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Estado de Minas COVID-19

Coronavírus: Jornalista brasileira fala sobre fim do confinamento na Itália

Depois de mais de dois meses de isolamento social, a Itália se prepara para retomar algumas atividades a partir de hoje, iniciando uma nova rotina


postado em 04/05/2020 04:00 / atualizado em 04/05/2020 09:35

Bares e restaurantes, como este na praça Vittorio, em Turim, continuam proibidos de atender nas mesas(foto: Marco Bertorello/AFP)
Bares e restaurantes, como este na praça Vittorio, em Turim, continuam proibidos de atender nas mesas (foto: Marco Bertorello/AFP)


Especial para o EM

Há três semanas, o governo italiano autorizou o funcionamento de livrarias, papelarias e lojas de produtos infantis (as crianças cresceram e não tinham o que vestir na troca de estação). Mas pouca coisa mudou. As pessoas continuam confinadas. Poucos carros, ruas vazias. Já o anúncio do plano de reabertura foi recebido com esperança na última semana, ainda que persista o receio de desperdiçar todo o empenho dos últimos dois meses. O país vem sustentando uma queda no número dos casos, mas em velocidade desproporcional ao esforço coletivo feito até agora.

Hoje, reabrirão apenas atividades com risco baixo de contaminação, manufatura, têxtil, moda, automotivo, construção, assim como o comércio vinculado a essas cadeias produtivas. Também reabrirão os parques, que nunca pareceram tão essenciais, e seremos autorizados a nos visitar. Tudo isso respeitando o novo normal do distanciamento social, do número limitado de pessoas por recinto, fora as indefectíveis luvas e máscaras.

Bares e restaurante poderão vender comida na porta, as mesas só voltarão a ser ocupadas em junho, com a abertura de salões de beleza, clínicas estéticas e demais comércios ditos não essenciais. As escolas serão as últimas, só retornam em setembro, no início do ano letivo europeu.

Roma tinha, até sexta-feira, 4.756 casos positivos registrados desde o início da pandemia. O número de óbitos em toda a região do Lazio, onde fica a capital italiana, com população um pouco menor do que a do Rio de Janeiro, era, até então, de 441 pessoas. O Rio, antes de alcançar o pico da doença, registra quase o dobro de mortes.
 

''A luta não acabou, apenas saímos das cordas''

 
Comecei a me sentir mal numa terça-feira, no quadragésimo oitavo dia de quarentena em Roma. Primeiro, dor de garganta. Três dias depois, cansaço, dor abdominal, falta de apetite, dor de cabeça, um pouco de tosse. A essa altura da pandemia, aprendi que, de lesões nos dedos dos pés à desorientação mental, tudo pode ser sintoma de COVID-19. Considerando que, nos últimos dois meses, saí de casa duas horas por semana, e apenas para ir ao mercado, cumprindo todas as recomendações de segurança, ter sido infectada seria demasiado clichê.

Conforme os sintomas persistiam e o cansaço aumentava, pensei que fossem os efeitos do confinamento sobre o corpo, falta de passos, de sol, suor, esforço, abraços. Depois, que seriam os efeitos sobre a mente, dois meses absolutamente domésticos, lendo e escutando sobre a doença, as novas descobertas, os números e atualizações dos mortos. Não tenho pé algum na hipocondria, mas são tempos extraordinários.

O fato é que, na última segunda-feira, piorei. Falta de ar, boca seca, sensação de desmaio, tremedeira, frio, medo. A gente tenta não pensar, mas acaba lembrando os relatos de gente morrendo em casa depois de um colapso súbito dos pulmões, pensei nas minhas crianças e liguei na emergência da COVID-19.

Algumas perguntas e logo me avisaram que uma ambulância estava a caminho. Em pouco tempo chegaram dois impressionantes astronautas. Não entraram na casa e, como se eu fosse feita de césio-137 ou outro material radioativo, pediram que me afastasse da porta. Eu estava de máscara. Deveria colocar outra por cima, disseram, assim como luvas mais grossas, além das que eu já usava. Sempre do lado de fora, fizeram a anamnese detalhada, mediram a oxigenação sanguínea esticando o braço para prender o oxímetro no meu dedo, um teste de respiração e eu deveria ir com eles. Deu tempo de pegar o carregador do celular e um livro.

Desci de elevador os cinco andares. Os dois foram de escada. Quando me distraía, pediam, per favore, que eu me afastasse. Respirar com as duas máscaras era ainda mais trabalhoso, fechava os olhos, pensava se estaria tendo uma crise de pânico, tentava controlar a respiração, a ambulância toda fechada, não sabia sequer para onde estava indo.

Fui levada para o policlínico ligado à Universidade La Sapienza, primeiro para uma sala, logo na entrada, onde tirei sangue do antebraço e do pulso e fiz o “tampone”, o teste do cotonete, que parecia tão inocente quando, na verdade, é um procedimento de tortura que me faria confessar aglomerações que não cometi. Depois, fui levada para outra salinha, dessa vez avulsa, fora do hospital, no que parecia uma parte do estacionamento. Era como uma cela, mas sem banheiro e temperatura de frigorífico, uma poltrona hospitalar e um papel na parede com o telefone da enfermagem, caso eu precisasse de ajuda. Era pouco depois das 16h, fiquei sozinha até as 20h, quando uma pessoa trouxe o jantar, dentro de um saco plástico, deixado na porta. Mais tarde, não suportando o frio, atravessei o pátio e entrei no hospital.

