Duas atrizes com figurinos de noiva em cima de cadeiras na peça Vestido de noiva, encenada pelo Grupo Officina Multimédia

Alucinações, lembranças e traumas da personagem Alaíde, de 'Vestido de noiva', remetem ao inconsciente coletivo brasileiro

Netun Lima/divulgação
 

'Quero que o público acompanhe a loucura da personagem, pois a história não é linear, vai sendo revelada aos poucos'

Ione de Medeiros, diretora

 
Ione de Medeiros montou 22 espetáculos, adaptou livremente textos de Shakespeare e Tchekhov, até tomar fôlego e adentrar no universo de Nelson Rodrigues (1912-1980). “Achava que não saberia como fazer. O Nelson é muito carioca, a gente tem uma cultura tão distante. Mesmo eu sendo de Juiz de Fora, sou mineiríssima. Mas ele é também um dramaturgo muito brasileiro, não tem como não fazê-lo”, afirma a diretora, integrante do Grupo Oficcina Multimédia (GOM) desde sua fundação. 


A entrada no universo rodrigueano se deu com “Boca de Ouro” (2018). A ideia era continuar logo depois. A pandemia atrapalhou os planos e somente agora o GOM lança nova montagem com texto do dramaturgo. Com estreia na próxima sexta-feira (26/5), no Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil, “Vestido de noiva” é o 24º espetáculo do GOM dirigido por Ione.
 
A peça, que leva para a cena o texto lançado há exatos 80 anos, cumprirá temporada de um mês em BH. No segundo semestre, será levada aos CCBBs de São Paulo (17/8 a 24/9), Rio de Janeiro (4 a 29/10) e Brasília (9/11 a 3/12).

“Custei a fazer Nelson Rodrigues, mas quando fiz, me apaixonei. Resolvemos fazer o ‘Vestido’ porque é muito diferente. Ele foi revolucionário, não trata a realidade ao pé da letra. A personagem referencial sofreu acidente, então o que acontece na peça vem da mente dela. E o inconsciente é livre, não tem ordem cronológica, análise dos fatos. Ele mistura, inventa. A história seria simples se não tivesse sido contada por uma pessoa que não tem o domínio das coisas, pois está com a mente muito embaralhada”, afirma a diretora.
 
Duas atrizes vestidas de noiva e atores com figurinos de casamento sorriem para a câmera

Montagem de "Vestido de noiva" do GOM, que estreia na sexta no CCBB-BH, é resultado de duas releituras anteriores criadas pelo grupo

Netun Lima/divulgação
 

Clássico do teatro brasileiro

Em essência, “Vestido de noiva” acompanha duas irmãs, Alaíde e Lúcia, que disputam o mesmo homem, de nome Pedro. Ele se casa com uma, mas não deixa de lado a outra. A montagem, contudo, parte de um acidente. Alaíde, a irmã preterida, é atropelada. Entre a vida e a morte no hospital, sua mente começa a reconstruir a própria história. Para tal, conta com a ajuda de Madame Clessi.

A peça estreou em 28 de dezembro de 1943, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com o grupo carioca Os Comediantes sob a direção de Ziembinski. Foi considerada a montagem inaugural do teatro moderno brasileiro.

Na montagem do GOM, serão seis atores em cena: Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Camila Felix, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso. Haverá outros também (caso de Alana Aquino, Heloisa Mandareli, Hyu Oliveira e Thiago Meira), que serão vistos em vídeo. Henrique e Jonnatha são integrantes do grupo; os demais são convidados.

O espetáculo que chega ao CCBB é, de acordo com Ione, a terceira montagem que o GOM faz de “Vestido de noiva”. Melhor explicando: antes da crise sanitária, o grupo chegou a montar a peça que não veio a público em decorrência da pandemia. Durante o isolamento social, diretora e atores continuaram trabalhado, remotamente. Esse trabalho foi gravado, mas nunca lançado.

