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Estado de Minas LITERATURA

Laurentino Gomes lança epílogo de sua trilogia sobre a escravidão no Brasil

Novo volume compreende o período que vai da Independência do país até a promulgação da Lei Áurea; autor diz que o tema é o mais relevante da história brasileira


27/06/2022 04:00 - atualizado 26/06/2022 18:30

close no rosto do escritor Laurentino Gomes
(foto: Vilma Slomp/Divulgação)

Ao colocar o ponto final em “Escravidão: Da Independência à Lei Áurea” (Globo Livros), o escritor e jornalista Laurentino Gomes admite que respirou “muito aliviado”. Terminava ali uma jornada de uma década de trabalho em cima do tema que ele considera o “mais importante do país” e que acabou definindo o futuro da sociedade brasileira.

“Só agora é que me dei conta do tamanho do desafio que tive. Acho que, se soubesse disso antes, ficaria com um pé atrás de seguir adiante”, afirma. Com o volume, ele chega ao fim da trilogia “Escravidão”. As três obras, lançadas a partir de 2019, percorreram três séculos e meio da história do Brasil, o maior território escravista do hemisfério ocidental e o último a abolir a escravidão – de forma precária e improvisada, em 1888, como o novo livro mostra.

No período que a trilogia abrange, 4,9 milhões de pessoas vieram da África para o Brasil. Esse número corresponde a 46% dos 10,7 milhões de africanos desembarcados em cerca de 37 mil viagens de navios negreiros para o continente americano. “Desigualdade social no Brasil é sinônimo da herança da escravidão”, afirma o autor.

As histórias e os personagens que ele recupera com prosa fluida são fruto de extensa pesquisa bibliográfica (cerca de 200 livros) e in loco (viajou por 12 países, oito deles em território africano). Suas duas trilogias (a primeira abrange os volumes “1808”, “1822”, que ganhou edição comemorativa do bicentenário da Independência, e “1889”) somam 3,5 milhões de exemplares vendidos.

"Quando os fazendeiros se sentiram traídos pelas leis do Ventre Livre, dos Sexagenários, pela Lei Áurea, o próprio império desaba. Não é por acaso que a república vem um ano depois do fim da escravidão. Os fazendeiros se sentiram traídos e migraram para a campanha republicana. A monarquia era um gigante dos pés de barro, e os pés de barros eram a escravidão. Quando ela deixou de existir, o gigante desabou"

Laurentino Gomes, autor da trilogia "Escravidão"



O autor começa, no próximo sábado (2/7), a partir da Bienal do Livro de São Paulo, uma turnê de lançamento que vai percorrer, durante dois meses, nove estados. Laurentino estará em Belo Horizonte em 18 de julho, autografando “Escravidão III” na livraria Leitura do Pátio Savassi. “Hoje, não consigo olhar o Brasil sem colocar a questão racial e a desigualdade social no primeiro plano das minhas análises”, afirma, na entrevista a seguir ao Estado de Minas.

vestindo roupas solenes nos tons de azul e rosa e carregando instrumentos e bandeiras, Integrantes da Comunidade dos Arturos desfilam em frente à igreja Nossa Senhora do Rosário
Integrantes da Comunidade dos Arturos desfilam em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário, em ritual comemorativo pela abolição da escravatura (foto: Gladyston Rodrigues - 13/05/2012)

Na introdução do novo volume o senhor destaca como a jornada de uma década para escrever a trilogia mudou a sua maneira de pensar a “questão do negro” no Brasil. 

Fiz questão de ressaltar isso porque acho que nós estudamos história para entender quem somos hoje. Hoje, não consigo olhar o Brasil sem colocar a questão racial e a desigualdade social no primeiro plano das minhas análises. Como dizia o Joaquim Nabuco: ‘A escravidão marcou e determinou profundamente o futuro da sociedade brasileira’.

Achava certo exagero falar de genocídio negro no Brasil. Sempre tive na cabeça que genocídio era o Holocausto judeu. E pensava: ‘o objetivo do tráfico negreiro e dos senhores escravocratas não era matar os negros, porque eles eram um ativo econômico’. Essa contradição eu tinha certa dificuldade de entender.

Mas aí percebi que existe, sim, um genocídio de natureza cultural, de apagar a história, as raízes africanas, a identidade negra, como se o Brasil ideal fosse um Brasil branco, como se o sangue (negro) tivesse corrompido a índole brasileira. Sob este aspecto, observo que hoje existe, sim, um genocídio em andamento.

Ele acontece tanto nas mortes brutais que a gente vê todos os dias, quanto no apagamento deliberado da memória da escravidão e da vida africana no Brasil. Só muito recentemente, a partir de 2003, a história da África e da cultura afro-brasileira passaram a fazer parte dos currículos escolares. Para mim, isto é um aspecto de genocídio silencioso, que não inclui necessariamente a eliminação física das pessoas, mas sim de sua identidade.

O senhor escreveu que “infelizmente, a história da Independência – como de resto, toda a história do Brasil – foi majoritariamente escrita por fontes e pessoas brancas”. Mesmo escrevendo, neste último volume, sobre um período mais próximo da atualidade, esta situação não mudou?

