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Estado de Minas

Normas estaduais poderiam salvar o Rio Doce

Se normas estaduais fossem aplicadas ao Rio Doce, cujo controle é em nível federal, manancial teria ao menos um ponto de alerta, último estágio antes da restrição de uso


postado em 13/07/2015 11:00 / atualizado em 13/07/2015 11:04

Dona Maria Quinta, com a neta Ingrid, lamenta a baixa vazão no encontro dos rios Piranga e Carmo, em Rio Doce: filho morreu ao mergulhar no local e bater a cabeça em alguma ponta(foto: Leandro Couri/EM/DA Press)
Dona Maria Quinta, com a neta Ingrid, lamenta a baixa vazão no encontro dos rios Piranga e Carmo, em Rio Doce: filho morreu ao mergulhar no local e bater a cabeça em alguma ponta (foto: Leandro Couri/EM/DA Press)

Ponte Nova e Rio Doce  – Se as regras estipuladas pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) para o uso dos rios de Minas Gerais fossem aplicadas ao curso do próprio Rio Doce, cujo controle é feito em nível federal pela Agência Nacional de Águas (ANA), em pelo menos um ponto do manancial a situação seria de alerta, último estágio antes da restrição de uso. A conclusão está no Acompanhamento da Estiagem na Região Sudeste do Brasil, documento produzido mensalmente pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), e mostra que a média das vazões de junho na Estação Cenibra do Rio Doce, entre Ipatinga e Naque, no Vale do Rio Doce, ficou abaixo da Q7,10 desse ponto, caracterizada como o menor valor observado em sete dias consecutivos nos últimos 10 anos. Porém, como o Rio Doce é um curso d’água federal, pois corta Minas e Espírito Santo, não existe a necessidade de se restringir o uso caso as vazões fiquem abaixo de 70% do valor da Q7,10, como ocorre nos mananciais monitorados pelo Igam.


Além da baixa constatada em Ipatinga, o Estado de Minas mostrou ontem que a falta de água impede que o rio alcance o mar por seu caminho natural, no Espírito Santo. A soma de agressões como desmatamento, assoreamento e despejo de esgoto sem tratamento ao longo dos mais de 86 mil quilômetros quadrados drenados pela bacia, dos quais 86% em Minas, criou um cenário que torna o Rio Doce um dos mananciais mais degradados do estado. Na cabeceira, moradores também reclamam da diminuição do nível, o que mostra que as vazões estão reduzidas em todo o segmento. A queda na quantidade de chuvas que vem se repetindo há pelo menos três anos ajuda a reforçar os efeitos da destruição ambiental nas áreas banhadas pela bacia.


No relatório de junho do CPRM constam informações de 40 estações indicadoras, sendo três no Rio Doce: uma entre Ipatinga e Naque, no Vale do Rio Doce, outra em Governador Valadares, na mesma região, e a última em Colatina, já no Espírito Santo. Nos terminais de Valadares e Colatina, o monitoramento apontou vazões médias de junho deste ano entre 100% e 200% da Q7,10 de seus respectivos pontos, o suficiente para enquadrá-los no estado de atenção, caso fossem seguidas também no rio federal as normas estaduais. Para o professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nilo Nascimento, a situação registrada pelo CPRM na calha do Rio Doce sugere que é necessário uma gestão para a situação de crise que pode ser semelhante ao que já é adotado pelo Igam. “Estamos chegando ao meio do período seco e as coisas tendem a se agravar, já que não temos chuvas até outubro”, afirma.
O professor Carlos Barreira Martinez, que coordena o Centro de Pesquisas em Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da UFMG, lembra que é necessário estabelecer uma política de outorgas que privilegie o uso da água beneficiando todos os usuários, visando diminuir o impacto ambiental. “O grande problema é que os corpos técnicos, muitas vezes competentes, enfrentam ingerências políticas que não contribuem para resolver os problemas devidamente de forma técnica e observamos todos os impactos”, analisa.


MERGULHO SEM VOLTA
O parâmetro de comparação da quantidade de água disponível no ponto onde se forma o Rio Doce, no município de mesmo nome, na Zona da Mata mineira, é motivo de tristeza para a dona de casa Maria Quinta de Souza Guedes, de 64 anos. Há 16 anos, no local onde os rios Piranga, o primeiro do estado a entrar em alerta pela baixa vazão, e do Carmo se encontram, formando o curso d’água que já não tem mais força para chegar ao mar do Espírito Santo, ela perdeu um dos cinco filhos. Ele era acostumado a mergulhar em um ponto onde hoje a água bate na altura da canela. “Ele mergulhava e ficava muito tempo debaixo d’água. Até que nesse dia achei muito estranho, pois ele não subia. De repente, apareceu com um ferimento na cabeça, porque deve ter batido em alguma ponta, e já não estava mais vivo”, diz dona Maria. Esse é o marco que faz com ela afirme categoricamente: “Hoje não temos mais quase nada de água perto do que eu já vi nesse lugar”, diz.


