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Estado de Minas LITERATURA

Novo livro de Laurentino Gomes acentua traço mineiro da escravidão

Autor mostra como a exploração de ouro a partir de Minas Gerais potencializou um sistema mergulhado em violência e corrupção


20/06/2021 04:00 - atualizado 20/06/2021 07:28

Painel encontrado no porão de uma casa em Ouro Preto, que provavelmente abrigou uma senzala: raro registro da África(foto: Fred Bottrel/EM/D.A Press - 16/10/2019)
Painel encontrado no porão de uma casa em Ouro Preto, que provavelmente abrigou uma senzala: raro registro da África (foto: Fred Bottrel/EM/D.A Press - 16/10/2019)

É com o objeto que está estampado nesta página que o escritor e jornalista Laurentino Gomes abre o segundo volume do livro “Escravidão”. “A partir do século 18, a escravidão se tornou tão banal e corriqueira que utilizo essa balança para mostrar como ela era um item da vida cotidiana no Brasil colônia”, afirma.

O autor descreve com detalhes o objeto que conheceu no Sesi Museu de Artes e Ofícios, em Belo Horizonte. “A balança de pesar escravos foi cuidadosamente trabalhada em ferro e bronze por um artífice, com ornamentos e monogramas gravados em alto-relevo, incluindo a data da fabricação – 1767 – e o selo do rei de Portugal, como se fosse uma joia de uso pessoal e não um rude instrumento do tráfico negreiro”.
Com lançamento nesta terça-feira (22/06), “Escravidão – Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil” (Globo Livros) concentra sua narrativa no século que representou o auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta de ouro e diamantes em território mineiro.

Prolífico em números e dados, Gomes destaca que até 1693, ano da descoberta oficial de ouro, não havia negros em Minas. Em 1780, quando a capitania de Minas Gerais era a mais populosa do Brasil, havia 174 mil escravos em uma população de 394 mil habitantes. E dos 220 mil restantes, dois terços eram negros forros, ou seja, que tinham alcançado a própria liberdade.

A herança está em toda parte, como destaca o capítulo “Áfricas brasileiras”. Ele é aberto com a descoberta, em 2017, no porão de um sobrado da Rua Direita, em Ouro Preto, de um mural de cenas africanas, datado da segunda metade do século 18 ou início do 19, conforme revelou reportagem do Estado de Minas.

“Não se consegue entender todos os grandes eventos políticos, econômicos, militares, sociais da história brasileira sem observar a escravidão. Como fomos no passado e como somos hoje, tudo está profundamente vinculado às raízes africanas. Elas são um fio condutor que nos constituem como povo brasileiro”, continua o autor.

Gomes evita a narrativa cronológica e vai, por meio de temas, apresentando todos os elementos que estão em jogo. Descobrimos que a corrida do ouro em Minas elevou o custo da vida a patamares absurdos – um par de meias de seda custava 28,8 gramas de ouro em 1703, o que equivaleria a R$ 8.957 nos dias de hoje; um quilo de manteiga,7,2 gramas de ouro ou R$ 2.239 em 2021; enquanto um “crioulo” (expressão da época que denominava um escravo nascido no Brasil) era negociado a 1.790 gramas do mineral, equivalentes a R$ 556.690.

É uma história que fala de corrupção, contrabando, nepotismo, abuso de autoridade, violência, temas urgentes tantos séculos depois. Trata de figuras públicas, mas relata histórias privadas, como a do casal Alexandre Correia e Maria Correia de Andrade, que viveu em São João del-Rei. Eles chegaram da África como cativos na primeira metade do século 18. Conseguiram sua independência, constituíram família e acumularam bens – o que equivale a R$ 1,7 milhão em valores atuais, aí incluídas terras e 12 escravos.

“Quando você costura todos os temas, vê como o retrato do Brasil e da escravidão são profundamente vinculados”, afirma o autor em entrevista ao EM.

A balança de pesar escravos, no Sesi Museu de Artes e Ofícios, cujo simbolismo o autor destaca:
A balança de pesar escravos, no Sesi Museu de Artes e Ofícios, cujo simbolismo o autor destaca: "Como se fosse uma joia de uso pessoal e não um rude instrumento do tráfico negreiro"


Para a pesquisa do primeiro volume o senhor viajou para fora, África e Europa. Para este livro, o senhor foi para dentro do Brasil. Que país o senhor (re)descobriu nesta jornada? 

Me defrontei com duas realidades muito opostas, mas ambas muito ligadas à herança da escravidão. A primeira é uma riqueza cultural muito bonita. Participei da Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Diamantina, em outubro de 2019, visitei quilombos na Paraíba, participei de sessões em terreiros de candomblé na Bahia.

Existe uma África brasileira lindíssima que se expressa com muita intensidade e está relativamente preservada no interior, nas festas, cultos, maneira de falar, uma coisa muito genuína. Mas também encontrei outra África brasileira assustadora, das periferias violentas, insalubres, sem segurança pública, abandonadas pelo Estado, cuja população na maioria é descendente de ex-escravos.

