
Coronel José Dias (PI) – À mesa do almoço, são contadas muitas histórias do sertão: lembranças de pessoas, segredos das plantas, casos de antigamente, costumes dos bichos, mistérios das montanhas e, de forma apaixonada, sobre a vastidão da caatinga, que, em tempos de chuva ou seca, parece um grande espelho da cultura regional. Estou em Coronel José Dias, no Sudeste do Piauí, porta principal de acesso ao Parque Nacional Serra da Capivara, o magnífico conjunto de formações rochosas reconhecido como Patrimônio Mundial e onde se encontra o maior conjunto de pinturas rupestres do planeta.
“Fico bem aos pés da Serra da Capivara. Aqui de casa, dá até para ver a onça”, brinca a moradora da comunidade Sítio do Mocó, Paula Alves de Sousa, proprietária do restaurante e pousada Trilhas da Capivara. Diante do espanto do repórter, que pensou inicialmente se tratar de uma escultura na praça, ela tranquiliza sobre o felino que vive na região. “Não se preocupe, não! Já estamos acostumados com a onça, e ela convive bem com a gente.”

Nascida e criada no Sítio do Mocó (nome do roedor que se vê por todo canto, em especial nas fendas das rochas), Paula revela que aprendeu a cozinhar, ainda criança, com a mãe Mariana dos Anjos de Sousa, falecida no ano passado aos 93 anos. “Gosto de fazer comida caseira, e servi-la sempre quente.”
COR E TEXTURA Entre as alquimias da culinária da piauiense Paula, está um saboroso creme de repolho, variação do creme de galinha, prato muito comum nas refeições familiares, festas de rua e feiras.

Com textura e cor que se aproximam das do estrogonofe, o creme de repolho vai bem como acompanhante de carnes, no almoço e no jantar, e até mesmo como um patê sobre a torrada, na hora do lanche. “O segredo está na finalização, ao acrescentar o milho ao repolho”, avisa Paula, que tem um canteiro de hortaliças no quintal e se orgulha do cultivo em área do semiárido nordestino.
Disposta a inventar comidas diferentes e sempre priorizando as características regionais, a dona do restaurante criou o prato ao substituir o frango pelo repolho. “E ficou bom? Você gostou?”, pergunta a filha Juliana, que ajuda Paula no atendimento aos fregueses. “Bom é pouco”, responde o repórter ao sentir, no alimento, a comunhão perfeita da natureza com as tradições regionais e o patrimônio arqueológico colossal da Serra da Capivara, que reúne 900 abrigos sob rocha arenítica, dos quais mais de 1,4 mil sítios com boa estrutura de visitação.
Durante o almoço, Paula serviu um filé de frango empanado na farinha de biscoito. “É bem melhor do que na farinha de trigo, pois não encharca”, ensina. E depois, na maior calma, pediu a Juliana que escrevesse a receita para o visitante mineiro levar para casa.
Na despedida, a família se mostrou bem satisfeita com o movimento de turistas, que deverá aumentar com o funcionamento do aeroporto internacional em Raimundo Nonato. “Estamos confiantes”, afirma Paula, ao lado do marido, Amaury, e dos filhos Odilon, Juliana e Pricila, e do netinho Luan, filho de Pricila.
Aos interessados, vale a notícia: o primeiro voo está previsto para 15 de dezembro, o que significa acesso mais fácil à Serra da Capivara, dona de atrativos como o Museu da Natureza, e muitos passeios pelo parque nacional criado em 1979 e administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
MÃO NA MASSA Quando viajo e aprecio um prato “cheio de histórias” aí pelos recantos do Brasil, costumo pedir às cozinheiras a receita – simples assim. E como sou “perna de pau” no universo das panelas, peço a minha amiga Marinês Araújo, pernambucana que entende do riscado, para pôr a mão na massa e transformar as palavras escritas em alimento. O prato agradou tanto que foi logo apelidado de “crème de la creme”, que em francês significa “o melhor dos melhores” – questão de gosto, claro, mas tenho certeza que o(a) leitor(a) vai curtir.
