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Estado de Minas

Conheça histórias de pessoas que acompanham familiares doentes

"Cuido de quem cuidou de mim", diz Aldelite, há três anos dedicada à mãe, que perdeu a memória. Como ela, um exército vigilante zela por entes queridos enfermos dia e noite


postado em 04/09/2017 06:00 / atualizado em 04/09/2017 07:46

(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Dias e noites de vigília – horas insones para não deixar nada faltar, momentos de tensão se for preciso pedir socorro e o coração sempre aberto diante do inesperado. A vida de quem fica ao lado de familiares doentes ou necessitados de cuidado extremo, em casa ou no hospital, não é das mais leves, embora jovens e adultos mergulhados nessa missão vejam como sublime ato de amor. Em Belo Horizonte, nas cidades metropolitanas e do interior, muitos cumprem o papel com desvelo, relegando a segundo plano seu universo particular e se devotando de corpo e alma a pessoas queridas e carentes de ajuda. “Cuido de quem cuidou de mim”, resume Aldelite Carvalho Amorim, de 45 anos, casada, mãe de um menino e há três anos “por conta” da mãe, Elite Carvalho de Amorim, de 76, diagnosticada com demência, uma doença que altera as funções cognitivas (memória, linguagem, atenção etc.) de forma global.

Moradora do Bairro Água Branca, em Contagem, na Grande BH, Elite tem saúde perfeita e “vai viver muito”, confia Aldelite com firmeza, antes de informar que a mãe precisa de alguém “de olho” nela o tempo todo: “Não pode ficar sozinha em casa. Nunca. Nem mexer no fogão, ficar com a chave da porta. A demência dela é uma doença mais branda do que o Alzheimer, porém o paciente se esquece de tudo; pode deixar o gás da cozinha aberto, por exemplo”. Sem perder o pique, o instante do remédio da mãe e o bom humor para tocar o barco, a filha tem muita história para guardar. “Aqui, somos a Tropa de Elite”, brinca com o título do filme famoso e revela que seu nome resulta da junção das primeiras sílabas de Aldemar, o pai falecido, e as últimas da mãe. “Éramos quatro filhos. Minha irmã Eulana morreu há um ano e meio, ficamos eu, Roberto, que trabalha o dia inteiro, e Fábia, residente em Londres, na Inglaterra, e com um filho autista.”

Aldelite (D), pronta para tudo: 'Aqui somos a tropa de Elite' brinca, mesclando o nome da mãe ao do filme(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Aldelite (D), pronta para tudo: 'Aqui somos a tropa de Elite' brinca, mesclando o nome da mãe ao do filme (foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
O sorriso aberto, de repente, é sombreado por lágrimas sinceras – “choro de saudade, não de dor” –, quando Aldelite se recorda da irmã, vítima de um câncer que desestruturou a família e desencadeou a doença de Elite, obrigada, então, a tomar muitos medicamentos para combater um quadro depressivo. “Minha mãe, pedagoga, sempre morou sozinha, era independente. Uma mulher de espírito conciliador e professora devotada aos alunos. Mas o tempo foi passando e notei que ela se esquecia facilmente das coisas, demandando, portanto, tratamento médico”. Diante da situação, Aldelite, moradora do Bairro Camargos, na Região Noroeste da capital, passou a ficar na casa materna em tempo integral e a gerenciar, num computador instalado na sala, seu negócio como confeiteira e especialista em bolos e docinhos temáticos. “Só não faço salgado”, conta, já refeita, enquanto observa a mãe colorindo um livro de paisagens.

Desgastes físico e emocional são frutos naturais da vigilância permanente, e Aldelite sabe disso de cor e salteado. “O que te move? “, pergunta o repórter. Antes que a filha responda, Elite, até então apenas sorridente na sala de visitas, levanta os olhos do livro, interrompe o diálogo e responde: “Amor”. Os olhos da confeiteira brilham e os lábios se comprimem até completar a palavra. “Amor e muita responsabilidade. Estou sempre presente, me mudei para cá de mala e cuia e avisei ao meu marido, Manassés, que entendeu bem desde o começo. Meu filho, João Gabriel, de 12, também compreendeu e ajuda a cuidar da avó”. Para aliviar a barra, Aldelite tem seu segredos. “Converso muito e sou boa ouvinte. Leio meus livros espíritas, gosto demais de dirigir (carro) e de cantar”.

