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Estado de Minas ENTREVISTA

'Acho a figura humana instigante', diz artista sobre pintar rostos e corpos

Leonora Weissmann lança livro sobre sua vida e obra e exposição com pinturas inéditas, muitas produzidas na pandemia


23/10/2022 04:00 - atualizado 24/10/2022 10:52

Leonora Weissmann
Leonora Weissmann (foto: Estúdio Like/Divulgação)
 
“Este é o momento mais importante de tudo o que vivi nas artes plásticas”, resume Leonora Weissmann, 40 anos, que já tem 25 de carreira.

A artista plástica belo-horizontina não esconde a felicidade em ver sua vida e obra estampadas nas páginas do livro “Estranho mundo próximo”. Diz que foi angustiante, mas, ao mesmo tempo, maravilhoso rever sua trajetória.


Com um trabalho marcado por autorretratos, Leonora está acostumada a se enxergar profundamente. Mas seu olhar não se volta apenas para o espelho.
 
Fascinada pela figura humana, ela leva para os quadros pessoas, rostos e corpos diversos. Além do livro, acaba de ser lançada a exposição “Desmanche – verbocorpopintura”, na AM Galeria, com pinturas inéditas. Muitas foram produzidas na pandemia.

Durante o isolamento, Leonora produziu vorazmente. Nada muito diferente do que acontece em dias “normais”. Ela não sabe se é paixão, necessidade, fuga, obsessão ou tudo junto. Mas sabe que a vida sem arte não tem a menor graça.
 
Você é filha de artistas. Em que ambiente foi criada?
Sou filha da Selma Weissmann e do Manoel Serpa. A minha mãe era professora da Escola Guignard e o meu pai, da Belas Artes (UFMG). O meu tio-avô, Franz Weissmann, um dos fundadores da Guignard, era escultor, tinha um avô músico, então a família quase inteira era de artistas. Desde pequena, estive muito envolvida com artes plásticas e música. A minha casa era um ateliê enorme, um ambiente vivo, ativo, onde meus pais estavam sempre produzindo. Era tudo muito mágico. Costumo falar que praticamente me formei na Guignard, quando criança. Ia todas as noites com a minha mãe para a escola, preferia ir do que ficar em casa. Achava aquela Guignard, que ficava no porão do Palácio das Artes, um lugar mágico demais. Visitava exposições, brincava no Parque Municipal. Gostava de ver meus pais pintando. Quando ia com o meu pai para a Belas Artes, ficava alucinada de ver os professores dando aula. Já me sentia artista plástica. Tinha prazer em ir, hoje vejo que era uma necessidade.

Então, o caminho das artes foi muito natural para você?
Fui meio do contra. Falei que não precisava me formar, que já tinha convivido com aquilo tudo a infância inteira e resolvi fazer medicina. Fiz vestibular na primeira vez em que teve o Enem. As minhas notas foram baixas e, quando vi que não ia passar, fiz Belas Artes para passar o tempo enquanto estudava para tentar de novo medicina. Acabei amando. Achei que o curso não seria útil, que já tinha aprendido tudo em casa, mas muito pelo contrário. Aprendi demais, vivi novos desafios, conheci professores com outros olhares.

Você riscou a medicina da sua vida?
Sempre achei a profissão maravilhosa, ajudar as pessoas, salvar vidas, mas não ia dar certo nunca. A arte tem essa função também, claro que por outro ponto de vista. Já gostava de gente, mas não era para fazer cirurgia. Acabei me tornando uma pintora de retratos. O que mais gosto é da figura humana e isso, de certa forma, tem a ver com um pouco de anatomia.

O que entrou primeiro na sua vida: a pintura ou a música?
As artes plásticas vieram antes, mas sempre gostei de cantar e ouvir música. Os meus pais tinham um apuro musical muito grande e me apresentaram desde cedo grandes compositores. Vivia em um ambiente rico musicalmente. O meu pai era filho de músico. Como me sentia muito sozinha, estava sempre com muitos adultos e não conhecia artistas da minha idade, fui fazer aula de violão clássico e a minha turma acabou sendo da música. O pessoal falava que eu cantava bem, era super afinada, aí fiz uma banda, a Quebra Pedra, por causa de uma música de Tom Jobim. Acabei me casando com um músico, o Rafael Martini, e a minha vida se dividiu entre cantar, tocar e viajar para tocar. Sempre tive gosto pela música popular brasileira. Cantei em uma orquestra e depois lancei um disco solo. Depois que tive meus dois filhos, comecei a ficar extremamente sobrecarregada e as artes plásticas preponderaram. Financeiramente tinha mais retorno, mas acho que as artes plásticas estão muito mais dentro de mim. Faz tempo que não canto nem me apresento, a música está guardada. Penso em voltar, mas de uma forma mais experimental. Gravar músicas bem específicas de compositores amigos. Não para rodar, fazer turnê. Falo que sou uma artista plástica que canta. Até pretendo fazer um trabalho em que consiga usar voz e imagem juntas, mas ainda não consegui.
 
