As atrizes Bel Lima e Cecília Chancez

As atrizes Cecília Chancez e Bel Lima protagonizam "Vicky e a Musa", que será exibida pelo Globoplay a partir de hoje e pelo canal Gloob, em 2024; hoje, os três primeiros capítulos irão ao ar também na TV aberta

Estevam Avellar/Divulgação


Cineasta, escritora, diretora, produtora, pesquisadora e autora de novelas da TV Globo, Rosane Svartman coloca a teoria e a prática para andarem de mãos dadas a partir desta quarta-feira (19/7). Autora de “Vai na fé”, folhetim que ocupa atualmente a faixa das 19h da emissora carioca, ela lançou, há menos de um mês, o livro “A telenovela e o futuro da televisão brasileira” (Cobogó).
 
A obra analisa a estrutura das telenovelas – tanto narrativa quanto de negócios – para entender sua relação com o público e sua consequente modificação a partir da popularização das plataformas de streaming, da diversificação das telas, da disseminação das redes sociais e das demandas e desejos da audiência.
 
Derivado de sua tese de doutorado, desenvolvida a partir de 2019, o livro baliza a mais nova criação de Rosane, a série “Vicky e a Musa”, comédia musical produzida pelos Estúdios Globo. Pensada tanto para adolescentes quanto para o público infantil, a atração foi concebida para ter cenas e enfoques diferentes no Globoplay, plataforma em que estreia nesta quarta, e no Gloob, canal de TV por assinatura infantil, ao qual chega em 2024.
 

São dois produtos distintos, dentro de um mesmo universo dramatúrgico, mas com diferentes enfoques. “É uma série que tem duas versões e, nessa medida, se relaciona diretamente com o livro, já que é disso que ele trata. Na concepção, já podemos pensar em conteúdos diferentes”, diz Rosane.

 

A autora destaca que a comédia musical foi escrita durante a pandemia, “com o país atravessando um momento muito difícil”, e por isso ela imaginou um texto que celebra a arte, que foi um lenitivo para aquele período.
 
“É uma série que fala do quanto a arte ajuda a gente a lidar com a vida, escapar quando é preciso, mas também a pensar e a refletir sobre nossa realidade, sobre para onde estamos indo”, afirma.
 
Rosane Svartman, autora e diretora

Rosane Svartman, autora e diretora

João Miguel Júnior/Divulgação

'Uma telenovela das sete hoje, 'Vai na fé', fala com 28 milhões de pessoas diariamente. Enquanto a gente vê no restante do mundo audiências cada vez mais fragmentadas, no Brasil esse fenômeno segue'

Rosane Svartman, autora e diretora

 

Dramas com arte

Rosane observa que os personagens têm vários conflitos – de luto, de superação, de reencontros – mas os dramas vividos são mediados pela arte, que surge como uma tábua de salvação. Vicky é uma garota que mora em um bairro periférico onde os cinemas, teatros e outros atrativos culturais fecharam as portas. A partir do momento em que ela convoca a Musa da Música, sua vida e a de todo o território se transforma.

Rosane recorre ao publicitário paulistano José Roberto Filippelli para falar da relação da série com “A telenovela e o futuro da televisão brasileira”. Ela diz que ele escreveu um livro falando de como aprendeu que, mudando o formato das telenovelas, poderia vendê-las para outros países. “Escrava Isaura”, por exemplo, foi para o exterior com apenas 30 capítulos, conforme aponta.
 
“Quando ‘Avenida Brasil’ passa no ‘Vale a pena ver de novo’, é uma edição especial, houve uma adaptação. Isso tem tudo a ver com um dos assuntos sobre os quais me debrucei, que é o deslizamento de conteúdos entre janelas. Por que isso tem que ser feito posteriormente? Será que a gente já não pode, inicialmente, pensar o produto para mais de uma janela? Trata-se de conceber vislumbrando diferentes mídias”, destaca.
 
Ela ressalta que esse pensamento foi o que viabilizou “Vicky e a Musa” do ponto de vista orçamentário. “No Globoplay, tem uma trilha entre jovem e adulta, com um adensamento dos conflitos dos personagens. Na versão para o Gloob, esses conflitos não aparecem e tem uma trilha infantil forte, com clipes exclusivos, animação, momentos direcionados para um canal assistido por crianças. Isso foi pensado na sala de escrita, são ganchos diferentes”, explica.
 
 
Até onde Rosane sabe, esse é um modelo inédito no Brasil. Ela diz já ter visto “naves-mães” com “satélites” empregados em narrativas transmídias, mas nunca uma nave-mãe ocupando duas janelas. Para marcar a estreia, os três primeiros episódios de “Vicky e a Musa” serão exibidos nesta quarta (19/7) na “Sessão da tarde”, da Rede Globo. “Estou curiosa com relação a esse formato. É uma experiência que vai valer para mim mesma, para poder escrever posteriormente sobre como funcionou.”
 