TODOS OS MOMENTOS Nos hospitais, carinho e atenção andam de braços dados. No corredor da ala de enfermaria, marido e mulher caminham como dois namorados. Passos lentos, olhos nos olhos, tom de voz baixo. “Não disseram que era para ser assim? Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença ...”, argumenta Paulo Alves dos Reis, de 62, mecânico desempregado, que não desgruda da mulher, Marisa Gomes Crispim Reis, de 56, professora aposentada. Há sete anos, ela se submete a um tratamento contra câncer, no Hospital Luxemburgo, unidade do Instituto Mário Penna, na Região Centro-Sul da capital.

Paulo não desgruda de Marisa, em tratamento contra um câncer: 'Temos que ter paciência e coragem' diz ele(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Paulo não desgruda de Marisa, em tratamento contra um câncer: 'Temos que ter paciência e coragem' diz ele (foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Residente em Curvelo, na Região Central, o casal, com quatro filhos e vida em comum de 38 anos, faz viagens constantes a BH para o combate ao tumor cerebral de Marisa. Desta vez, os problemas se complicaram com uma meningite e trombose. “Por isso, temos que caminhar aqui no corredor”, explica Paulo, segurando com firmeza o suporte com as bolsas de soro e medicamento. “Não é fácil, é preciso ter paciência, coragem”, confessa o marido.

Com a voz enfraquecida pelas intervenções, Marisa se declara uma pessoa muito agitada. “Pouca gente tem a paciência que ele tem”, olha com suavidade para o marido. Mais dois passos e Paulo responde que alguém precisa segurar a barra. “Estou desempregado, aí posso ficar por conta dela. Até dou banho. Mas se aparece algum serviço em Curvelo, para ganhar um dinheirinho, os filhos assumem o posto”.

E lá vão os dois pelo corredor, desta vez sem o brilho nos olhos que faz a alegria de muitos casais. Quem passa não deixa de notar a união de Paulo e Marisa que, desta vez, chegaram em 16 de agosto para o tratamento. Agora, é esperar a melhora e voltar para casa.

Pilares da superação


Ao cuidar da irmã que combate um câncer, Fabrícia, de 22 anos, virou, como outros familiares que se dedicam a parentes enfermos, a referência da adolescente no enfrentamento à doença

A tarde começa a esfriar, mas a adolescente Larissa Costa dos Santos, de 16 anos e estudante do 1º ano do ensino médio, não esquenta a cabeça. Diante de uma tigela de açaí com granola e banana, usando short jeans, blusa sem manga e sandália rosa, ela aproveita o fim do dia, numa lanchonete do Bairro Vianópolis, em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). À mesa, estão o irmão Dionei, de 18, a irmã Fabrícia, de 22, e o cunhado Darlivan. Com tranquilidade,  conta parte da sua história, plena de desafios e exigente em coragem. “Em 4 de setembro (hoje), vou fazer a terceira cirurgia no pulmão”, diz Larissa sem alterar o tom da voz e demonstrando que, mesmo num sofrimento extremo, mais vale lutar para superar as adversidades.

Desde o início de seu calvário particular, Larissa tem o apoio da irmã Fabrícia, casada há cinco anos e fiel escudeira. Tudo começou no fim de 2014, quando a garota bonita, então com 14 anos, foi diagnosticada com um câncer ósseo (sarcoma), o que levou à amputação da perna direita na altura do quadril. Não bastasse a perda, teve que se submeter à primeira intervenção no pulmão para retirada de tumor, enquanto a mãe estava internada para tratamento de hanseníase. O destino foi implacável, e um mês depois, os três irmãos ficaram órfãos, já que há muitos anos perderam o contato com o pai.

