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Estado de Minas

Museu mineiro que abriga o povo de Luzia teve de fechar às pressas

Depois de incêndio que destruiu Museu Nacional, no Rio, unidade de Lagoa Santa que abriga 'parentes' do famoso fóssil que ajudou a recontar a ocupação das Américas é interditado por estar com extintores vencidos


postado em 04/09/2018 06:00 / atualizado em 04/09/2018 10:39

O espeleólogo Luciano Faria próximo à gruta em que foram descobertos os restos de Luzia: futuro das formações naturais também preocupa (foto: Beto Novaes/EM/DA Press)
O espeleólogo Luciano Faria próximo à gruta em que foram descobertos os restos de Luzia: futuro das formações naturais também preocupa (foto: Beto Novaes/EM/DA Press)


As chamas que consumiram o Museu Nacional no Rio de Janeiro, que abrigava o crânio fossilizado de Luzia, deixaram evidente o risco que corre o acervo de fósseis que ajudaram a reescrever a história humana nas Américas. Luzia chegou a ser considerado o mais antigo habitante do continente, com cerca de 11,5 mil anos. Sua descoberta mudou os conceitos das migrações pré-históricas que povoaram a região. Contudo, justamente em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde ocorreu a descoberta, crânios e esqueletos de homens e mulheres integrantes do mesmo povo não podem ser observados pela população, devido ao fechamento para visitação dos museus da Lapinha (Castelinho) e Peter Lund. O último, que recebeu o nome do naturalista dinamarquês que colocou a região na rota da paleontologia e da arqueologia mundiais, fechou as portas ontem. A providência foi tomada após a constatação de que tinha extintores de incêndio vencidos, que precisaram ser removidos, o que sinaliza para o mesmo risco que destruiu o Museu Nacional. O primeiro ainda não tem plano de prevenção de incêndio adequado, e só poderá funcionar quando cumprir essa exigência.



De acordo com o coordenador de unidade de conservação que abriga as unidades, Rinaldo José de Souza, o Museu Peter Lund, criado em 2012 no Parque Estadual do Sumidouro, precisou recolher todos os extintores e enviá-los para uma empresa que faz a manutenção nos equipamentos. Por esse motivo, as instalações foram fechadas à visitação. “Não podemos receber as pessoas aqui até que os extintores tenham sido recarregados. Até lá, o museu ficará interditado. Identificamos que os equipamentos estavam vencidos havia uma semana”, afirmou.

O museu tem uma coleção modesta, embora importante, com fragmentos de animais da megafauna e também de homens de Lagoa Santa, o povo de Luzia. A maior parte desse acervo foi trazida em comodato do Museu de História Natural de Copenhague, na Dinamarca, para onde foram os itens coletados por Peter Lund, em meados do século 19.

Já o Museu Arqueológico da Lapinha (Castelinho) era de propriedade particular e foi incorporado ao estado em junho deste ano, mas ainda não pôde ser aberto, por falta de plano de prevenção contra fogo. O motivo principal é a falta de um sistema adequado de prevenção de incêndio e evacuação. Mas há também um impasse com o acervo, que pertence à família da historiadora Erika Suzanna Bányai. “Ainda não se decidiu se o acervo poderá ser apresentado, se é de propriedade particular ou se pertence ao estado ou à União”, disse o coordenador.

Diferentemente do Museu Peter Lund, o Castelinho tem um acervo riquíssimo. São 1.570 conjuntos que vão desde artefatos indígenas às estrelas da coleção, que são os três crânios fossilizados de homens de Lagoa Santa, todos com mais de 9 mil anos. “A história de Luzia não acabou. Ela está representada nesses fósseis do seu povo, mas que só poderão ser admirados novamente quando o museu reabrir”, disse a curadora do acervo, Erika Suzanna Bányai.

