O ator  Eduardo Moreira está deitado no divã observado pelo ator Renato Parara em cena do filme O lodo

Manfredo (Eduardo Moreira) é atendido pelo doutor Pink (Renato Parara) em sessões que beiram o horror kafkiano

Lauro Escorel/divulgação

Nunca faltou sinceridade a Helvécio Ratton. Um pouco de malícia, talvez. Professar sempre  um claro catolicismo progressista levou seu cinema um tanto conservador a se escudar com frequência em boas causas.

Para não ir longe, a sua defesa – honesta – dos religiosos acusados de dedurar Marighella à polícia esbarrava em cenas de tortura inteiramente despropositadas, tanto pelo que mostravam – óbvio e hiperbólico – como pela ineficácia.
 

Mas isso parece ter despertado Ratton para outro lado das coisas: ao cineasta não basta a boa-fé. É preciso pôr a pele em jogo. Eis o que ele faz desta vez, enfrentar os próprios fantasmas e invadir francamente o domínio do terror. A própria trama o demonstra.

 

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De cara, temos um desanimado Manfredo, vivido por Eduardo Moreira, enfrentando as várias questões de sua vida: a ambição profissional – solapada pelo próprio desânimo, diga-se – , a concorrência do colega oportunista por uma promoção, o incômodo caso amoroso com a mulher do patrão, o próprio patrão, sadicamente vago em suas intenções.
 
Mas o pior é o desânimo, que o leva a um psiquiatra, o doutor Pink. E este, para começar, diz que Manfredo precisa se lembrar da primeira coisa que lhe ocorre quando pensa na infância.  E a lembrança está lá: um corredor vazio, com um crucifixo ao fundo.
 
 

A câmera avança até mostrar a bela mulher seminua diante do espelho. A mãe, naturalmente. Assustado, Manfredo tenta se livrar de Pink.

É aí, no entanto, que começa sua jornada de pavor, pois Pink não se mostra nada disposto a largar o pé do cliente. A situação logicamente presta seu tributo a Kafka, mas também a Edgar Allan Poe – para não falar de Freud, já que no teto do consultório de Pink o que Manfredo vê é a imagem estilizada de uma vagina: a matriz.

E para não falar, claro, de Murilo Rubião, elegante mestre do conto fantástico, em quem o roteiro se inspira.

Os atores Paulo André, Samira Avila, Marcos Falcão e Ricardo Batista, em roda, olham para a câmera de cima para baixo, em cena do filme O lodo

Os atores Paulo André, Samira Avila, Marcos Falcão e Ricardo Batista em 'O lodo', filme que tem prédios e ruas de BH como cenário

Lauro Escorel/divulgação

Freddy Kruger?

Essa jornada tétrica se fará acompanhar de terrores mais imediatos: pessoas que invadem a vida de Manfredo sem serem chamadas – inclusive um inquietante adolescente –, um farmacêutico com suas injeções, pesadelos que parecem invadir a realidade – inconsciente tributo a Wes Craven e seu Freddy Kruger, talvez? –, feridas que marcam seu corpo assim como seu espírito.

Essa espiral de dores serve para nos lembrar de o quanto a fé – católica, em princípio – pode ser um desconforto na vida das pessoas, bem mais do que um conforto. Mas, sobretudo, serve a Ratton para mergulhar no mundo de terrores em que se opõem essas duas imagens, a cruz e a vagina, a salvação e o pecado.

Se é quase impossível não notar a feliz escolha de atores e tipos do elenco – bem dirigidos, no mais –, é um pouco surpreendente, embora não incômodo, que a luz tenha mantido tom linearmente realista, quando vários momentos do filme parecem sugerir uma fotografia mais próxima do expressionismo, e que um sugestivo quadro colocado dentro do quarto de Manfredo – nada menos do que dentro do quadro – tenha ficado sempre tão em segundo plano.

A ousadia de Ratton não está, em todo caso, no estilo; antes na maneira incisiva como nos conduz a um mundo de terror tão terrivelmente próximo de nós. Ou será melhor dizer: tão dentro de nós, como o lodo que atormenta Manfredo. 

“O LODO”

Brasil, 2020. Direção de Helvécio Ratton. Com Eduardo Moreira, Renato Parara, Inês Peixoto, Teuda Bara, Samira Avila, Marcos Falcão, Paulo André e Ricardo Batista, entre outros. Estreia nesta quinta-feira (13/4). Em cartaz na sala 1 do UNA Cine Belas Artes, às 16h10 e 20h20; sala 2 do Cineart Boulevard, às 21h25; sala 1 do Cineart Cidade, às 18h30; sala 3 do CineartCidade, às 13h30; sala 1 do Cineart Contagem, às 21h25; sala 6 do Cineart Contagem, às 14h10; sala 2 do Cineart Del Rey, às 21h15; sala 6 do Cineart Itau Power, às 21h20; sala 1 do Cineart Minas, às 21h20; sala 2 do Cineart Monte Carmo, às 21h; sala 4 do Cineart Ponteio, às 19h05; e sala 2 do Unimed-BH Minas, às 20h10.