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Estado de Minas ESPECIAL

O reencontro de Nicole Rose

Depois de viver uma jornada de autoaceitação, dentro e fora dos gramados, ela se tornou a primeira atleta transexual a competir profissionalmente em Minas


15/10/2023 04:00 - atualizado 15/10/2023 00:07
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Nicole Rose
Depois de se refazer internamente, Nicole conseguiu realizar o sonho de jogar futebol, que alimentava desde criança (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A)


Com o nome já escrito na história do futebol feminino, Nicole Rose é a primeira mulher trans a competir profissionalmente em Minas Gerais. A trajetória não tem tom de superação, mas sim de resistência, reconhecimento e ‘missão cumprida’. A atacante buscou a própria identidade em meio a dificuldades e falta de apoio e apostou alto para chegar onde está.

O caminho traçado por Nicole no futebol não é uma linha reta e contraria as estatísticas da comunidade, que muitas vezes é marginalizada. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população tem a prostituição como fonte de renda no Brasil. Além disso, 0,02% está na universidade, 72% não tem o ensino médio e 56% o ensino fundamental.

Apesar das curvas, tropeços, impedimentos e outros percalços, Nicole chegou ao Campeonato Mineiro Feminino e pode dar como concluída uma de suas metas. Há alguns anos, ela achou que o sonho de estar em campo não fosse possível. Foi o incentivo da esposa que reacendeu a vontade e a busca pelo desejo. Então, ela encontrou no Nacional de Visconde do Rio Branco, a pouco mais de 260km da capital mineira, a chance de viver do esporte e orgulhar a filha.

O início dessa história se parece com o de muitas outras. Nicole começou a jogar futebol criança, aos seis anos, na cidade natal, Belo Horizonte. Surgia ali o sonho de se tornar profissional e o pontapé para a busca por chances melhores em outros times. Em paralelo, o não entendimento com a identidade. Na época, informações sobre a transexualidade não eram tão disponíveis como hoje, e conversar sobre o tema era tabu ainda maior. Mas Nicole já sabia que havia algo diferente. “Com 12 anos já me identificava como uma criança diferente das outras. Não sabia ainda o que era. Não havia rede social, muita informação ou amigos LGBTs para conversar.”

Com a angústia de não entender o que se passava internamente, outro esporte entrou na jogada: o tênis. A prática do esporte individual, no entanto, não adiantou muito, e Nicole voltou para o campo. A ‘coroação’ com o primeiro contrato profissional veio aos 20 anos. “Com 14, voltei para a base, treinando forte para recuperar o tempo perdido e chegar ao profissional. Com 20, cheguei ao profissional para disputar minha primeira partida, nessa época ainda no masculino”, lembra.

Mas o sonho foi interrompido por uma lesão. Como se pudesse tirar da dor e da frustração algo de positivo, Nicole aproveitou o tempo em recuperação para, novamente, direcionar energia e reflexão a uma parte da vida que ainda a machucava. “Foi um momento de muita reflexão, porque consegui pensar nas minhas questões pessoais, pensar em quem eu era”, diz.

Seu corpo estava ganhando formas masculinas. Então, resolveu romper com o futebol para se libertar e ir em busca, talvez, de um novo sonho: encontrar e assumir a mulher que sempre existiu dentro dela. “Visualizei uma vida muito triste para mim, não sabia nem se ia dar conta de levar. Resolvi encerrar a carreira. Não que eu quisesse, mas me assumi como mulher trans e sabia o que isso significava, que era a perda do meu sonho de jogar futebol. Assumi a consequência. Fiquei mais de 11 anos sem chutar uma bola.”

A TRANSIÇÃO

O processo de transição não foi fácil. Virou a vida de Nicole de cabeça para baixo: “Quando resolvi me assumir de fato, foi um divisor de águas, muito marcante. Chamei minha família para conversar e explicar que iria me assumir para a sociedade. Ninguém entendeu nada. Precisei sair de casa, para me conhecer e me entender como mulher”.

Nicole teve que refazer contatos e encontrou apoio na comunidade LGBTQIAP+. Veio também a necessidade de buscar amparo médico. “Meu mundo foi para um lado, e eu fui para outro. Fui viver uma vida completamente ao avesso. Virei uma pessoa totalmente sozinha. Fui fazer novos amigos, conversar com pessoas iguais a mim para entender o que precisava fazer, tanto em questões hormonais como sociais.”

Nicole conta que precisou se reinventar: “Sempre tive estabilidade familiar, e naquele momento estava sozinha. Era o que a maioria das meninas trans sofriam. Tentei encarar de forma mais natural. ‘Vou ter que me refazer como ser humano’, pensei”.


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