Então, para tornar ainda melhor essa “viagem”, vamos a alguns casos do sertão que ficam na memória. Existe na caatinga um cacto chamado rabo-de-raposa, que é coberto de espinhos. Passando as mãos em concha, suavemente, ao longo do caule, ouve-se um barulho como se fosse de água entornando. É curioso, porque o som é esse mesmo. Segundo os moradores, na época de seca mais longa, os pais levam os filhos para as proximidades do cacto e renovam a prática para que as crianças nunca se esqueçam do barulho da chuva.
Outra planta interessante é a coroa-de-frade, também endêmica na caatinga. De forma cilíndrica, é muito usada como proteção. Assim, nos jardins das casas, lá está o cacto afastando mau-olhado e outras ziquiziras.
Viagem ao sabor da terra e do mar
Ao longo das estradas que cortam a caatinga, no Piauí, o viajante pode ver os rebanhos de carneiros e cabras conduzidos com todo o cuidado. Às vezes, até parecem cenas bíblicas. Ali, vai o sustento de muitas famílias, principalmente por ser alimento precioso na época da longa estiagem: bem temperada, a carne seca é a base de muitos pratos saborosos. Na rodovia, um animal tenta cruzar a pista, o motorista dá uma leve guinada no volante, e assim prossegue a viagem com muitas descobertas, sempre regadas a cajuína, bebida considerada patrimônio cultural do estado e símbolo cultural de Teresina, única das capitais nordestinas que não está no litoral.
No interior ou na capital, a carne de sol de carneiro vem acompanhada do sempre “cantado em prosa e verso” baião de dois (à base de feijão-verde e arroz), do arroz de Maria Isabel (arroz misturado com carne seca cortada em pequenos cubos), a macaxeira (mandioca) frita e cozida e o tradicional pirão de leite.
Se viajar é conhecer o mundo, percorrer os caminhos é ouvir histórias, entre elas a do arroz de Maria Isabel. Dizem que o prato piauiense surgiu, quando as mulheres decidiram cortar em pequenos pedaços a carne-de-sol e misturar ao arroz, possibilitando, assim, que elas também pudessem comer da carne. E por quê? Em tempos passados, os homens se serviam primeiro e comiam toda a carne. O nome teria origem nos nomes de Maria e Isabel, filhas da cozinheira que preparou a receita. Mas há outra versão: seria uma homenagem à mulher de Simplício Dias da Silva, rico comerciante e fazendeiro do litoral piauiense.
História nunca é demais, não é mesmo? Então vamos lá! Com raízes indígenas, o povo do Piauí teve como base da alimentação, nos primórdios, milho, farinha de mandioca, palmito, macaxeira, abóbora, peixes, mel e pimenta-da-terra. Com a chegada de portugueses e africanos, veio o interesse pela carne vermelha, e, da mistura, turbinada pelos frutos da terra (buriti, bacuri, manga e outros), nasceu a culinária rica e desconhecida da maioria dos brasileiros.
A viagem prossegue em direção ao Delta do Parnaíba, ao Norte do Piauí, e o cardápio muda de figura. Em Parnaíba e outras cidades, são bem-vindos os camarões e caranguejos refogados, as frigideiras e as caldeiradas de peixe (de água doce e salgada), as peixadas com leite de coco de babaçu e as variações culinárias que só fazem bem aos sentidos e deixam saudade.
Creme de repolho
Ingredientes
1/2 repolho grande (picado ou ralado); 1 lata de milho verde (batido no liquidificador);
2 colheres de sopa de amido de milho; 2 colheres de sopa de margarina ou manteiga; 1 tomate picado; 2 cebolas picadas; 1 pimentão verde picado; 1 colher de sobremesa de corante; 1 litro de leite
Modo de fazer
Temperar o repolho com tomate, cebola, pimentão e corante. Colocar a margarina ou manteiga numa panela e deixar esquentar um pouco. Refogar o repolho, acrescentar o leite e deixar ferver. Após ferver, acrescentar o milho e o amido de milho, mexendo até engrossar. Servir quente.