pé de jabuticaba carregado

pé de jabuticaba carregado

Sidney Lopes/EM/D.A.Press

Ana Elisa Ribeiro *

Finalmente, a jabuticabeira começa um estirão, deixa aquele estágio arbustivo e fica maior do que a dona da casa. Passa do metro e setenta, uns galhos centrais mais eretos e dirigidos ao céu, enquanto outros, mais periféricos, pendem um pouco para todos os lados, formando uma possível copa, embora ainda baixa demais para caber uma pessoa adulta sob sua folhagem verde-escuro.

A muda da jabuticabeira não foi adquirida por conta de sua fruta. Todos ao redor advertiam sobre a demora da florada e das jabuticabas, que precisam de água abundante, e aqui... neste terreno seco, pobre, nada haveria de frutificar. A muda foi comprada primeiro porque a dona da casa queria, no futuro, uma sombra. A sombra na varanda era uma espécie de sonho inalcançável, e disseram que, com uma jabuticabeira, neste solo infértil, seria como esperar pela aposentadoria. Demoraria a vida inteira e talvez nem chegasse a tempo de existirem, nesta casa, uma mulher e uma rede, na qual ela se sentaria ou se deitaria para ler um livro ou uma revista ou com um gato cego para acarinhar.

Mas não parece que é o que vai acontecer. Pelo visto, a sombra chegará bem antes da aposentadoria dessa mulher que trabalha diariamente, por três turnos, interrompidos apenas por um pedaço de novela das seis e um café para acordar. A jabuticabeira cresceu mais depois das chuvas abundantes, o que ajudou a confirmar as ambiguidades e os contrassensos do mundo. Enquanto aqui a água alimentou a terra e as raízes de uma sombra frutífera futura, nos bairros ao redor ela levou encostas, fez transbordar o rio, afogou casas e animais de estimação e pessoas, incluindo velhos e crianças em pleno sono. No quintal em que está, a jabuticabeira deu resposta positiva à água que caiu do céu, crescendo mais do que o esperado pela vizinhança inteira, enchendo de alegria a dona da casa, essa mulher que cuida sozinha do filho e que pretende, um dia, habitar mais a própria casa.

Também para desafiar os palpites da vizinhança e dos familiares de pouca fé, a jabuticabeira, ainda bem pequena, começou a dar jabuticabas, mesmo antes de ter um metro e meio, e eram frutas que amadureciam, cresciam, ficavam suculentas e podiam ser consumidas, se alguém as colhesse daquele caule onde nascem grudadas como insetos, depois da floração branca. Por isso, vamos dar preferência a um dos nomes científicos da jabuticabeira, desprezando a polêmica científica sobre a classificação mais específica e acertada dessa planta. Aqui, vamos adotar a Plinia cauliflora, assim classificada no século 20, depois de debates científicos entre médicos e botânicos, posterior a outras duas classificações de nomes tão impressionantes quanto esse, mas menos poéticos.

A jabuticabeira é nativa da América do Sul. Von Martius era alemão e esteve no Brasil catalogando espécies botânicas. O cientista fez parte da comitiva que chegou ao Rio de Janeiro trazendo a arquiduquesa Leopoldina para se casar com D. Pedro I, imperador do país; e nisso tudo todos foram bem-sucedidos. Enquanto alguns se casavam, mesmo a contragosto, Von Martius saiu em missão pelo Brasil a fim de formar coleções de plantas, animais e minerais, em viagens arriscadas e inseguras. Era o que todos diziam a ele, que deu de ombros e encontrou, Minas Gerais adentro, a jabuticabeira, ainda sem nome de espécie, mas já prolífica, boa em dar frutos e uma sombra razoavelmente larga, em especial quanto mais velha estava.

Cortando para os anos vinte do século 21, a dona desta casa agora não terá a sorte de encontrar um Von Martius interessado em sua jabuticabeira ou em nominá-la em latim; não terá o alento de viver muito e ter um quintal com uma árvore frondosa que dê sombra, especialmente contra o terrível sol da tarde de um mundo fadado ao apocalipse climático; não se aposentará a tempo de caminhar sozinha e sem andador da porta da cozinha ao pé da árvore, a fim de catar nela uma jabuticaba e chupá-la lascivamente, ainda sem uma dentadura paga pelo SUS.

Contra todos os palpites da vizinhança e dos poucos familiares com quem ainda conversa pelas redes sociais, a mulher cultiva a jabuticabeira com forte esperança de que seja possível cochilar sob sua sombra um dia; então, não raro, enquanto faz o almoço, a dona da casa dá olhadelas carinhosas para a árvore, já com mais de um metro e setenta de altura e galhos para todos os lados, além do tronco que a eleva e sustenta, e vê florezinhas, depois jabuticabas que, como ninguém colhe, são comidas pelos passarinhos e até por insetos, que descobriram este quintal, esta casa e esta mulher que espera pela jabuticabeira com muito mais esperança e animação do que pela aposentadoria.

A mulher não pode criar seu filho com a dedicação que gostaria, não pode alimentar o gato duas vezes por dia, não consegue regar as mudas com frequência, não está em casa quando o carteiro toca a campainha para entregar correspondências que exigem sua assinatura. Ela acorda muito cedo, faz as entregas do filho, das senhas, das chaves, os acordos com as outras vizinhas, e sai a trabalhar descontente, como provavelmente todas as pessoas do mundo, em especial as que não trabalham para si e para os seus. Ela retorna para o almoço, à tarde muda de endereço profissional, retorna para um café e muda novamente de direção. Nesse exercício de vaivém, quase como uma engrenagem, ela consegue dar olhadelas furtivas para a árvore que se forma no quintal, prometendo algo difícil de comprar, seu maior investimento: sombra e descanso.

Fruem a presença da jabuticabeira borboletas, formigas, passarinhos e mesmo o gato, que cabe embaixo dela e não se importa com a terra molhada ou as folhas em decomposição. Observam a árvore algumas pessoas da vizinhança, numa espécie de aposta controversa, em alguns casos desejando que os galhos sequem, a planta morra, a confirmar as previsões de tão inteligentes pessoas. Outras, no entanto, conseguem ter bons sentimentos e, em pensamento, ficar felizes porque a dona da casa, em alguns tantos anos, haverá de conseguir sua sombra, depois sua rede, onde se deitar com o gato cego e, em paz, morrer. 

* A autora lança “Causas não naturais”, hoje (21/10), às 11h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi). O livro inclui o conto “Sombra e água”.