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Estado de Minas

Baleiro rebobina o tempo e relembra o Cine Santa Tereza

Aos 78 anos, o aposentado Hugo Rodrigues da Cruz fala da infância como vendedor de balas no Cine Santa Tereza, que reabre as portas amanhã, e sobre o nascimento de sua paixão pela sétima arte


postado em 25/04/2016 06:00 / atualizado em 25/04/2016 11:51

Na sala do Santa Tereza preparada para a reabertura, Hugo da Cruz recorda sua aproximação com o cinema, espreitado pelo menino baleiro e desvendado pelo adolescente anos depois(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press )
Na sala do Santa Tereza preparada para a reabertura, Hugo da Cruz recorda sua aproximação com o cinema, espreitado pelo menino baleiro e desvendado pelo adolescente anos depois (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press )
A ilusão do cinema sempre fascinou a vida real do belo-horizontino Hugo Rodrigues da Cruz, de 78 anos, morador do Bairro Dom Cabral, na Região Noroeste da capital. E as mais doces lembranças do amor pela sétima arte vêm da infância, lá por volta dos 11, 12 anos, quando ele foi baleiro na porta do Cine Santa Tereza, no bairro de mesmo nome, na Região Leste. Foi um dos pioneiros, com certeza. Além das balas tradicionais e de goma, dos caramelos, bombons, pirulitos e drops, o menino de calças curtas vendia no tabuleiro o torrão, confeito de doce de leite, sucesso absoluto de crítica e público, principalmente o infantil. “Era uma delícia, todo mundo comprava”, conta ele, com uma pontinha de saudade, diante do prédio da Praça Duque de Caxias, que será reaberto na terça-feira com o nome de MIS Cine Santa Tereza, por ser vinculado ao Museu da Imagem e do Som (MIS) da Fundação Municipal de Cultura/Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).


Perto da bilheteria, onde costumava ficar a postos de segunda a sexta-feira, à noite, e muitas vezes nos fins de semana, Hugo nota as mudanças que o prédio projetado pelo arquiteto italiano Raffaello Berti (1900-1972) e inaugurado em 1944 sofreu ao longo do tempo. “O bairro também...não reconheço o Santa Tereza onde nasci, na Rua Mármore, e cresci com muitos amigos. Era bairro de compadres, todos se conheciam. Houve descaracterização, o que não me agrada”, revela, com pesar. Depois de passar pela entrada principal da construção recém-restaurada, ele nota a diferença: a sala de exibição, hoje na parte superior, ficava no andar de baixo e era maior. As transformações, no entanto, não decepcionam e servem, sim, para ativar a memória: “O cinema vivia lotado. Naquela época, fim da década de 1940, início dos anos 1950, não existia televisão, então a tela grande era a diversão na cidade. E o povo comparecia mesmo”. Com os olhos brilhantes e posando para a foto com uma bandeja cheia de guloseimas, confessa: “Claro que eu também me divertia vendendo balas!”

Como estava sempre com o tabuleiro que pesava 10 quilos, o menino baleiro de família numerosa, o mais velho de 12 irmãos, não podia se dar ao prazer de assistir aos filmes, contentando-se com os letreiros na fachada, os cartazes nos cavaletes e a movimentação constante nas filas, com destaque para os casais de namorados fãs de drops. “Não dava tempo, o trabalho era duro. Só quando deixei a atividade, já adolescente, é que pude entrar e assistir”, recorda-se. Mas assim que enxergou, no escurinho do cinema, a luz se transformando em imagens, Hugo entendeu o que eram, de verdade, ação e emoção. Em minutos, a vida real ficava lá fora, e, diante dos olhos maravilhados, as balas de açúcar viravam de revólver e ricocheteavam no disparo de mocinhos e bandidos. No meio do tiroteio, o índio pele-vermelha, coitado, passava aperto no “Velho Oeste”.

