De olhos fechados, Wayne Shorter toca saxofone no palco

Wayne Shorter, virtuoso tanto no sax tenor quanto no soprano, se apresenta em festival na França, em 2005; seu agente anunciou que ele estava internado em hospital de Los Angeles

Lionel Bonaventure/AFP

''A música abre portais e portas para setores desconhecidos nos quais é preciso coragem para entrar''

Wayne Shorter, músico



A morte do saxofonista e compositor Wayne Shorter, aos 89 anos, nesta quinta-feira (2/3), reverberou em escala planetária entre seus admiradores e colegas de ofício. Tal reverberação, naturalmente, ecoou no Brasil. Milton Nascimento, com quem ele gravou o clássico “Native dancer”, 15º título de sua discografia, lançado em 1974, usou seu Instagram para uma despedida emocionada.
 
“Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Dia de me despedir de parte de tudo o que eu sou. Wayne Shorter foi – e sempre será – mais do que um parceiro musical. Desde que nos conhecemos, nunca nos separamos”, escreveu. Milton disse, ainda, que gravar com Shorter mudou sua vida e sua carreira para sempre.

O músico brasileiro recordou o encontro com o saxofonista durante a passagem de sua turnê de despedida, “A última sessão de música”, pelos Estados Unidos: “No ano passado, quando me apresentei em Los Angeles, ele não conseguiu ir me assistir, pois havia sofrido um acidente doméstico na noite anterior, mas dei um jeito de ir até a sua casa, e tivemos uma tarde linda, digna dos nossos tantos anos de irmandade e história”.
 
Wayne Shorter e Milton Nascimento olham para a câmera

Em emocionado texto de despedida, Milton Nascimento classificou Wayne Shorter como um "irmão eterno"

Instagram/Reprodução


A admiração e o afeto eram recíprocos. Shorter disse, em entrevista ao Estado de Minas, que a voz de Milton Nascimento é “um som completamente diferente”. Afirmou, ainda, tratar-se de um som que chama de volta à natureza.

“As melodias dele nos remetem à Antiguidade. Passam pela Amazônia, mas também por Egito, Mongólia, México, Cuba e países da África, lugares distantes. O jeito como ele canta faz com que você queira pegar carona e viajar com ele por esses lugares”, disse.
 

“Clube da Esquina”

Após ouvir e se apaixonar pelo álbum “Clube da Esquina”, Shorter convidou Milton para gravarem juntos “Native dancer”, por sugestão de sua segunda esposa, Ana Maria Shorter, que passou a infância em Angola.
 
O álbum inspirou mais de uma geração de músicos, como o guitarrista e compositor Pat Metheny e a baixista e vocalista Esperanza Spalding, que, em 2008, registrou uma versão da faixa de abertura, “Ponta de areia”, composição de Milton.
 
 
Considerado um dos maiores músicos de todos os tempos, Wayne Shorter moldou os contornos do jazz moderno. Ele integrou três bandas lendárias do gênero: Jazz Messengers, com o baterista Art Blakeys; o quinteto de Miles Davis, que contava ainda com John Coltrane; e o Weather Report, já nos anos 70, formado por nomes como Joe Zawinu e o percussionista brasileiro Airto Moreira.

Além de ter integrado tais grupos, Shorter teve uma longa trajetória como solista e marcou a história do jazz com composições como “E.S.P.”, “Nefertiti”, “Footprints”, “Black Nile” e, mais recentemente, “Scout” e “Pegasus”. Nascido em 25 de agosto de 1933 em Newark, estado de Nova Jersey, nos EUA, ele venceu o Grammy 11 vezes

Capacidade de improvisação

O “New York Times” já descreveu Shorter como um dos músicos com maior capacidade de improvisação. “Ele não é apenas um dos maiores compositores de jazz, mas também o anjo do esoterismo, um ancião iluminado e misterioso”, definiu o diário americano.

Em 2017, o artista foi homenageado com o Prêmio Polar, considerado o “Nobel da música”. Segundo o júri, Shorter foi premiado por sua qualidade de “explorador musical”, que, ao longo de “uma carreira extraordinária, buscou constantemente novos caminhos que não haviam sido transitados”.

Seu pai, Joseph, trabalhava como soldador para a empresa de máquinas de costura Singer, e sua mãe, Louise, costurava para um peleteiro. Crescendo no distrito industrial de Ironbound, em Newark, Shorter e seu irmão mais velho, Alan, eram consumidores vorazes de histórias em quadrinhos, ficção científica, seriados de rádio e matinês de cinema.


Escola de artes

Shorter venceu um concurso de arte aos 12 anos, o que o levou a frequentar a Newark Arts High School, a primeira escola pública do país especializada em artes visuais e cênicas. Lá ele encontrou vários professores que alimentaram seu interesse por teoria e composição musical. Ao mesmo tempo, o bebop – estilo surgido nos anos 1940 e que teve como principais representantes Charlie Parker e Dizzy Gillespie – era uma fonte de fascínio para o garoto.