Fabrícia com a irmã Larissa, em momento de descontração antes de mais uma cirurgia, que será feita hoje(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Fabrícia com a irmã Larissa, em momento de descontração antes de mais uma cirurgia, que será feita hoje (foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
No período de internação da mãe, Larissa foi morar com a irmã, o que fortaleceu os laços fraternos. “Sempre fiquei calma, pois tenho o apoio dela. Me ajuda em tudo”, diz a jovem, olhando para a irmã e explicando que faz o acompanhamento nos hospitais São Francisco (ortopédico) e Luxemburgo/Instituto Mário Penna (oncológico). Em resposta, com um sorriso amoroso e resignado, Fabrícia reflete: “Eu não queria que fosse assim, mas faço o que Deus permitir”. E mais: após a morte da mãe, ganhou uma “filha” no coração e perante a lei, pois se tornou judicialmente tutora dos irmãos. Fabrícia conta que a barra pesou e a família sobreviveu com doações de um supermercado, moradia mantida pela Igreja Católica, por meio dos vicentinos, e apoio da diretoria de Humanização do Instituto Mário Penna, formado pelos hospitais Mário Penna e Luxemburgo e pelas unidades Casa de Apoio Beatriz Ferraz e Núcleo de Ensino e Pesquisa.

Mais uma colherada no açaí e Fabrícia revela que todas as dificuldades se tornam um aprendizado. “São novas experiências”, resume. No período de dificuldades, veio o desemprego do marido Darlivan, que, “felizmente, está trabalhando há três meses”. Larissa ouve os relatos com atenção, só tem a agradecer. E faz planos. Pretende se formar em direito e ganhar a vida, por uns tempos, como modelo. “Quero ajudar as pessoas, assim como sou ajudada”, observa, enquanto alisa a ponta dos fios da peruca pintados de um azul-esverdeado, como os cabelos de muitas meninas da sua idade. “Depois do tratamento, o cabelo cresce novamente”, diz sem preocupação e destaca que o namorado também dá muito apoio.

CUMPLICIDADE “Estar junto no adoecimento de uma pessoa ajuda na superação”, avalia a diretora de Humanização do Instituto Mário Penna, Maria Ângela Ferraz. Filha de Beatriz Ferraz, fundadora da casa de apoio que leva seu nome, Maria Ângela, formada em direito, conheceu esse quadro ao acompanhar por dois anos a enfermidade da mãe, falecida em 2012. “Vivia dentro do hospital, mas não me arrependo. O paciente precisa ter, ao lado, uma pessoa da família, uma referência de apego”, afirma, lembrando que, para não ficar doente também, é fundamental o cuidador ter um propósito.

“A motivação é o amor. E o cuidador nunca pode dar a impressão, para o paciente, de que ele é um fardo”, diz Maria Ângela, que atua estritamente na área de humanização. “Entre o paciente e o cuidador forma-se uma relação de cumplicidade. Isso reduz o desgaste, embora, se necessário, a pessoa deva procurar  auxílio psicológico”,  afirma. Para dar conta do recado, especialistas e cuidadores dão algumas dicas (veja quadro acima).

VIDA EM FAMÍLIA Residente em Pains, na Região Centro-Oeste de Minas, Juliana Costa Pereira, de 37, casada, está ao lado da mãe Hilda Costa Pereira, de 77, que se recupera da cirurgia de retirada do rim e uréter esquerdos, na enfermaria do Hospital das Clínicas. Juliana se emociona ao falar da trajetória iniciada no ano passado. “Aqui tem anjos”, afirma. Ao lado, até então em silêncio, Hilda, que teve alta na terça-feira, dá um sorriso discreto e ensina que “está tudo bem, poderia ser pior”. Ela se refere à outra filha, que perdeu a visão. “Mas ela faz de tudo em casa, cozinha e tem dois filhos, de 14 e 4 anos”, conta. Católica, a moradora de Pains lembra que “Deus é tudo, e a família, unida”. Ao lado, enxugando as lágrimas e aproveitando a deixa, Juliana destaca que é fundamental a família ficar junto e, no hospital, fazer amizades.

