
Voltando ao caso, o garoto que tomou os remédios controlados foi encontrado quase desmaiado pela coordenadora do abrigo, Selma Silva Soares, sendo socorrido imediatamente pela ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Ele nem precisou ficar internado, pois confessou ter ingerido uma ou duas das cápsulas para aliviar a tristeza. Dormiu dois dias inteiros. Neste e nos outros abrigos, os internos são olhados por educadores, assistente social e técnicos, que se revezam 24 horas.
COTIDIANO DIFÍCIL O triste episódio deixou visivelmente desorientada a coordenadora do abrigo. No dia seguinte, Selma mandou instalar fechaduras e cadeados em todos os armários da instituição de acolhimento. “Nosso cotidiano é assim. Os meninos têm momentos de revolta, mas também momentos de afeto”, conta. Como se pudesse ouvir atrás das paredes, o interno José* (nome fictício) bate à porta e pede licença para entrar.
Nas mãos, José traz uma rosa branca colhida no jardim, que oferece à coordenadora sem dizer nada. José é tímido. Selma se emociona e abraça o menino, demoradamente. Escondida do garoto, vai às lágrimas. “José é pequeno para saber que, de acordo com a doutrina espírita, a rosa branca simboliza renovação de energia. Era tudo o que eu precisava hoje para dar continuidade ao trabalho. Às vezes, bate o desânimo”, desabafa a mulher, que imediatamente passa a contar a história do garoto José, que é de cortar o coração.
Aos 7 anos, ele foi para o primeiro abrigo. Agora, aos 12 anos, está deixando de comer e de dormir com a proximidade do Natal, como forma de sensibilizar uma prima a tomar a decisão de adotá-lo. Embora seja jovem, ela é a única parente que restou da família dele, após a morte da mãe. Os seis irmãos já estão adotados. José chegou a ser acolhido em uma família com o irmão caçula, mas abriu mão da adoção para um futuro melhor para o irmão. “Eu vi que não ia dar para nós dois, que eu estava ocupando o espaço dele”, conta o menino, com simplicidade. Ele calcula que o irmão, de quem nunca mais teve notícias, deve estar agora com cinco ou seis anos.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
. Marcos Padula
. Juiz titular da Vara da Infância e da Juventude de BH
Por que ainda existem tantas crianças nos abrigos?
A nova Lei da Adoção modificou a nomenclatura do abrigo para acolhimento institucional, mas a medida continua sendo aplicada apenas em caráter excepcional, quando a família não adere aos programas estruturais de auxílio. Infelizmente, o abrigo não consegue dar o retorno afetivo às crianças. Algumas enfrentam melhor a situação, mas as mais sensíveis desenvolvem quadros de agressividade ou depressão.
Qual foi a principal mudança da nova lei?
A nova lei também diferenciou o acolhimento institucional do familiar, em que uma família recebe a criança provisoriamente até que se defina sua situação. Infelizmente, esse programa ainda não decolou, pois depende de regulamentação na Câmara uma ajuda de custo para a família substituta ou guardiã. O fato é que 98% das crianças estão acolhidas em instituições e não em famílias acolhedoras.
Há esperança para as crianças acolhidas?
Os brasileiros já têm adotado crianças de até 6, 7 anos de idade. Houve uma melhora em relação há 10 anos, quando a preferência era para crianças entre 3 e 4 anos. Se a criança ultrapassar os 9 anos, dificilmente será adotada, a não ser que um padrinho ou madrinha se afeiçoe a ela, mas é uma exceção. Pelo menos o apadrinhamento de Natal e ano-novo é de quase 100%. Faltam crianças para tanta gente interessada.