De acordo com ela, os três crânios são atualmente alvo de estudos de pesquisadores europeus e podem ajudar a tornar mais claro como o povo que ocupou Lagoa Santa na época dos tigres-dentes-de-sabre e preguiças-gigantes cruzou o Oceano Pacífico e chegou até Minas Gerais. “Antes da Luzia, não tínhamos arqueologia no Brasil. Ela era a nossa estrela maior. A um custo terrível, que foi o incêndio do museu, espero que sirva para que se valorize e se cuide melhor do nosso patrimônio”, disse Érika Bányai, enquanto se abraça a um busto de Luzia que faz parte do acervo, uma concepção artística inspirada na reconstituição facial feita no crânio nos anos 2000. O artista plástico Arcanjo Ranieri doou o busto para a Prefeitura de Lagoa Santa.

Sobre as providências em relação ao acervo de Lagoa Santa, o secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Germano Vieira, que responde pela pasta à qual está vinculado o Parque do Sumidouro, afirmou ontem que a Semad está alerta para atualizar as regras de segurança em suas unidades. Ele citou como exemplo a troca programada de extintores e a avaliação da sinalização de emergência, além da revisão dos planos de prevenção e combate a incêndios.

As muitas histórias de um tesouro


Quando a jovem morreu, há quase 12 mil anos, aos pés da Caverna da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, sua falta foi sentida pelo seu grupo de caçadores-coletores e ninguém mais. Nem mesmo a redescoberta de seu fóssil, em uma escavação arqueológica franco-brasileira de 1975, trouxe grandes repercussões. Mas, essa que se tornaria uma importante personagem da história mundial renasceu em 1998, quando cientistas conseguiram datar sua morte, tornando-a o mais antigo ser humano das Américas à época.

A descoberta mostrava que uma onda migratória vinda da região da Austrália chegou às Américas antes dos asiáticos que cruzaram o Estreito de Bhering, na Rússia. Foi uma revolução na ciência. A atenção foi tanta que o fóssil dessa mulher, que morreu com cerca de 20 anos, ganhou até nome, sendo batizada como Luzia, numa referência nacional ao fóssil humano mais antigo do mundo, Lucy, uma etíope de 3,5 milhões de anos.

Érika Bányai(foto: Beto Novaes/EM/DA Press)
Érika Bányai (foto: Beto Novaes/EM/DA Press)
Ainda hoje, em Lagoa Santa, a Lapa Vermelha, onde o fóssil foi encontrado, preserva as anotações em francês feitas com giz pelos arqueólogos que encontraram Luzia. Logo acima dessas medições encontram-se várias pinturas rupestres com mais de 8 mil anos. “Uma das formas de medir o tempo é estudando as camadas de argila depositadas em um sítio arqueológico. Luzia, quando foi retirada daqui, estava entre os estratos de 8 mil e os de 12 mil anos”, conta o espeleólogo Luciano Faria, professor do Centro Universitário Newton Paiva.

A Lapa Vermelha abriga vários pássaros em seus orifícios lascados, como maritacas e urubus. As trilhas até o local são bem demarcadas, porém pouco frequentadas, já que o espaço fica dentro de uma área de preservação. Contudo, atividades minerárias na região preocupam o espeleólogo. “Será que vamos permitir que atividades de alto impacto nos tirem também aquela que foi sua casa, um local onde sua cultura se expressava por desenhos e onde ela morreu? Fica essa preocupação”, disse Luciano Faria.

"Antes da Luzia, não tínhamos arqueologia no Brasil. Ela era a nossa estrela maior. A um custo terrível, que foi o incêndio do museu, espero que sirva para que se valorize e se cuide melhor do nosso patrimônio"

Érika Bányai, curadora do acervo do Museu Arqueológico da Lapinha, com uma reconstituição das feições da mulher de 12 mil anos que estava no acervo do museu incendiado no Rio



'Pai' de Luzia: 'É uma mancha para o Brasil'


Rio de Janeiro – “Estou extremamente abalado”, afirmou ontem o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, considerado o pai de Luzia – o fóssil humano mais antigo já encontrado nas Américas, com cerca de 12 mil anos, e que pode ter sido perdido no incêndio do Museu Nacional, no Rio. A reconstituição de suas feições, que ficava em exposição, foi destruída pelas chamas, mas até ontem ainda não havia uma posição oficial sobre o crânio original. “Essa era uma tragédia anunciada; o poder público abandonou completamente o museu há décadas”, afirmou. O antropólogo classificou o incêndio como uma “tragédia para a humanidade”. “E nós teremos de prestar contas disso para a humanidade. Será sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro.”

Coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Neves não foi o responsável pelo resgate do esqueleto, na década de 1970, na região de Lagoa Santa, na Grande BH. Mas, graças a seus estudos foi possível reformular a teoria de ocupação humana nas Américas durante a pré-história.

O modelo postulado por Neves sustenta que o continente americano foi colonizado por duas levas distintas de Homo sapiens, vindas da Ásia. A primeira onda migratória teria ocorrido há pelo menos 14 mil anos e era composta de indivíduos parecidos com Luzia, com traços semelhantes aos dos atuais negros africanos e aborígines australianos. Este grupo, no entanto, não teria deixado descendentes. Uma segunda leva migratória teria chegado há 12 mil anos e seus membros apresentavam um tipo físico característico dos asiáticos, dos quais são descendentes os índios atuais.

"Teremos de prestar contas disso para a Humanidade. Será sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro"

Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da USP, responsável por estudos que, a partir de Luzia, reformularam a teoria da ocupação das américas



Foi Neves quem batizou o fóssil de Luzia – numa alusão a Lucy, um fóssil de australopitecos de 3,2 milhões de anos descoberto no Deserto de Afar, na Etiópia, considerado um dos mais antigos hominídeos de que se tem notícia. Ele se encontra hoje no Museu Nacional, em Adis Abeba. O fóssil, no entanto, é guardado em condições de segurança e apenas uma réplica fica em exposição.

“Para mim, a maior tragédia, de longe, é a perda das coleções”, diz Neves. “Em muitos países, por incrível que pareça até na Etiópia, coleções únicas, como a Luzia, são consideradas questão de Estado: elas são mantidas em situação ideal de preservação e, para estudá-las, é preciso pedir permissão diretamente ao presidente da República.”

Neves frisou, no entanto, que seria “estreito”, da parte dele, salientar somente a perda de Luzia. “A questão das coleções é muito cruel, porque ou você tem ou não vai ter nunca mais”, disse Neves, referindo-se especificamente às coleções egípcias e gregas, as maiores da América Latina, trazidas em parte por Dom João VI, em 1808. “É um material que nunca mais vamos ter. Mesmo que a gente vá escavar nesses países, as leis nacionais não permitem que as peças saiam. Então, nesse caso, nunca mais vamos ter condições de fazer pesquisas sobre Egito e Grécia com base em coleções de museus no Brasil.”

Relíquia de Lagoa Santa pode ter se salvado dentro de cofre


Pesquisadores do Museu Nacional ainda nutriam ontem a esperança de que parte do acervo, justamente algumas das peças mais raras e valiosas, possa ter sido salva do fogo dentro de cofres e armários de aço especiais. Entre essas está o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil, com cerca de 12 mil anos. Eles reconhecem que o trabalho não será fácil, pois o interior do prédio ainda está muito quente e os dois andares superiores desabaram sobre o térreo, formando uma grossa camada de cinzas, carvão, ferros retorcidos e tijolos. “As pessoas foram de manhã tentar achar a Luzia, mas parece que ela estava em uma caixa e tem muito escombro. A gente não sabe se ela resistiu. Tem que haver a perícia, para liberar o prédio e os pesquisadores entrarem de fato e retirar os escombros”, disse a vice-diretora do museu, Cristiana Serejo. Segundo ela, alguns departamentos guardavam peças mais valiosas dentro de cofres, que podem ter resistido às altas temperaturas. O pesquisador Helder de Paula Silva, um dos responsáveis pela coleção de paleontologia, confirmou a informação. “O crânio de Luzia estava em uma região que foi bem atacada pelo fogo, difícil de ser acessada, e não conseguimos localizá-lo”, contou Hélder.


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