E foi desse jeito que o recém-aposentado, casado há 50 anos com Lucília Maciel Cruz e pai de três filhas, se tornou admirador de Randolph Scott (1898-1987), astro dos bangue-bangues nas décadas de 1940 e 1950, acompanhou o drama romântico Casablanca, estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, conheceu a marca do Zorro e pulou na cadeira – “que era de madeira”, ressalta – com as aventuras do Capitão Marvel. Quando tocava o prefixo, um sinal retumbante de que a fita estava para começar, e as luzes se apagavam, Hugo entrava no universo, que terminava em letras The End.

Novos tempos, novos olhares. “Já não vou tanto ao cinema, mas não perdi o hábito, pois tenho mais de 200 DVSs em casa. A televisão de 48 polegadas virou meu cinema particular”, informa.

PURA NECESSIDADE O mundo era outro, Belo Horizonte, então, nem se fala, observa Hugo: “Era uma cidade sem violência, só tinha mesmo ladrão de galinha. A gente podia caminhar até a Lagoinha, sem susto, andava por todo canto. Eu ia e voltava para casa, sem o menor perigo”. Agora pensativo, ele conta que a necessidade o levou a trabalhar tão novo. “Não tive infância. Com tantos irmãos, precisava ajudar em casa, e o jeito foi ser baleiro. Entregava o dinheiro todo para minha mãe, Levina, e a quantia dava para a verdura da semana. Como eu era revendedor, devia anotar e pagar ao patrão até uma bala consumida. Vendia para ‘seu’ Antônio, da Floresta, e ‘seu’ Francisco, daqui do bairro.” Além do Cine Santa Tereza, o menino também foi baleiro no Cine Acaiaca, na Avenida Afonso Pena, e no aeroporto da Pampulha, “onde se chegava de bonde”.

Filho do militar João Vermelho da Cruz, que servia no 5º Batalhão da Polícia Militar e atuou como técnico dos times de futebol Santa Tereza e América, Hugo guarda outras boas recordações do cinema do bairro. “Na época, era cine e teatro, então artistas de renome se apresentavam ali, entre eles Sílvio Caldas (1908-1998), Nélson Gonçalves (1919-1998), Orlando Silva (1915-1978) e Vicente Celestino (1894-1968).” Sobre o último cantor, de quem havia visto o filme O ébrio, ele traz à tona uma cena memorável. “Vicente Celestino veio fazer um show aqui. Só que ele bebeu demais no bar da esquina, ‘encharcou a caveira’, como se dizia, e fez o maior barulho, tarde da noite. Vi tudo de perto.”

Olhando ao redor do cinema, Hugo explica que a Praça Duque de Caxias era completamente diferente. A Igreja de Santa Tereza, por exemplo, dava entrada pela Rua Eurita. Do lado, pontificavam os bares do Espíndola e do Geninho. “A vida já foi mais doce, antes se vivia melhor. Andávamos muito a pé. Hoje tem gente demais obesa e muitos dissabores. Trabalhar cedo demais nunca foi problema para mim.”

VIGOR Quem se encontra com Hugo, pela primeira vez, custa a crer que ele está perto dos 80 anos. Bem disposto, de memória prodigiosa e em boa forma, o ex-baleiro revela o segredo: caminha todos os dias e faz hidroginástica. Já na sala de casa, no Bairro Dom Cabral, fica satisfeito ao mostrar a foto do pai, de farda, de quem guarda fiel orgulho. Depois de deixar o tabuleiro, Hugo deu à vida novos rumos. Durante 10 anos, trabalhou numa empresa de capitalização, ingressando depois numa firma de construção civil, na qual ficou 50 anos, a maior parte no setor de compras. “Eu me aposentei e continuei trabalhando.” Só deixou o batente em setembro do ano passado. No finalzinho da conversa, outro lado da história. O homem católico faz questão de dizer que ajudou o padre Pedro Souza Pinto (Pedrinho) na construção da Igreja do Bom Pastor, perto de sua casa. “Ela está completando 50 anos este mês”, comemora.


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