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Estado de Minas

Coronavírus: e as pessoas que vivem nas ruas, sem isolamento?

A Covid-19 multiplica ameaças para quem vive de caridade em BH. Em abrigo independente, já faltam voluntários. PBH mantém serviços


postado em 21/03/2020 04:00 / atualizado em 21/03/2020 10:58

Maria José e o companheiro, Leonardo Martins: ''Não estou acreditando muito nesse vírus não'', diz ela, que diz ter sintomas de gripe há tempos(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Maria José e o companheiro, Leonardo Martins: ''Não estou acreditando muito nesse vírus não'', diz ela, que diz ter sintomas de gripe há tempos (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

Em todo o país, a doença provocada pelo novo coronavírus, a COVID-19 deixou de ser apenas uma ameaça à rede pública de saúde para se tornar realidade. Enquanto especialistas recomendam o isolamento de pessoas com sintomas de gripe ou de grupos de risco e a limpeza frequente das mãos, vários brasileiros ainda vivem às margens das informações. Num país como o Brasil, onde cerca de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os desafios da pandemia se multiplicam. O Estado de Minas foi às ruas de Belo Horizonte para conversar com alguns dos que não têm nem a garantia de que vão poder comer todo dia e, muito menos, quarto para se isolar.
 
Na área que circunda a Praça da Estação, na Região Central da capital, local que abriga vários moradores de rua, o álcool em gel ainda é confundido com cachaça. “Não estou acreditando muito nesse vírus não”, questiona Maria José, de 47 anos, natural de Londrina, no Paraná, mas que vive nas ruas de BH há muitos anos. Segundos depois, a mulher, que já teve dengue hemorrágica, é interrompida por seu companheiro, Leonardo Martins, de 26,  natural de São Paulo: “Não é assim não. Encaro a situação como de risco, sei que tem que colocar máscara e passar álcool na mão. Mas como que faz? Estou sem minha Bolsa-Família há dois meses e não estou podendo comprar nada, mal dá para comer”, afirma o jovem.
 
Maria então questiona à reportagem quais são os sintomas “desse coronavírus”. Ao ouvir a lista – febre, tosse, dor na garganta e no corpo –, ela responde: “Então acho que estou com isso aí. Faz tempos que me sinto assim”, relata a senhora, que há mais de um ano não tem nenhuma fonte de renda. Mais alguns minutos de conversa e ela se despede: “Esse coronavírus é do diabo, vai na paz do senhor, menino”.


 
Sentada em uma cadeira amarela alguns metros mais à frente está Lúcia Luciamar, de 48. A mulher, que também vive nas ruas da capital, parece um pouco mais informada do que os demais e, inclusive, carrega consigo uma máscara cirúrgica e álcool em gel. “O álcool eu passo o tempo todo, mas a máscara só quando vou tomar banho no abrigo, porque lá tem muita gente e é arriscado”, ressalta.
 
Dona Lúcia se irrita quando o assunto é comida. Isso porque, desde segunda-feira, quando a pandemia realmente tomou os noticiários brasileiros, os voluntários que serviam comida desapareceram. “Tem uma semana que estamos tendo que nos virar, o pessoal está morrendo é de fome. Às vezes conseguimos um pacote de biscoito e é isso que comemos o dia todo”, conta a senhora.

MARMITA Lúcia diz que o restaurante popular ainda é uma das salvações. Mesmo assim, com filas lotadas, às vezes é cansativo e arriscado esperar por comida. Desde quarta-feira, os restaurantes ligados à prefeitura passaram a trabalhar em regime de marmita. Por lá, os preços são de R$ 0,75 para café da manhã, R$ 3 o almoço e R$ 1,50 o jantar.
 

''Tem uma semana que estamos tendo que nos virar, o pessoal está morrendo é de fome. Às vezes conseguimos um pacote de biscoito e é isso que comemos o dia todo''

Lúcia Luciamar, de 48 anos

Além da comida, ela questiona a falta de banheiros públicos. Também desde segunda-feira, estabelecimentos que costumavam liberar a entrada de pessoas em situação de rua fecharam, restando apenas algumas igrejas da capital que oferecem o serviço.
Há também aqueles que preferem acreditar que Deus é o antídoto para o vírus. “Tenho fé em Deus. Queremos comprar máscaras, mas não preciso porque tenho fé naquele lá de cima”, grita Valdélia de Souza, de 47, no meio da Praça da Estação, ao abraçar Flaviano Gomes, que não disse a idade.

SERVIÇOS MANTIDOS De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, há hoje 4,6 mil moradores em situação de rua cadastrados no sistema da administração pública. Para atender a essa população, a capital mineira conta com 11 unidades de acolhimento institucional para adultos e quatro para crianças e adolescentes. Na quinta-feira, a Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania emitiu uma portaria reforçando a permanência desses serviços e anunciando medidas de prevenção à propagação da COVID-19. Entre as medidas adotadas nos abrigos estão a divulgação de informações sobre o vírus, a intensificação da articulação com a rede de saúde local para diagnóstico e tratamento de pessoas acolhidas, além da restrição de visitas.