Você se considera uma multiartista?
Acho que sim. Faço ilustração, design, às vezes trabalho com fotografia, escrevo letras de músicas. Estou sempre fazendo projetos gráficos de capas de discos, muitos com desenhos meus. Já fiz tantos, para gente importante e para amigos. Um dos últimos foi para a Mônica Salmaso. Faço também ilustrações para livros de literatura. A arte vem a calhar para mim pelo desafio, de ter projetos novos. Não sou muito de rotina, de coisa repetitiva. Cada projeto vem com um desafio novo e isso me motiva muito.

Seus quadros têm muito do realismo da fotografia. Como ela influencia o seu trabalho?
Adoro a conversa entre a fotografia e a pintura. Existe a velha história de que a pintura iria perder o sentido com a chegada da fotografia, mas isso não aconteceu. Inclusive, tem um teórico que fala que a pintura devorou a fotografia. Acredito que a pintura se apropriou do que a fotografia trouxe de inovação e se renovou. Me formei em gravura e pintura e fiz várias disciplinas de fotografia. O meu pai era fotógrafo e tenho certa familiaridade com câmeras. Estou sempre fotografando tudo. Agora com celular, então, vou registrando os lugares, as pessoas, pensando naquilo que pode me gerar uma pintura. Uma luz bonita, uma cor. Tenho um acervo grande de fotos que podem ser pontos de partida. Nem todas as minhas pinturas partem de fotografias, mas muitas sim. Está cada vez raro ter um modelo posando ao vivo, mas às vezes acontece.

Por que você se interessa tanto pelas pessoas?
Acho que é um tema infinito, um dos únicos que não me cansa. Acho a figura humana instigante e provocativa e, ao longo do tempo, percebo que está sempre se transformando a forma como abordo os rostos e corpos. Não tem fórmula. Cada pessoa ou ponto de vista a partir do modelo muda a própria pintura. Tenho esse fascínio por figuras humanas desde criança. Sempre gostei de desenhar pessoas, corpos e rostos. Acho que comecei a aprender a pintar me desenhando, então de alguma forma isso permanece e foi uma escola. Já gostava, fui fazendo e continuo até hoje. A minha mãe é uma excelente retratista. Pinta figuras desde que me entendo por gente. Os rostos que ela faz não partem necessariamente de observação. Como tem memória muito boa, ela inventa rostos. É uma caricaturista maravilhosa. Acho muito mais inventiva do que eu, porque não se prende ao que está vendo. Desde pequena, ver isso me fascinou. Ao mesmo tempo, os retratos que ela pintava em casa sempre me amedrontaram. Tinha medo de que ficassem me encarando, então nem passava perto. Acho que o ser humano é tudo isso, maravilhosamente assustador. Algo familiar, mas estranho.

Corpos nus ainda são um tabu na nossa sociedade. Quando você coloca isso em evidência nos seus quadros, pensa em chocar ou causar incômodo?
Incomodar, nunca. Até estranho quando penso que alguém pode se incomodar. Para mim, isso é muito natural. Nesta exposição, tem quadros com corpos nus, deitados, estão com uma certa fadiga, relaxados, mas não tem erotismo explícito, não é nem um pouco pornográfico, é sutil. Às vezes, pode ser muito mais erótica uma figura vestida do que nua. Entendo que o corpo é a paisagem do homem. Se a pessoa estiver vestida, vou pintar a roupa. Pintar o corpo inteiro, com a pele, a carne exposta é um desafio completamente diferente. Acho muito bonita essa ideia da representação da carne e muito coerente com a pintura. Me atrai muito. Confesso que tinha problema com o nu, não tinha muita coragem de fazer. Só tive coragem depois que meu pai faleceu, há 15 anos. Morria de vergonha de pensar no que ele acharia. Isso tem a ver com o machismo estrutural. Por mais que fosse um grande artista, poderia achar apelativo. Só consegui quebrar isso depois que ele faleceu, aí comecei a me pintar nua. Coincidentemente, foi quando tive o meu primeiro filho. Engravidei três anos depois e senti uma necessidade imensa de fazer um retrato nua com o meu filho. Você perde certos pudores e vergonhas. Virar mãe é tão visceral que a natureza grita dentro da gente de forma violenta. Mudei muito depois dos meus filhos. Tenho um de 11 anos e outro de 8.

De onde vem essa sua vontade de fazer autorretratos?
Tinha vergonha de pintar na frente dos outros, ainda mais dos meus pais artistas, existia uma certa cobrança. Então, ficava no quarto praticando. É sempre um desafio se pintar. Vejo pelos meus alunos. Tem uma potência se encarar, principalmente no espelho, ficar se olhando profundamente. Atualmente, faço muito autorretratos por foto, facilita. Na pandemia, fiz uma série em que pintava um autorretrato por dia. Uns não gostava e rasgava, outros eram foto, mas tinha que sair de algum jeito. Fiz vários me olhando no espelho. Acho muito fascinante me ver. Para mim é puro prazer. Difícil, mas sempre prazeroso.