“Misturei as duas montagens, a primeira e a do vídeo, o que resultou numa terceira”, explica a encenadora. Os atores fazem mais de um papel e não há distinção de gênero. “Um ator ou atriz pode fazer um personagem feminino ou masculino. Na realidade, o texto é que prevalece, ele é quem vai dizer qual é o personagem”, acrescenta Ione.
 
O dramaturgo Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues é considerado o "pai" do teatro moderno brasileiro, com 'Vestido de noiva'

Douglas Ferreira da Silva/O Cruzeiro/Arquivo EM
 

O novo passo de Ione

A montagem marca um novo momento para a encenadora. “Ela é bem diferente, até curiosa dentro da minha história. Sempre fui muito ligada aos objetos. Houve espetáculos em que os objetos estavam no mesmo páreo que os atores. Neste, não. O ator está mais em cena e o objeto serve mais à temática, é mais utilitário. Por exemplo: tudo tem rodinha (cadeira, maca), se move.”

O cenário é basicamente um quarto de hospital, onde Alaíde começa a ter lembranças que se misturam com alucinações. “Como ela está acidentada, não se lembra de nada. Quem é o pai, a mãe, o irmão. Vai juntando cacos da memória. Tanto por isso, não é uma história com princípio, meio e fim.”

Mesmo que o GOM venha trabalhando o texto nos últimos tempos, a peça só começou a ser montada efetivamente este ano. “Foi um desafio, nunca fiz montagem tão rápida. O texto não é fácil de ser entendido, tanto que coloquei o narrador para conduzir tudo. E trouxe o vídeo para criar a comunicação. Quero que o público acompanhe a loucura da personagem, pois a história não é linear, vai sendo revelada aos poucos.”
 

Nelson na íntegra

O texto de Nelson Rodrigues está inteiro em cena. “Passei muito tempo sem usar texto nenhum (nos espetáculos). Como minha formação é musical (é pianista), usava pouquíssimo texto. Gosto da imagem, do objeto, da dança. Amo o texto, mas tinha dificuldade de colocá-lo em cena”, conta ela, que chegou a fazer uma adaptação de “Macbeth” (no espetáculo “Macquinária 21”, de 2016) com muito barulho, música e objetos em cena.

Agora, não. “Quem gosta de texto vai ver muito texto falado. ‘Vestido de noiva’ não é adaptação livre”, explica Ione. É Nelson Rodrigues puro – mas com o olhar sempre gauche do GOM.

“Nelson tinha uma frase interessante, dizia que observava o comportamento da família burguesa como se estivesse olhando no buraco da fechadura. O Teatro 2 do CCBB, que não traz a distância do palco, ajuda muito nessa aproximação. O público vai olhar pelo buraco da fechadura a briga entre as irmãs, a disputa pelo mesmo homem”, finaliza Ione de Medeiros.

Livro conta a história da Oficcina Multimédia

Capa do livro Grupo Oficcina Multimedia 45 anos

Capa do livro Grupo Oficcina Multimedia 45 anos

Reprodução
Ione de Medeiros lançou o livro “Grupo Oficcina Multimédia – 45 anos”, que, além de trazer vasta documentação do histórico da companhia formada em 1977 por Rufo Herrera, durante o Festival de Inverno da UFMG, e de seu processo criativo, traz amplo material fotográfico.
 
Em cinco capítulos, a autora aborda os trabalhos do grupo entre 2007 e 2022. Escritoras convidadas – Julia Guimarães, Mônica Medeiros Ribeiro, Telma Fernandes, Leda Maria Martins e Papoula Bicalho – falam sobre as encenações das quais participaram. O livro está disponível para download no link www.spescoladeteatro.org.br/biblioteca/selo-lucias
 

“VESTIDO DE NOIVA”

De Nelson Rodrigues. Montagem do Grupo Oficcina Multimédia, com direção de Ione de Medeiros. Estreia na próxima sexta-feira (26/5), às 19h, no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Temporada até 26 de junho, de sexta a segunda-feira, às 19h. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada). À venda no local e no site bb.com.br/cultura.