ABRIGOS INDEPENDENTES O surto de coronavírus também afetou o dia a dia das casas privadas que abrigam dependentes químicos, moradores de rua e enfermos. Localizada no Bairro Funcionários, a Casa do Caminho abriga anualmente mais de mil pessoas em extrema pobreza que vêm do interior de Minas para fazer cirurgias na capital. A maioria dos abrigados são idosos diagnosticados com câncer, cardiopatia, diabetes, lúpus e doenças autoimunes – população que mais está suscetível à contaminação e complicações em relação à pandemia.

''Muitas vezes as pessoas estocam essas mercadorias e falta para a gente que realmente necessita''

Shirley dos Santos, presidente da Casa do Caminho


 
Justamente para evitar essa propagação, funcionários da casa vêm orientando os abrigados a prestar mais atenção às medidas de prevenção. “Estou quase tomando banho de álcool em gel”, brinca Maria Eunice, de 62, natural de Pedra Azul, no Vale do Jequitinhonha, e que vestia máscara durante a entrevista. Fazendo tratamento de câncer há um ano em BH, ela voltaria para a cidade natal em breve, mas foi orientada pelo médico a ficar no abrigo, já que lá não há pessoas próximas que possam ajudá-la caso seja contaminada pelo coronavírus.
 
No entanto, ainda em BH, ela começou a ter problemas desde que a pandemia começou a se espalhar pelo Brasil. Gripada, ela foi impedida de entrar no Hospital das Clínicas, onde faz tratamento quase que diariamente. “Desde sexta-feira passada não posso entrar”, conta.
 
No mesmo abrigo, Geralda Aparecida, de 69 anos, de Virgolândia, cidade próxima a Governador Valadares, se preocupa: “O negócio é sério. A gente já tem problema para resolver e ainda surge esse outro. Um pedaço de sabonete que chega já é grande coisa para a gente”, conta a senhora que sofre de artrose.
 
Além de toda a dificuldade que a instituição enfrenta diariamente, com a pandemia outros problemas apareceram. Por causa do vírus, a casa teve que afastar todos os voluntários, para evitar uma possível propagação, e suspender a chegada de outros pacientes. Um programa que distribuía comida para os sem-teto também foi suspenso.
Além disso, todos os três bazares (única fonte de renda do abrigo e que rendia mais de R$ 50 mil mensalmente) foram fechados para evitar aglomeração, como determinou a administração pública. Em meio ao caos, a presidente da instituição Shirley dos Santos, tenta se virar e pede doações de papel-toalha, papel higiênico, copos descartáveis e álcool em gel. “Muitas vezes as pessoas estocam essas mercadorias e falta para a gente que realmente necessita”, alerta.

Autônomos já sentem efeitos


Quem também foi afetado pela pandemia do novo coronavírus foram os trabalhadores autônomos que lidam com pessoas no dia a dia. Com as medidas de isolamento da população, esses trabalhadores viram seu ganha-pão ir para o ralo por um tempo ainda indeterminado. Com o aumento do número de pessoas contaminadas, a cuidadora de idosos Adriana Sena foi dispensada pela família do senhor de quem tomava conta e está desempregada. “Eles até propuseram eu ficar dormindo lá, mas para mim não dá, porque tenho três crianças em casa”.
 
Além disso, a mulher costumava prestar serviço como faxineira todas as terças-feiras, em uma pequena empresa, mas está com medo de não ser chamada na próxima semana. Com os caos, ela não viu outra alternativa além de anunciar uma correntinha para venda em um grupo no Facebook. Em troca, em vez de dinheiro, Adriana pede comida: “Troco por leite, fruta e biscoito pros meus filhos. Não sei se (a correntinha) é banhada (a ouro)! Preciso muito de ajuda no momento, fui dispensada do emprego, onde fazia freelance", publicou.
 
A depiladora Erica Santos, de 35 anos, também foi afetada. Dona de uma clínica de depilação na Região da Savassi, ela viu sua clientela se reduzir bastante esta semana. “Normalmente, atendo cerca de 40 pessoas por dia, mas já na segunda-feira atendi apenas oito. Naquele dia vi que não dava mais e que ia ter prejuízo. Então parei de atender na segunda mesmo”. Agora, a esteticista está desesperada, porque não tem outra fonte de renda para pagar o aluguel da sala onde funciona o estabelecimento. “Estou totalmente perdida. As clientes que compram o pacote de depilação é que dão estabilidade, mas agora elas têm desaparecido”, conta. (PL)

PANDEMIA DEIXA CENTENAS DE PROSTITUTAS DE BH SEM RENDA E ATÉ MORADIA


*Estagiário sob supervisão da subeditora Rachel Botelho



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