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Estado de Minas

Redação do Enem traz à tona as dificuldades dos deficientes auditivos nas salas de aula

Rede estadual vai implantar curso técnico para formação de intérpretes de Libras. Educadores reforçam que nem mesmo faculdades públicas e privadas oferecem curso de formação de intérpretes


postado em 07/11/2017 06:00 / atualizado em 07/11/2017 08:20

Anne e Wesley, alunos do ensino médio da Escola Estadual Maurício Murgel, conversam em Libras(foto: Ramon Lisboa/EM/DA Press)
Anne e Wesley, alunos do ensino médio da Escola Estadual Maurício Murgel, conversam em Libras (foto: Ramon Lisboa/EM/DA Press)
O assunto da vez nas escolas de todo o país ontem foi um só: o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Para alguns, a discussão girou em torno da surpresa ou não em relação ao tema “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Para outros, foi uma forma de escancarar a existência de um grupo que também está nas salas de aula, convivendo com o desafio cotidiano da inclusão. No dia seguinte à avaliação, deficientes se sentiram lembrados e, finalmente, com esperança da implantação de políticas públicas capazes de integrá-los plenamente ao sistema educacional. A rede estadual de educação vai implantar curso técnico para fomentar a formação de profissionais em língua brasileira de sinais (Libras).

Dos 1,6 mil alunos da Escola Estadual Maurício Murgel, no Bairro Nova Suíça, na Região Oeste de Belo Horizonte, 43 são surdos. Eles estão distribuídos em quatro turmas, do 1º ao 3º ano do ensino médio. Nas turmas mistas, há cerca de 28 estudantes sem deficiência na audição e 10 a 12 sem capacidade de ouvir. Nessas turmas, há presença constante de uma intérprete de Libras, responsável pela comunicação entre professores e alunos e deles com os colegas. Aluna do 1º ano, Anne Rocha Marotta, de 17 anos, estudava numa escola especializada, que fechou ano passado. Ela conta que interage mais com os colegas surdos e que, no início, teve um pouco de medo, pois se sentia sozinha. Mas, agora, está totalmente integrada. “Acho importante estudar o fundamental numa escola especial e o nível médio numa classe mista, para me acostumar com os alunos ouvintes e com o mercado de trabalho”, diz.

O colega dela Wesley Klismann Ferreira Valério, também de 17, começou a vida escolar numa escola comum, mas logo passou para a especializada. “Não tinha intérprete nem interação com outros alunos”, lembra. Ele reclama que falta acessibilidade em algumas instituições: “Fiz um curso de computação durante um ano e nunca teve intérprete. Falta acessibilidade e sensibilidade”.

Intérprete da escola, a pedagoga Elisete Aparecida Rocha Gomes diz que, apesar dos desafios, historicamente é preciso ressaltar as melhoras na educação dos surdos. “O grande desafio hoje é humano: ter profissionais qualificados e capazes de entender que é preciso haver um método para esses alunos. Não há curso de formação de intérprete e não há libras na UFMG nem na PUC. Um curso de 40 horas num semestre não é suficiente para aprender nem o alfabeto”, diz, se referindo à legislação que determina a Libras como componente curricular obrigatório nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de fonoaudiologia, de instituições de ensino públicas e privadas, do sistema federal de ensino.

Há 10 anos, a Maurício Murgel oferece um curso de Libras, liderado por um professor surdo que ensina a toda a comunidade escolar interessada. “O tema do Enem não me surpreendeu, porque é assunto que está atrelado ao nosso cotidiano e passa despercebido por aqueles que não querem vê-lo”, afirma a diretora do colégio, Sônia Marinho Amaral de Resende. “Hoje (ontem), o Brasil acordou diferente, pensando nesse tema tão próximo a cada um de nós. Penso que boas ações e políticas educacionais serão implementadas num futuro próximo, pois, quando um assunto gera reflexão, gera também boas ações futuras.”

Otávio superou dificuldades e virou mecânico(foto: Arquivo pessoal)
Otávio superou dificuldades e virou mecânico (foto: Arquivo pessoal)
Quem também acredita nessas mudanças é o advogado José Maurício Massara, 56, pai do jovem Otávio Dumba Massara, de 23, que nasceu surdo depois de a mãe contrair rubéola na gravidez. Ele se orgulha do filho, que se tornou autodidata em mecânica de tratores. Há quatro anos, o rapaz começou a consertar os equipamentos na fazenda do pai, dos vizinhos e dos familiares, sem nunca ter estudado mecânica ou algo parecido. O primeiro maquinário foi um trator que havia sido roubado e que foi recuperado pela polícia. Motor, caixa, pintura e parte elétrica. Nada é difícil demais para Otávio.

Uma volta no veículo é suficiente para identificar o problema. A partir daí, Otávio compra o catálogo, desmonta tudo e pede na empresa, pela numeração, as peças que estão estragadas. “Ele percebe o problema pela vibração do trator. Com carro é igual”, explica José Maurício. Otávio se formou no ensino médio na Maurício Murgel, mas não quis prosseguir os estudos. “Ele fala que é difícil. Não é todo lugar que tem intérprete. Muitas vezes, o professor não tem a bondade de saber se o aluno surdo está entendendo ou não. E é assim na vida cotidiana. O refúgio dele foi ir para a roça e trabalhar lá.”

“Desde pequeno comecei a falar em Libras. Completei o 3º ano, apesar de todas as dificuldades”, afirma Otávio. Ele conta que a mudança de colégio foi difícil. A escola do ensino médio era muito boa, mas os professores e alunos não sabem libras, se o intérprete faltava não conseguíamos entender nada. Ficávamos esperando a aula acabar sem compreender o que o professor falava.”

Para Sônia Marinho, há três grandes desafios. O primeiro são as escolas públicas ou particulares abrirem as portas para a inclusão e acreditar que todo ser humano tem um potencial capaz de remover barreiras, independentemente de uma obrigação legal. O segundo são os educadores perceberem que todos são capazes de aprender, desde que se respeite o tempo de cada um. E o terceiro é abrir o mercado de trabalho. “Esses desafios têm a ver com questões nobres, que são solidariedade e compaixão. A partir daí, nos tornamos seres humanos melhores.”

INVESTIMENTO
Minas Gerais deve contar, ano que vem, com um curso técnico de tradutor intérprete de língua brasileira de sinais (Libras) na rede estadual de ensino. A nova modalidade visa suprir a demanda crescente por esses profissionais e amenizar a dificuldade de contratação em alguns municípios do interior do estado. A Secretaria de Estado de Educação (SEE) informou que o curso ainda está em processo de formatação para definir as unidades que vão ofertar as aulas e número de vagas.

De acordo com dados do Censo Escolar 2016, a rede estadual de ensino conta com 2.996 alunos com deficiência auditiva. São 1.530 surdos, 1.455 com deficiência auditiva parcial e 11 surdos-cegos. Em Belo Horizonte, há 398 alunos, sendo que 259 são surdos, 138 com deficiência auditiva parcial e 1 surdo-cego. Atualmente, cerca de 1,3 mil tradutores intérpretes de Libras atuam nas escolas estaduais mineiras, segundo a SEE.

Ela informou que mantém o funcionamento de cinco Centros de Apoio à Pessoa com Surdez/CAS estaduais (Montes Claros, Belo Horizonte, Diamantina, Uberaba e Varginha) e dois núcleos de capacitação na área (Januária e Governador Valadares), que são responsáveis pela capacitação de professores e tradutores intérpretes de Libras, além da orientação pedagógica para a educação de surdos na rede estadual de ensino.


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