À medida que a gente se aproxima da abolição, o número de fontes aumenta muito. As fontes são relativamente escassas nos séculos 15, 16. Sobre Palmares, quilombo que durou mais de 100 anos (entre os séculos 16 e 17, em Alagoas) tem pouquíssima coisa, três ou quatro relatórios militares de expedições portuguesas e holandesas.

Já o século 19 tem muita fonte primária, pesquisa de historiador. Mas tem pouca fonte a partir da própria população escravizada porque a maioria imensa era analfabeta. Existe um único caso de um escravo que publicou sua autobiografia, Mahommah Gardo Baquaqua, a quem dedico um capítulo (‘A testemunha’). O grande desafio para a pesquisa do terceiro volume não foi tanto o acesso à informação, mas justamente ter discernimento para editar essa massa enorme de informação que existe sobre o século 19.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, o que só ocorreu porque não havia mais como sustentá-la. Depois de um caminho tão longo, por que, quando ela finalmente chegou, deixou a todos “descalços”?

Eu diria que o Brasil branco europeu apostou todas as suas fichas na escravidão, como se ela fosse durar eternamente. Em relação à escravidão, Joaquim Nabuco falava que o Brasil era velho antes do tempo, um país que antes de desabrochar tinha envelhecido.

Quando esse Brasil, pressionado através dos tempos – o século 19 é um período revolucionário – decide finalmente acabar com a escravidão, eu diria que o processo é muito improvisado, atabalhoado. O Brasil não conseguiu ter um projeto nacional para incorporar sua população afrodescendente na sociedade, na condição de cidadã; não distribuiu riquezas, não alfabetizou, e o resultado é o que vemos hoje. Desigualdade social no Brasil é sinônimo da herança da escravidão.

A abolição em 1888, embora tardia, pegou todo mundo de surpresa. Não era a abolição que os abolicionistas sonhavam, não era a abolição que o próprio império brasileiro gostaria de ter feito, não era a abolição que os barões do café queriam, pois queriam indenização.

Quando se olha a história, fica mais uma vez a sensação de uma obra inacabada, que é um fenômeno tão tipicamente brasileiro. Criam-se mitos como o de que o Brasil conseguiu fazer a abolição sem derramamento de sangue, ao contrário da Guerra de Secessão nos EUA. Não, o que ele fez foi jogar para debaixo do tapete, escondeu um problema que existe até hoje.

O capítulo dedicado ao comendador Breves (Joaquim José de Sousa Breves) é bastante esclarecedor da posição da elite escravocrata brasileira... 

O capital brasileiro, durante boa parte do século 19, foi todo investido na população escrava que garantia a produção das riquezas agrícolas. O comendador Breves é um símbolo do Brasil no período.

Ele estava nas margens do Ipiranga com dom. Pedro I (na declaração da Independência, em 1822), depois começou a plantar café no Vale do Paraíba, que era uma região erma, ficou rico, se tornou traficante de escravos e também o maior senhor de escravos do Brasil.

E foi pego de surpresa pela abolição, tanto assim que foi à falência. Ele não conseguiu encontrar alternativas para perpetuar sua fortuna de outra forma. Para mim, é um personagem muito simbólico. 

Como se dá esta relação dúbia entre a monarquia e a abolição?

A abolição é a grande contradição do império brasileiro. Na Independência, em 1822, se estabelece um pacto entre a monarquia e a aristocracia rural escravista. Uma apoia a outra e uma não mexe nos interesses da outra. Esse pacto explica porque D. Pedro I dissolveu a constituinte convocada em 1822, 1823, e outorgou uma constituição nova, por conta própria, num gesto autoritário (em 1824).

Seu homem forte, José Bonifácio, iria apresentar um projeto para constituinte acabando com o tráfico e, gradualmente, com a própria escravidão. E houve uma reação violenta da aristocracia rural escravista. Esse império recebeu apoio político e financeiro dos senhores de engenho, dos barões de café, dos fazendeiros, e em troca deu títulos de nobreza.

Esse é o alicerce da monarquia brasileira. Quando o Brasil começa a se transformar, sob influência das revoluções da história da humanidade no século 19, especialmente do movimento abolicionista, esse edifício desaba, o pacto deixa de existir. D. Pedro II desejava o fim da escravidão, a Princesa Isabel, o marido, o Conde d’Eu, eram abolicionistas, sem dúvida alguma.

Mas, ao mesmo tempo, eles dependiam da aristocracia escravista. Quando os fazendeiros se sentiram traídos pelas leis do Ventre Livre, dos Sexagenários, pela Lei Áurea, o próprio império desaba. NA monarquia era um gigante dos pés de barro, e os pés de barros eram a escravidão. Quando ela deixou de existir, o gigante desabou.

capa do livro 'ESCRAVIDÃO: DA INDEPENDÊNCIA À LEI ÁUREA %u2013 VOLUME III'
(foto: Globo Livros/Divulgação)

“ESCRAVIDÃO: DA INDEPENDÊNCIA À LEI ÁUREA – VOLUME III”
• Laurentino Gomes
• Globo Livros (592 págs.)
• R$ 69,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)


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