
Na época em que a aposentada Maria Augusta Maciel Orlandi, de 68 anos, tirou carteira de habilitação, o trânsito em Belo Horizonte era bem diferente do corre-corre que se desenha atualmente nas vias da capital. O ano era 1975 e o primogênito, Bruno Orlandi, tinha pouco mais de 1 ano. Vieram os outros filhos, Ludmila e Igor. Foi aí que Maria Augusta realmente teve que dividir as horas do dia para levar a prole à escola, fazer compras de supermercado, ir ao pediatra com as crianças e cumprir as tarefas diárias. Todos os trajetos eram feitos de carro.
Era com a antiga Brasília verde, o primeiro de vários carros que teve, que Maria Augusta cortava a cidade levando os filhos. Hoje não dirige mais. Há cinco anos aposentou a carteira de motorista e, mesmo com as chaves do carro penduradas, manteve por quatro anos na garagem o Honda Civic, que só foi vendido no ano passado. Relutava na venda porque tinha esperanças de voltar a dirigir, mas não se sente mais segura ao volante. “Hoje o trânsito está muito complicado. A cada vez que saio de casa tem mais carro e mais motos na rua. E mais medo dá”, conta.
A decisão de Maria Augusta veio no momento em que começou a tomar medicamentos para depressão, que poderiam interferir em seus reflexos. Mas, para o idoso, qual é a hora de parar de dirigir? Especialistas afirmam que o tempo de abrir mão do volante não está relacionado com a idade, mas sim com a saúde do motorista. “A idade não deve ser uma regra geral. A hora de parar pode ser desde os 18 anos, quando o condutor acabou de se habilitar, até o fim da vida. Depende das condições físicas e psíquicas do motorista, especialmente nas categorias profissionais”, explica o médico perito examinador do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) Domingos Lage.
Para ter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) renovada, no entanto, o idoso deve cumprir pré-requisitos que vão da avaliação oftalmológica, neurológica, psiquiátrica e do aparelho locomotor, incluindo averiguar a aptidão do condutor para as categorias de A a E. Os critérios são analisados porque o motorista deve estar atento aos sons do seu próprio veículo e dos demais, aos sons do ambiente urbano, das buzinas e às motocicletas. Com pouca acuidade visual, ele pode correr riscos no trânsito e representar perigo para outros motoristas e pedestres. “A visibilidade no trânsito é importante na identificação das placas, na orientação espacial, no cuidado com bicicletas e faixas, na definição e contraste claro-escuro, para dirigir à noite, quando há neblina, especialmente em vias movimentadas e estradas”, alerta o médico.
COMPLICAÇÕES SÃO ALERTA
Mas o momento certo de abandonar a direção vem precedido de sinais, conforme explica o especialista. “Quando a pessoa começa a ter complicações visuais, auditivas e motoras, ela deve procurar atendimento médico para certificar-se de que está bem para continuar ativa no trânsito”, diz. Doenças como diabetes, problemas cardiovasculares, mal de Parkinson e pressão alta, quando descontroladas, podem acelerar o fim da carreira ao volante. Mas tudo depende da forma como a enfermidade é tratada. “Se o quadro do paciente está sob controle e ele não apresenta comprometimento dos sentidos, da coordenação motora e das faculdade psíquicas, não há restrições”, acrescenta Domingos Lage.
Ele diz ainda que, mesmo diante de alguma complicação, o condutor pode se manter apto, mas com restrições, ou ter somente um rebaixamento de categoria na habilitação. “A avaliação médica é fundamental para ajudar o paciente e a família na tomada de decisões. E o que vai comprovar a aptidão é a avaliação do médico perito do órgão de trânsito no momento da renovação”, explica. E, mesmo se a pessoa receber o laudo de inapto da clínica credenciada, ela pode pedir uma avaliação do Detran, segundo Lage.
No caso do aposentado Edson Jardim, de 78 anos, não foi necessário laudo médico para atestar a impossibilidade de continuar dirigindo. Depois de mais de 30 anos ao volante, ele teve a sábia atitude de entregar o Santana que dirigia e as chaves do veículo aos filhos. Chegou a fazer uma cirurgia de catarata para resolver um problema no olho direito, mas sem sucesso. “Mesmo com toda a tecnologia do procedimento, passei a enxergar menos. E percebi que eu, que sempre dirigi bem, estava perdendo a noção espacial e fiquei inseguro para continuar no trânsito”, lamenta.
O aposentado conta que já não conseguia ter a real noção de distância dos carros ao seu redor e teve medo de colocar não só a sua vida em risco, mas também a de outras pessoas que porventura pudesse atingir caso se envolvesse em um acidente. “Naquela época, chamei meus dois filhos e os avisei que a partir daquele dia não dirigiria mais. Foi uma questão de responsabilidade”, reflete.