Non puoi andare in giro (Você não pode dar a volta)! Escutei o grito a uns 10 metros, como se eu portasse explosivos. “Eu sei, mas preciso de um cobertor ou que arranquem o ar-condicionado da parede, preciso ir ao banheiro e de qualquer informação sobre quando poderei ir pra casa”, respondi. Consegui o cobertor e descobri que o resultado do tampone demoraria entre 12 e 15 horas, na melhor das hipóteses, sairia às quatro da manhã.

FALTA DE AR

Meia-noite e eu ainda sentia falta de ar. Fui levada para fazer a tomografia. Já de manhã, mais sangue do pulso e do antebraço, em todos os trâmites, trocavam minhas luvas, minha máscara, sempre distantes. Não vi o rosto de nenhum funcionário do hospital. Todos estavam completamente vedados, difícil até distinguir médicos de enfermeiros e responsáveis pela limpeza.

Foi quando me levaram para a ala reservada para casos de COVID-19. Dividi uma enfermaria enorme com apenas quatro pacientes, um em cada canto, todos idosos, com dificuldades respiratórias. Um deles gemia alto a cada expiração, pensei que estivesse com dor até ouvi-lo dizer: Non riesco a respirare (Não posso respirar). Chamavam os enfermeiros o tempo todo, pareciam assustados, como que para ter certeza de que, se precisassem, estariam a postos. Eu não chamava, mas gostava desse movimento que distraía do som da respiração difícil dos outros e da minha própria respiração.

Os enfermeiros pareciam impacientes. Não se pode culpá-los, com toda aquela roupa, depois da máscara e dos óculos de mergulhador, um para-brisas ainda os separavam de nós. Deve ser infernal dar um plantão assim. Mesmo com toda proteção, mal se aproximavam. Eu tirei sozinha, mezzo por constrangimento, mezzo por impaciência, até o curativo que tinha ficado com o acesso à agulha. Duas vezes vi pacientes passando em macas adaptadas com cortinas de plástico, eles também com evidentes dificuldades para respirar. Funcionários desinfetavam o chão a cada hora.

DOENÇA DA SOLIDÃO

A COVID-19 tem sido chamada de doença da solidão. Sempre associei à quarentena, mas a dimensão mais dura é da perspectiva do paciente, que tem sua individualidade diluída em protocolos e procedimentos, sem o consolo do toque, da presença, sequer de um rosto humano completo, distinguível. Apenas olhos que vêm e rápido se vão, vozes abafadas por máscaras, podemos sentir, eles também estão com medo dessa doença que, se tem uma estatística de complicações concentrada em grupos de risco, parece jogar roleta russa com todos os outros. Hoje, na Itália, ninguém quer pagar para ver imunização.

Do ponto de vista da quarentena, cada um de nós contará uma história diferente desses tempos difíceis. Desconfio que minhas crianças lembrarão de dias felizes onde a barraca de camping ficou montada no terraço e a sala ganhou um playground de porquinhos da índia encostado na porta da rua que ninguém abre. Também temos uma nova horta, flores coladas pelas crianças no espelho do meu quarto, novos horários, uma maneira mais morna e sem pressa de estarmos juntos.

Tenho amigas deprimindo, outras enlouquecendo, tenho amigas que nunca foram tão felizes. O grau de satisfação depende da idade, da saúde e, principalmente, da extensão dos privilégios. Em comum, os fantasmas de cada um que, sem paz para assombrar as casas vazias no horário comercial, agora chamam para dançar em pleno meio dia.

Enquanto esperava o resultado do exame, li sobre Claudia, uma mulher de 52 anos, moradora da baixada fluminense que, depois de duas semanas com sintomas fortes, testou positivo antes de peregrinar por cinco centros de saúde entre UPAs, clínica particular e hospital e que, até o fim da apuração, continuava sentada numa cadeira esperando vaga no hospital de Duque de Caxias. Comparei com todos os cuidados a mim dispensados desde o dia anterior para evitar que contaminasse alguém, mesmo sem confirmação para COVID-19, e estremeci.

NEGATIVO

Por fim, o tampone deu negativo, embora os outros exames tenham resultados compatíveis com a COVID-19. Recusei-me a ficar mais 24 horas naquela tristeza para refazer o teste, assinei termo de responsabilidade pelo isolamento domiciliar de 14 dias. Comprometi-me a entrar em contato imediatamente caso os sintomas evoluíssem, assim como procurar um especialista no dia seguinte para fechar o diagnóstico sugerido pela dispneia e pelas alterações nos exames. Peguei um táxi. Noto que, agora, há uma parede de acrílico nos separando do motorista, só uma janelinha para passar o cartão.

Já no dia seguinte, voltando da consulta com a pneumologista, fui parada pela polícia. Preenchi uma ficha dando fé de que estava indo para casa e só fui liberada sem multa porque tinha um documento da dottoressa alemã que me atendeu registrando a consulta de urgência, com dia e hora. Termômetro na testa, sem febre, pude voltar para casa.

Há dois meses estamos em guerra. Cada detalhe da vida comunitária foi alterado. Roma, hoje, é uma capital calada, sóbria, irreconhecível para quem já pisou na cidade eterna. A ameaça se impôs e nos adaptamos à novas condutas, num cuidado de si pelo outro, na esperança de não adoecer até que uma vacina possa nos imunizar e devolver os abraços, os beijos, nosso prazer em confraternizar. Sabemos que basta a negligência de um de nós para comprometer nosso grupo, nosso bairro, nossa cidade. A luta não acabou, apenas saímos das cordas. Diante da reabertura gradual do país, todos sabemos que o combate à pandemia ainda escreverá outros capítulos antes que possamos estar juntos de novo.



 



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