando já era noite, os carros em chamas, as bombas de efeito moral, as lojas saqueadas, e os incêndios por todos os lados me pareceram excessivos e criminosos.

Bateram na minha porta. Incendiaram os restaurantes na esquina. Quebraram a loja da minha colega. Fiquei com medo. Fiquei com raiva. Filhos da puta, pensei. Rachel, Linda e eu nos escondemos no quarto com duas facas. Nunca tive armas. Sou contra as armas. Fiquei indignado. Pensei de novo no Floyd e na Sueli. Pensei em tantos outros Floyds, e Suelis e Marileys. E fiquei sem saber o que pensar."


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