Serena, Rosane acompanha o marido, Leonardo: 'Tudo que a gente quer é ficar junto de quem precisa'(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Serena, Rosane acompanha o marido, Leonardo: 'Tudo que a gente quer é ficar junto de quem precisa' (foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Com o terço na mão, Maria do Socorro dos Santos, de 64, está internada há um mês para recuperação de uma prótese no joelho. Ao seu lado, fica a filha Rosiane Aparecida da Rocha, de 41, moradora do Barreiro, em BH e mãe de duas filhas, de 21 e 7. “A caçula sente muita falta de mim, mas mãe é mãe, né?”, comenta Rosiane. “Conto com a compreensão do meu marido Wellington, meu braço direito”, afirma.

Rosiane revela momentos de tensão na hora de aplicação de soros e medicamentos. “Com o tempo, ‘vai perdendo a veia’, aí é uma dificuldade”. Ouvindo a conversa, Maria do Socorro garante: “Deus provê. E a veia aparece”. E, sem perder o humor, garante que, com o nome que tem, em qualquer emergência é só gritar: “Help!” (socorro em inglês).

Na véspera do seu aniversário, 25 de agosto, Leonardo  Antunes, de 49, morador do Bairro Londrina, em Santa Luzia, na RMBH, tinha ao lado a mulher Rosane Antunes, de 52. Vítima desde 2015 de um tumor no esôfago e internado no Hospital Luxemburgo devido a uma pneumonia, ele ganha cuidados redobrados da mulher. “Estou afastada do trabalho nestes dias para ficar com ele. Tudo o que a gente quer é ficar junto de quem precisa”, diz.

Palavra de especialista


Hellen Karlla de Campos, psicóloga

Responsabilidade, zelo e confiança

“Cuidado envolve responsabilidade, identificação com a pessoa em estado de dependência e adaptação sensível às necessidades dela. De maneira geral, é importante que o cuidador seja confiável e capaz de se colocar no lugar do outro. Confiabilidade é fundamental, pois vai mediar a relação; e significa pensar numa pessoa que se preocupa com a outra, com as necessidades dela e que se envolve com essa posição sem senso de superioridade. Quem cuida deve ser capaz de suportar as reações e afetos negativos que, por ventura, venham da pessoa em estado de fragilidade, sem se vingar dela. Não se deve romantizar o cuidado, pois um cuidador suficientemente bom também vai cometer falhas; assumir as tarefas não implica esforço sobre-humano para não haver nada errado. Nessa atividade, as falhas também são importantes, pois sinalizam humanidade. O que configura uma situação delicada é quando há falhas repetidas e um descuido da pessoa para reparar sua falta. O zelo em reparar uma falta mostra a quem está em situação de fragilidade que alguém se preocupa com ela.”

Juliana (D) se emociona ao falar sobre a mãe, Hilda, e as relações no hospital: 'Aqui tem anjos'(foto: Túlio Santos/EM/DA Press)
Juliana (D) se emociona ao falar sobre a mãe, Hilda, e as relações no hospital: 'Aqui tem anjos' (foto: Túlio Santos/EM/DA Press)


PARA DAR CONTA DO RECADO


>> Se for possível, faça um revezamento com outros familiares que se deem bem com o paciente

>> Tire um tempo para você mesmo. Fique um tempo com a família, namore, passeie, cuide da casa, enfim, curta também alguns momentos do dia a dia

>> Se gostar de rezar, reze. Se a ideia é cantar, cante. O importante é aliviar as tensões, pode ser até dirigindo o carro neste trânsito maluco

>> Não encare o hospital, clínica ou casa do paciente como território inimigo ou local apenas de tensões. Faça amizades com outros cuidadores, se possível forme grupo em rede social, enfim, socialize. O clima ficará mais leve

>> Havendo necessidade, busque auxílio psicológico. Vários hospitais oferecem esse serviço especializado

>> Leitura também é bom para aliviar tensões, assim como ir ao cinema numa folga, ver tevê, almoçar fora. Estar ao lado do doente, para o cuidador, é essencial, mas, enquanto ele descansa... que tal fazer planos?

>> É importante que o cuidador identifique atividades que lhe são prazerosas, e alimente projetos e desejos. Cuidar é uma função e não uma forma de anular outros papéis do indivíduo e as relações interpessoais


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