Sua pesquisa, de alguma maneira, derrubou mitos?

Sim. Algumas coisas me surpreenderam ao longo do caminho. O papel das mulheres é muito mais importante do que se imagina. Elas mudaram a face do escravismo brasileiro e foram jogadas nas sombras, como se fossem meros agentes secundários. Em algumas vezes, como no caso de Chica da Silva, a mulher esteve à frente. Liderou quilombos, criou famílias, foi rainha de entidades religiosas. Mas também fez alianças com senhores de escravos.

Muitas mulheres passaram a vida no anonimato, outras viraram donas de engenho, mas também donas de escravos. Isso mostra que a escravidão é um assunto complexo, não é algo monocromático. A escravidão, a partir do século 18, se tornou banal, corriqueira, de maneira que mesmo pessoas escravizadas, tão logo conseguiam conquistar a liberdade, se tornavam donas de escravos.

O sistema de escravidão é muito mais rico e desafiador do que eu imaginava. No Brasil da época, os dois principais itens de riqueza eram a propriedade da terra e a posse de escravos. Qualquer pessoa, para ter alguma projeção na sociedade colonial, tinha de ser dona de terra e escravos.

Além de personagens conhecidos da historiografia brasileira, o senhor também acompanha anônimos, caso daquele que chama “herói invisível”, possivelmente um descendente de africanos escravizados que teria sido o descobridor do ouro em Minas Gerais no final do século 17. Existe farta documentação sobre a escravidão?

Há duas coisas que precisam ser ressaltadas. Existe um mito de que, depois da Proclamação da República (1889), Rui Barbosa mandou destruir documentos sobre a escravidão, o que dificultaria a pesquisa. De fato, Rui Barbosa, como ministro da Fazenda, mandou destruir documentos alfandegários, como tributos de compra e venda, por exemplo. Mas sobrou uma vastíssima documentação, como certidões de nascimento, inventários, escrituras de compra e venda, anúncios de fuga e captura de escravos.

Isso tudo está espalhado em milhares de cartórios e paróquias no Brasil inteiro. A documentação sobre a escravidão é muito vasta e tem resultado em uma produção acadêmica espetacular. Mas é preciso ter muito cuidado porque a documentação, em geral, reflete o olhar do branco. O caso mais típico é o do Quilombo dos Palmares. Toda a documentação existente é branca, vem das expedições militares que foram enviadas para combatê-lo. Não existe um único relato, um olhar negro sobre Palmares. Isso distorce muito e recai na criação de mitos, no papel do próprio Zumbi como líder republicano abolicionista.

Ou seja, é preciso cuidado nas leituras.

E também distanciamento e discernimento. Embora a documentação exista, há um viés de, às vezes, por distorcê-la. Há muitas narrativas que se contradizem. Se você ler “Casa grande & senzala” (de Gilberto Freyre), é o olhar branco. O que transparece ali é uma escravidão branda, patriarcal, quase boazinha, que teria resultado em uma democracia racial no Brasil. Mas quando lê Abdias do Nascimento, a visão muda por completo. Ele fala de um genocídio negro no Brasil, diz que a escravidão no país foi tão violenta quanto em qualquer outro território escravista, pois ainda acarretou o extermínio da memória da cultura negra. É interessante confrontar as duas visões e explicá-las para o leitor. Mas não dá para tomar partido.

Como foi, para o senhor, escrever sobre escravidão no momento em que negros são assassinados por brancos – seja nas ruas, como nos EUA, ou no estacionamento do supermercado, como no Brasil?

Isso tudo reforça em mim a convicção de que a série chega em boa hora, de que escravidão não é assunto de museu, é uma realidade concreta no Brasil de hoje. O legado da escravidão aparece todos os dias nas redes sociais e nos noticiários. Não é que imitamos uma onda de comportamento iniciada nos EUA (com a morte de George Floyd, em maio de 2020, que suscitou um movimento global antirracismo). Existe um massacre em andamento.

Na semana em que lancei o primeiro volume de “Escravidão”, em 2019, um garoto negro roubou uma barra de chocolate em um supermercado e foi espancado com chicote por dois seguranças. Dois anos depois, as notícias se repetem. Isso mostra o quanto a escravidão é ainda uma ferida aberta, que dói todos os dias. Os livros podem ajudar na reflexão de como somos, como agimos. De todos os passivos históricos, o maior é o da escravidão, que resultou em um Brasil violento. Para usar uma imagem forte, um pus de ferida aberta.

(foto: GLOBO LIVROS/DIVULGAÇÃO)
(foto: GLOBO LIVROS/DIVULGAÇÃO)

“ESCRAVIDÃO – VOLUME 2
Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil”
De Laurentino Gomes
Globo Livros
512 páginas
R$ 59,90 (livro)
R$ 39,90 (e-book)


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