O que o autorretrato significa para você?
Atualmente, tenho visto pelo contrário, é uma perda de si. Como se você fosse se desmanchando e se perdesse ali. Por mais que os meus quadros sejam realistas, você vê que sou eu, mas sou tantas, não tem uma imagem que me define. Acho muito interessante essa questão de se transformar em outra coisa, de se desmanchar, no sentido de virar uma imagem. Quase todos os pintores que pintavam figuras humanas fizeram, em algum momento, um autorretrato, o que fala de vaidade e impermanência. A história da pintura e do retrato está ligada com a consciência da morte. Descobri isso muito tempo depois. Sou muito da prática, depois vou descobrindo na teoria a explicação das coisas. Fui vendo que o meu fascínio pelo rosto, pela imagem tem a ver também com esse medo e essa angústia em relação à morte.

Como surgiu a ideia do livro e da exposição?
A exposição foi um convite da Angela Martins, da AM Galeria, onde estou desde os 15 anos. A última tinha sido em 2018. Como ia ter o lançamento do livro “Estranho mundo próximo”, que ficou pronto depois de quatro anos, ela teve a ideia de fazer uma exposição especial. Já o livro veio de um convite de uma editora do Rio de Janeiro, Barléu, e ficou muito lindo. Mostra as minhas pinturas, com um recorte, claro, mas generoso. Agnaldo Farias, crítico e teórico de arte, um dos que mais respeito e admiro, se aprofundou muito na minha história, de forma generosa e afetiva. Demorou dois anos para escrever. Foi uma imensa alegria. Quando ganhei um prêmio, há 20 anos, ele veio falar comigo e disse que acompanhava meu trabalho. Então, tinha que ser ele. O texto ficou surpreendente para mim. Ele pontua coisas que eu nem imaginava e virou um amigo. Estou muito feliz. Este é o momento mais importante de tudo o que vivi nas artes plásticas. Foi angustiante, mas ao mesmo tempo maravilhoso me ver. O livro é um autorretrato. Demorei para conseguir abrir o livro. Senti um misto de medo, por causa da cobrança, que é muito grande, e expectativa do que ia acontecer. É algo muito emocionante.

Você falou que este é o momento mais importante da sua carreira como artista. Como descreve o que está vivendo?
É um momento muito intenso e bem caótico, com muitos caminhos que se apresentam. Às vezes, fico desorientada, com a sensação de que estou enlouquecendo. Se pensar em tudo ao mesmo tempo, não faço nada. Mas acho que é um caos muito produtivo, bem fértil. Tenho produzido muito. Na pandemia, produzi demais e 90% está na exposição. Alguns amigos travaram, mas, quando estou angustiada e melancólica, meu remédio é produzir. Fiz muitos retratos de amigos nus que me mandavam fotos. Outros fui fotografar, de máscara, voltei para casa e pintei. Curiosamente, não eram figuras na floresta, comecei a pintar figuras dentro de casa, ou no máximo em um jardim. Tem tudo a ver com o isolamento.

O que você sente revendo sua história?
Sinto que era o único caminho mesmo. Sou muito visceral. Tem gente que fala: nossa, você produz demais, não para. Não sei se é necessidade, uma paixão muito grande, ao mesmo tempo uma obsessão. Parece que, se não estiver fazendo arte, lendo coisas que me alimentam e me instigam, não tem a menor graça. Sou completamente viciada. Na pandemia, desenhei tanto que fiz uma série enquanto brincava com os meus filhos. Comprei madeirinhas, peguei um guache azul maravilhoso que trouxe da Europa e fiquei desenhando. Sinto uma fome impressionante de pintar. Quem convive comigo sabe que sempre estive desenhando, tendo ideias, planos. Estou sempre com um bloquinho, anotando. Não sei se é fuga, necessidade ou obsessão. Quando vou para a praia, levo bloquinho, aquarela, caneta nanquim e sempre volto cheia de desenhos, fotografias, ideias. Até de viagem de férias volto cheia de imagens para pintar. Trabalha muito obsessivamente, muito mais de quem tem horário fixo. Não paro. É um misto de prazer e trabalho. Então, lendo o livro, vejo que era um caminho natural, ainda bem. Apesar de não ser fácil, angustiante, bem estressante, de não ter retorno financeiro. Por isso, dou aulas, faço projetos gráficos, ilustrações, cenários, vou me desdobrando.

O que quer para o seu futuro?
Quero continuar com esse desejo de produzir, de aprender novas técnicas, de ter novos desafios. Sou muito inquieta e, quando uma coisa começa a ficar mais fácil ou repetitiva, quero novidade, algo que me traga desafios novos, que me surpreenda. Rotina para mim é entediante. Gosto de me estranhar com o que estou fazendo. Clarice Lispector fala que o que mais gosta que escreveu é o que parece que não foi ela que escreveu. Isso me define bem. Espero continuar me surpreendendo, vivendo coisas que não estou esperando. 

Serviço

Desmanche – verbocorpopintura na AM Galeria
Até 30 de novembro
De segunda a sexta, das 10h às 19h; aos sábados, das 10h às 14h
Rua do Ouro, 136, Serra
Entrada gratuita
Informações no site e no Instagram 


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