O que a motivou a voltar para a academia – para fazer o mestrado, em 2015, e para o doutorado, em 2019 – foi o desejo de aliar teoria e prática. “A troca entre teoria e prática é muito importante para mim. A academia contribui para o que faço na vida prática. A pesquisa para esse livro me ajuda a pensar o que fazer, para onde vou, como contar as histórias e onde contar as histórias”, diz.
 
Nos seis capítulos de seu livro, Rosane aborda o que é a televisão hoje, sua história, seus conteúdos e as ferramentas narrativas. “Quando cheguei no capítulo de defesa da tese, foquei nessa questão de convergência de mídias, pensando em para onde vão as histórias audiovisuais e qual a chave de tudo isso no Brasil.”

Matriz narrativa

A autora defende que enquanto se mantiver como parte da cultura do Brasil, a telenovela não perderá seu lugar como produto de massa – podendo, dessa forma, ser consumida em qualquer plataforma, mídia ou tela, sem perder sua essência e relevância. Ela destaca a força da telenovela como matriz narrativa latino-americana por excelência.
 
Uma das conclusões de sua tese é que “o futuro da telenovela está nas mãos do telespectador, e o futuro da televisão brasileira está nas mãos da telenovela”. A constatação decorre, conforme diz, de uma conexão construída ao longo de mais de 70 anos com o tecido social brasileiro.
 
“Isso tem um peso cultural enorme. Uma telenovela das sete hoje, ‘Vai na fé’, fala com 28 milhões de pessoas diariamente. Enquanto a gente vê no restante do mundo audiências cada vez mais fragmentadas, no Brasil esse fenômeno segue”, ressalta.
 
Ela considera que a discussão sobre se o país está atrasado ou adiantado em relação ao resto do mundo no que diz respeito às formas de consumo do produto audiovisual não procede. “Pensou-se que, com a chegada do streaming, essa audiência ia acabar, mas não. O Brasil tem uma história e uma trajetória diferentes do resto do mundo. O futuro da televisão está ligado diretamente a esse fenômeno, a esse laço social que a telenovela estabeleceu com um país imenso”, diz.
 
 
 
Rosane não ignora o impacto da chegada do streaming e das mídias digitais, mas as considera como forças que vão se moldando umas às outras. “A telenovela desliza para o streaming, na medida em que já está presente no cardápio das plataformas. Por outro lado, a gente já vê novelas ou séries melodramáticas sendo produzidas diretamente no streaming, o que é um novo modelo de negócio para esse produto”, diz.
 
Ela observa que, no Brasil, as telenovelas sempre foram construídas em cima da venda de publicidade, e que as plataformas mudam essa dinâmica. “É um novo modelo de negócio para as telenovelas, um fenômeno interessante. ‘Verdades secretas’ foi um grande sucesso. A HBO tem a tendência de publicar uma vez por semana; outras publicam tudo junto. São formas de entender o deslizamento das telenovelas para o streaming”, destaca.

Impacto das séries

Fenômeno que acompanhou o desenvolvimento das plataformas, a popularização das séries também teve um impacto na forma como uma telenovela é escrita, segundo Rosane. “São ganchos e ferramentas narrativas que se influenciam reciprocamente. Em ‘A regra do jogo’ (2015), cada capítulo tinha um título, o que é influência das séries. Ao mesmo tempo, você vê camadas do melodrama, com um arco longo, cada vez mais presentes nos seriados, e isso vem da telenovela. É uma fronteira que se esgarça.”

Mas qual é, então, o ponto de partida para a escrita de uma telenovela hoje? Rosana diz que, para desenvolver sua tese, não apenas se baseou em sua própria experiência, mas também conversou com profissionais do meio. “Uma das pessoas que entrevistei, a Neide Nogueira, que é diretora de pesquisa, diz que um autor precisa ter a sensibilidade de perceber o que está latente na sociedade, o que ela quer conversar, mas ainda não sabe”, exemplifica.
 
Ela conta que anda com um caderno onde anota tudo o que chama sua atenção, tanto o que vê quanto o que lê ou ouve de alguém. “É aquela história de quando dizem ‘Ah, isso dava um filme’! Penso que muitas vezes dá mesmo. Acho importante saber dos movimentos da sociedade.”
 
Uma fonte importante, por exemplo, é o Censo Demográfico 2022, realizado pelo IBGE, segundo a autora. “Ainda estão sendo divulgados os dados mais finos, mais detalhados, sobre o que se descobriu. Isso é muito interessante, porque vou buscar as pessoas por trás dos números. O evangélico no Brasil é uma mulher preta. Vou me perguntar quem são essas mulheres, o que elas fazem. ‘Vai na fé’ é anterior ao Censo, mas é algo que já me interessava. Acho que todo autor tem que ter essa curiosidade.”
 

Capa do livro A telenovela e ofuturo da televisão brasileira

Cobogó/reprodução

“A TELENOVELA E O FUTURO DA TELEVISÃO BRASILEIRA”

• De Rosane Svartman
• Editora Cobogó
• 248 páginas
• R$ 74