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Estado de Minas INTERNACIONAL

Dupla paternidade: criança argentina tem uma mãe e dois pais registrados

Processo ocorreu em agosto de 2021, mas se popularizou recentemente; juíza responsável pelo caso utilizou trechos de Harry Potter em carta direcionada à criança


25/04/2022 17:03 - atualizado 25/04/2022 17:53

A imagem mostra duas mãos suspensas. Uma mão de criança pousa sobre uma mão adulta.
Criança argentina recebe tripla filiação com dupla paternidade (foto: Juan Pablo Serrano Arenas/Pexels)

 
Em agosto de 2021, um homem entrou com um processo em Salta, cidade localizada ao norte da Argentina, exigindo que fosse reconhecido como verdadeiro pai de uma criança. O menor - identificado apenas como P. -, que havia perdido a mãe pouco tempo antes, teria sido fruto de um relacionamento antigo da mulher, mas foi registrado como filho do parceiro mais recente.

A mulher, que morava há cerca de um ano com o ele, sem o conhecimento deste, teria entrado em contato com o ex-parceiro para dizer que acreditava que o filho era dele. Um teste de DNA, revelou que, de fato, o homem registrado como pai da criança em documento não era seu pai biológico.


Passado pouco tempo após a descoberta, a mulher morreu e o ex-parceiro compareceu ao tribunal exigindo ser admitido como o verdadeiro pai da criança. Na ocasião, pedia que o reconhecimento paterno do outro homem fosse anulado e entregue a ele. O pai socioafetivo - que não é biológico, mas cuidou da criança como se fosse - ficou em choque com a situação.

"Imagine o estado de desespero daquele homem. Achei que ele não viria para a segunda audiência", comentou a juíza do caso, Ana María Carriquiry, que também é chefe do Tribunal de Família em Salta, em entrevista à BBC News. Ela também conta que se comoveu com a atitude do homem, que ao invés de adotar uma postura combativa, pediu para que continuasse sendo o pai da criança legalmente, não importando onde ficaria seu sobrenome no nome da criança.

"[Ele] falou com firmeza, com amor, com uma renúncia... esse homem deu aulas sobre o amor e o que é ser pai", explicou a juíza, que apoiou o pedido e permitiu a possibilidade de a criança ter uma tríplice filiação. Apesar de não ser algo reconhecido no Código Civil argentino, existem precedentes no país e no exterior, o que facilitou a aceitação sobre a decisão.

Amor verdadeiro

O pai biológico, após uma relutância inicial, acabou acatando a decisão após a convocação de P. para uma audiência. "Quando eu deixei a criança entrar, ele se abraçou fortemente a seu único pai para ele, seu pai socioafetivo. E lá todo mundo ficou em silêncio", explicou Ana María Carriquiry.

"Apesar de não falar, ele se expressou. Sem dizer nada, ele falou alto. Com sua linguagem corporal, ele não deixou dúvidas de que tirá-lo de lá estava causando um prejuízo real, porque ele já havia sofrido com a perda recente de sua mãe.", completou.

Para a juíza, a ação dos dois homens foi louvável, pois colocaram seu orgulho de lado pela felicidade do menino. “Foi um sinal de amor verdadeiro”, diz ela.

A decisão final foi dada e ambos os pais concordaram que P. continuará morando com o pai adotivo e se relacionará esporadicamente com o pai biológico, que auxiliará com os custos para sustentar o menor.

"Temos que começar a abrir caminhos, porque para mim as relações socioafetivas determinam a vida das pessoas e a lei. Não pode ser que continuemos com um direito de sangue", diz Carriquiry sobre sua decisão, que rebate o artigo do Código Civil que limita a paternidade a apenas duas pessoas (mãe e pai).

Carta para P.

Carriquiry também determinou que os homens têm a obrigação de contar ao menino a verdade sobre sua situação quando for mais velho e maduro o suficiente, além de anexar à sentença uma carta que escreveu para que P. leia quando chegar a uma idade mais avançada. No texto, ela faz referência à franquia de livros Harry Potter, da autora britânica J. K. Rowling.

 

Leia o trecho na íntegra:


"Sobre sua mãe, que infelizmente não está mais conosco, quero deixar a frase que Albus Dumbledore disse ao pequeno Harry Potter.

Um amor tão poderoso como o que sua mãe teve por você é algo que deixa marcas. Não uma cicatriz, ou qualquer outro sinal visível... ter sido amado tão profundamente, mesmo que aquela pessoa que nos amou não esteja aqui, fornece proteção que dura para sempre.

Além de sua mãe, você tem dois pais. Como isso pode ser possível? Também por amor. Ambos te amam igualmente e são seus pais.

Às vezes, você tem que decidir entre o pai biológico ou o pai socioafetivo. Nesse caso, eu não tinha nada para decidir, porque eles tinham certeza da importância que o outro tinha na sua vida.

Por isso, a única coisa que fiz, P., foi reconhecer o direito que você tem de ter dois pais que te criem, cuidem de você. Porque, no fundo, a única coisa que importa é multiplicar o amor.

Espero que você esteja muito feliz e sempre orgulhoso de sua mãe e dos pais que a vida lhe deu."

Dupla paternidade no Brasil

Apesar de a decisão ter sido uma exceção sobre a determinação de paternidade que costa no Código Civil da Argentina, casos de dupla paternidade - e dupla maternidade - têm ganhado mais relevância nos últimos anos. Os processos envolvem, majoritariamente, casais homoafetivos que concebem filhos através de fertilização in vitro, mas casos como os de P. também se fazem presentes.

Em 2021, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) manteve uma sentença sobre um caso parecido, em que a mãe da criança saiu de um relacionamento já grávida e, em seguida, se casou com outro parceiro, que registrou o bebê com seu sobrenome. Na ocasião, a decisão final também foi manter os nomes do pai biológico e do socioafetivo.

Entretanto, foi ainda em 2016 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a dupla paternidade, atestando que a paternidade socioafetiva não afasta o reconhecimento do vínculo biológico. Na decisão, também se reconhece que pais biológicos e socioafetivos possuem as mesmas obrigações para com o filho.


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