Carro prova independência
A dificuldade de pendurar as chaves e se desfazer do carro que foi um xodó por muito anos está ligada ao símbolo de poder e status que o veículo tem, bem como à autonomia no ir e vir. É o que defendem especialistas que lidam com idosos, que muitas vezes já enfrentam dificuldades para continuarem ativos no trânsito, mas insistem em manter o pé no acelerador. “A carteira de motorista tem um peso muito grande para o cidadão. É símbolo de independência, de locomoção. Retirar esse documento é uma perda brutal”, diz o médico perito avaliador do Detran Domingos Lage.
O especialista explica que muitos idosos que renovam suas carteiras já adotam no cotidiano trajetos menores, como a ida à padaria ou ao supermercado. Há ainda aqueles que mantêm o carro na garagem por anos, como Valdir Gonçalves, de 84 anos, pai da aposentada Vera Gonçalves, de 62. “Há quase um ano ele deixou de dirigir por questões de saúde, mas todos os dias leva a chave na ignição e liga o Opala, mesmo sem tirá-lo da garagem”, diz Vera sobre o pai. Os sinais de que Valdir não deveria mais se arriscar ao volante vieram há seis anos, mas ainda assim ele se negou a parar de dirigir. “Ele passou a não observar as faixas de trânsito e bateu o carro duas vezes.” Vera diz que em três anos pretende abandonar a direção e andar somente de táxi. “Já sinto algumas limitações e não estou mais tão segura. Não dirijo em pirambeiras, não procuro vaga que tenha que fazer manobra e evito sair na chuva. Não quero mais esse estresse do trânsito.”
Embora o fim da carreira de motorista seja uma situação difícil de lidar, o presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção Minas Gerais, Rodrigo Ribeiro dos Santos, alerta que o vínculo com o veículo deve ser quebrado quando se tratar de segurança no trânsito. “Muitas vezes, é complicado convencer um familiar idoso a parar de dirigir porque ele vê o carro como símbolo de independência em seus deslocamentos. Parar pode ser um atestado de que ele está ficando dependente”, destaca. No entanto, afirma Santos, ainda que seja difícil admitir, é mais prudente não dirigir e romper com essa simbologia do que colocar a vida dele e de outras pessoas em risco. “A participação da família é fundamental nesse processo”, lembra.
ATIVOS Por outro lado, há quem esteja ainda firme na direção. Depois de 50 anos de habilitação, o aposentado Geraldo Augusto de Lima, de 72, dirige diariamente, inclusive em rodovias. “Só não faço mais viagens de longa distância, porque prefiro ir de avião. Mas para viagens curtas dirijo sem problema”, afirma ele, garantido estar cheio de saúde. Na lembrança, ele coleciona mais de 30 carros de várias marcas e modelos. No futuro, ainda se vê muito ativo para continuar dirigindo. “O trânsito hoje é bem diferente daquele de quando eu comecei a dirigir, mas não vejo problema. Me adaptei bem às mudanças e ao crescimento da frota de carros e motos.”
Memória
Batida causa apagão
Em 30 de setembro, um idoso de 70 anos se envolveu em um acidente e derrubou um poste, que caiu sobre a cobertura de um posto de gasolina, depois de ficar momentaneamente “cego”, no Bairro Padre Eustáquio, Região Noroeste de Belo Horizonte. A batida foi na Via Expressa, no sentido Contagem, por onde o aposentado trafegava em seu Ford Ka. À polícia, o idoso disse que sofre de glaucoma (lesão no nervo óptico) e que teve uma perda de visão momentânea. O motorista saiu ileso da batida, mas, com a queda do poste, parte do bairro ficou sem energia durante uma parcela do dia.
Fique atento
1 – Ao aparecimento de doenças sensoriais: males como a presbiacusia (perda auditiva ligada ao envelhecimento) e a presbiopia, perda visual, podem comprometer a direção defensiva e aumentar as chances de acidentes.
2 – Ao comprometimento da cognição: o idoso deve ter a capacidade de pensar, tomar decisões e mecanismos de memória preservados para dirigir.
3 – Às restrições motoras: não só a agilidade mental, mas as respostas motoras devem ser rápidas no trânsito. Movimentos de braços, pernas e cabeça devem ser bons, bem como a força dos membros superiores e inferiores.
4 – À ocorrência de quase acidentes: se situações como o quase bateu, quase atropelou, fez uma conversão raspando o meio-fio são frequentes, é um alerta sobre a habilidade e condição de o idoso se manter ativo no trânsito.
5 – À falsa sensação de segurança: o idoso percebe que não pode mais dirigir em rodovias ou em áreas movimentadas, mas continua dirigindo na vizinhança. Estudos internacionais mostram que idosos se acidentam mais perto de casa, de dia, em baixa velocidade, sem beber e convergindo à esquerda.
6 – À necessidade de ter um copiloto: quando o condutor não enxerga ou ouve mal e decide andar com uma pessoa que está com os sentidos em perfeito estado, é um sinal de alerta.
7 – Ao uso de medicação que interfere nos sentidos: idosos com doenças crônicas, psiquiátricas ou depressão podem usar remédios que alteram reflexos e devem parar de dirigir durante o tratamento.
8 – Qualquer alteração física ou psíquica deve ser avaliada com o médico.
Fonte: Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção Minas Gerais