O bebop tinha uma forte presença em Newark: a Savoy Records, a gravadora mais comprometida com o movimento jovem, tinha sua sede lá, e a rádio local transmitia ao vivo performances do gênero. Shorter, que estava tendo aulas particulares de clarinete, mudou para o saxofone tenor. Junto com seu irmão, que era trompetista, ele se juntou a um grupo de bebop local.

Shorter começou a despontar na cena do jazz nos anos 1950, enquanto ainda se graduava em educação musical na Universidade de Nova York. Depois de servir dois anos no Exército, ele voltou à baila, causando forte impressão como membro do grupo Jazz Messengers, de Art Blakey.

Estilo de composição

Além de tocar saxofone, Shorter levou para o Jazz Messengers um novo estilo de composição, escrevendo melodias, como “Ping pong” e “Children of the night”, que somavam novos elementos e acabaram por conformar o chamado hard-bop.

Em 1964, ele passou a integrar o segundo quinteto de Miles Davis, depois de recusar convites do célebre trompetista, autor de “Kind of Blue”, por vários anos, por lealdade a Blakey. A formação do conjunto contava, ainda, com o pianista Herbie Hancock, o baixista Ron Carter e o baterista Tony Williams. Davis, em sua autobiografia, distinguiu Shorter como “o idealizador de muitas ideias musicais” que apresentou.

Assim que entrou no grupo, o saxofonista contribuiu com várias novas composições para cada álbum de estúdio feito pelo Miles Davis Quintet, começando com a faixa-título de “E.S.P.”, em 1965. Com Davis, ele investigou o chamado jazz fusion, que incorporava elementos do funk e do rock, notadamente nos álbuns “In a silente way” e “Bitches Brew”, ambos lançados em 1969.
 
Músicos da banda americana Weather Report

Weather Report influenciou músicos de todo o mundo, inclusive no Brasil, com seu jazz fusion

Reprodução
 

Junção de gêneros

Shorter não tinha medo do risco. “Native dancer” também traz em suas faixas uma junção de jazz, rock, funk e ritmos regionais brasileiros. O álbum gravado com Milton Nascimento veio à luz enquanto o saxofonista era integrante do Weather Report, que fundou em 1971, juntamente com Zawinul e com o baixista tcheco Miroslav Vitous.

Depois da dissolução do grupo, em 1986, Shorter lançou uma série de álbuns que apresentaram uma ampla gama de colaboradores. Foi um período também marcado por tragédias. Iska, sua filha com Ana Maria, morreu vítima de uma convulsão, em 1985. Pouco mais de uma década depois, em 1996, ele também perdeu a esposa, que estava entre as 230 pessoas mortas na queda do voo 800 da TWA, que caiu logo após a decolagem, em Nova York.

Shorter iniciou uma nova etapa de sua carreira em 2000, quando formou um quarteto acústico com o pianista Danilo Pérez, o baixista John Patitucci e o baterista Brian Blade, pertencentes a uma geração que cresceu ouvindo suas músicas.

Novas versões

O novo Wayne Shorter Quartet começou a tocar novas versões de músicas como “Footprints” e “JuJu”, muitas vezes modificadas a ponto de soarem quase irreconhecíveis. O crítico Jon Pareles, ao escrever sobre um concerto para o jornal “The New York Times”, em 2013, observou que Shorter “trata linhas de baixo ou frases únicas como pistas e instruções, brincando no local com tempo, contracorrentes, inflexão e ataque”.

Shorter acabou compondo novas músicas para o grupo, como “Scout”, que estreou em 2017, e “Pegasus”. Fora da música, o artista criou uma história em quadrinhos de 58 páginas, desenhadas à mão, chamada “Other worlds” (outros mundos), quando ainda era adolescente. O gosto pela arte sequencial o acompanhou por toda a vida.

No álbum “Emanon”, projeto lançado em 2018 e que conta com três discos, Shorter, já com 85 anos, também incluiu outras histórias em quadrinhos escritas por ele em parceria com Monica Sly. A obra traz ilustrações de Randy DuBurke.

Aclamação da crítica

A suíte “Emanon” foi registrada em duas versões distintas: uma com seu quarteto e outra também com a Orquestra de Câmara Orpheus. O álbum recebeu ampla aclamação da crítica, liderando as listas de final de ano de publicações como “The New York Times” e “JazzTimes”.

Além do jazz, o músico também trabalhou com nomes de outros estilos. Ele estabeleceu um importante vínculo com a música popular em colaborações marcantes com a cantora e compositora Joni Mitchell, com o guitarrista Carlos Santana, com a banda Steely Dan e com os Rolling Stones.

“Acho que a música abre portais e portas para setores desconhecidos nos quais é preciso coragem para entrar”, disse ele, em uma entrevista publicada em seu site oficial. “Eu sempre acho que existe um potencial que todos nós temos, e podemos emergir, nos elevar a esse potencial, quando necessário. Temos que ser destemidos, corajosos e recorrer à sabedoria que pensamos não ter.”