Com a pequena Ingrid, de 2 anos, nos braços, ela teme que a neta não veja mais o mesmo volume de água que já correu naquele ponto, ligando o alerta da crise hídrica na porta de casa. O relato de dona Maria, que mora em uma propriedade bem perto de onde começa a correr o Rio Doce, deixa claro que a situação enfrentada pelo manancial em sua foz, no Espírito Santo, não é um fato completamente diferente do que ocorre onde ele se forma. “Com pouca água no rio fica difícil até para furar cisterna. Tenho uma em casa, mas não estou usando, porque pode queimar a bomba graças ao barro acumulado no lugar da água. Só enche um pouco quando chove e o rio aumenta”, diz dona Maria.

MONITORAMENTO
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), a bacia hidrográfica do Rio Doce é uma das bacias nas quais a ANA tem atuado com ações de monitoramento, financiamento de estações de tratamento de esgotos, apoio institucional ao funcionamento do Comitê da Bacia e de sua agência de bacia, o Instituto Bioatlântica (IBIO). “As vazões predominantes neste ano estão muito próximas das verificadas no ano passado e são também muito próximas das vazões mínimas dos nossos registros históricos. Não se pode atribuir as baixas vazões apenas à degradação da bacia hidrográfica. Passamos por um biênio em que os registros de chuvas e de vazões mostram-se bastante inferiores às médias históricas”, diz o especialista em recursos hídricos da ANA, Ney Murtha.

Falta água, sobra esgoto

Além de também sofrer com a falta de água que se espalha por toda a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, o ponto em que o curso d’água se forma recebe o esgoto carregado pelos seus dois formadores: o Rio Piranga e o Rio do Carmo. O Piranga, cuja bacia drena a área de 77 municípios, recebe resíduos generalizados, que chegam a assustar pelo tamanho da agressão ao meio ambiente. Em Ponte Nova, último centro urbano antes da formação do Rio Doce, as manilhas despejam o esgoto dos 57 mil moradores 24 horas por dia sem tratamento adequado.

Em abril do ano passado, em série de reportagens sobre a situação das nascentes dos rios mineiros, o Estado de Minas mostrou que o Rio Doce já nascia com 5.172% de coliformes termotolerantes acima do limite permitido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A degradação ambiental do Piranga também contribui para a perda do volume que chega ao Doce, graças ao assoreamento. No lugar de uma vegetação capaz de proteger o manancial, é possível ver lixo, e os muros de casas, que são construídas quase no leito, em Ponte Nova. A variedade de canos e manilhas é grande, todos expelindo um líquido de aparência viscosa. O esgoto deixa a água com a cor verde e piora ainda mais a qualidade em um momento de escassez, pois se mistura em uma quantidade menor do recurso hídrico, o que dificulta a depuração, segundo o biólogo e especialista em recursos hídricos, Rafael Resck.

“O retrato geral do Rio Doce pode ser analisado na região onde ele começa a correr. Não podemos querer que um rio que sofre tantos problemas desde o seu início chegue naturalmente à sua foz. É muito esgoto urbano e industrial despejado, captações desconhecidas dos órgãos públicos e mineração ao longo de toda a bacia”, afirma o especialista.

Segundo o diretor do Departamento Municipal de Água, Esgoto e Saneamento de Ponte Nova, Guilherme Resende Tavares, o município já concluiu o seu plano municipal de saneamento e está elaborando o projeto da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) do município. Ele estima que em dois anos já seja possível tratar pelo menos parte do esgoto. A capacidade será de 192 litros por segundo, o que excede a demanda da cidade. O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Piranga (CBH/Piranga), Carlos Eduardo Silva, diz que das 77 cidades da bacia, 56 foram escolhidas para elaboração dos planos de saneamento e 30 já tiveram seus planos concluídos.

IRRIGAÇÃO
Segundo o secretário-executivo do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH/Doce), Luiz Cláudio Figueiredo, os investimentos em saneamento somam R$ 21 milhões, fruto da cobrança pelo uso da água na bacia. Dos 228 municípios em toda a área de Minas e Espírito Santo, 156 estão incluídos para elaboração dos planos e todos devem concluir os estudos até o fim do ano. Além disso, Figueiredo cita o investimento de R$ 2 milhões para a aquisição de 240 irrigâmetros, equipamentos desenvolvidos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) para otimizar o processo de irrigação ao longo da bacia.

Por fim, o edital de um programa de recuperação de nascentes e áreas de proteção permanente está sendo elaborado, cujo objetivo é escolher uma empresa para desenvolver as ações necessárias para melhorar a recarga do sistema hídrico nesses locais. “Essas ações são referentes ao quadriênio de 2012 a 2015. Nesse segundo semestre começarão as discussões para a aplicação de recursos nos próximos quatro anos e certamente a questão da escassez será a principal norteadora”, afirma o secretário.

DEGRADAÇÃO DA CABECEIRA À FOZ Publicada ontem e hoje pelo Estado de Minas, a série Amarga Agonia mostrou que o Rio Doce deixou de correr na foz original e de desaguar no Atlântico pela primeira vez na história. As reportagens relataram ainda a devastação estimulada pela impunidade no entorno da bacia e que nascentes e cursos que alimentam o manancial dependem de conservação.


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